“Vede, eu vos envio como ovelhas para o meio dos
lobos; sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,16)
Os conflitos são constantes no caminho da fidelidade ao Evangelho: conflitos
externos que surgem a partir da presença inspiradora e provocativa
dos(as) seguidores(as) de Jesus; conflitos internos que afloram
quando a mensagem evangélica ressoa na interioridade de cada um, des-velando
seus contraditórios impulsos, tendências, dinamismos, forças...
O ser humano vive
tencionado entre dois polos: entre luz e escuridão, céu e terra, fragmentação e
unidade, espírito e instinto, solidão e vida comum, medo e desejo, amor e ódio,
razão e sentimento, sagrado e profano..., enfim, entre animalidade e humanidade.
Não se trata de
alimentar uma luta entre esses dois impulsos, como um combate entre o bem e o
mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas
“tentações”.
O combate dualístico
desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no
voluntarismo..., esvaziando a pessoa de toda densidade humana.
A questão de fundo é saber qual
dos dois dinamismos nós alimentamos; é aqui que entra a liberdade
(ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Só quando dizemos sim a
esta tensão básica de nossa vida é que conseguimos superar a divisão interna.
Viver uma “vida segundo o
Espírito” significa, antes de tudo, chegar à compreensão e integração
das polarizações internas, dos dinamismos opostos, dos movimentos
contraditórios... que nos mantêm “despertos” e que dão calor e sabor à nossa
existência.
É próprio do
Espírito, reunir, integrar, conciliar,
pacificar, conduzir-nos a um “lugar interior”, a um centro de calma, onde tudo
tem seu lugar, onde tudo encontra seu espaço.
Sua discreta
presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de
resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida.
A atitude
fundamental é a de sermos dóceis para nos deixar conduzir pelos impulsos do
Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos.
À luz do evangelho deste domingo,
vamos considerar os “conflitos internos”. E a questão primeira que surge é esta: como
integrar, pacificar, harmonizar... os “animais interiores”, para que o
seguimento de Jesus Cristo não termine num combate espiritual que desgasta,
tornando pesada a vivência cristã e levando ao sentimento de impotência e
desânimo?
Sob o impulso do Espírito, somos
chamados a conhecer, reconhecer, nomear e integrar os animais que nos
habitam. E caminhar fraternalmente com eles.
Cada um deles representa os
instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos... que,
quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior.
Somos como a “arca
de Noé”, no grande Oceano da vida, carregando em nosso interior todos
os animais, com seus instintos selvagens e primitivos; e o maior desafio é, justamente,
a harmonia e a convivência, onde cada um deles tem sua importância, seu papel
sagrado e revelador da nossa identidade humana. São eles que nos facilitarão o
acesso às nossas riquezas interiores.
Algumas vezes
agimos como uma cobra, ficamos ariscos e escondidos como uma onça, rugimos como
um leão ou atacamos como um cão feroz. Outras vezes, até agimos igual a animais
ruminantes que mastigam continuamente os rancores e mágoas do passado.
Eles não cessam de
ladrar enquanto não lhes damos atenção.
É preciso, antes
de tudo, pacificar nossos animais interiores. Trata-se de
conhecê-los, aprender a línguagem deles, fazer amizade com eles para que eles
não nos destruam por dentro.
Faz parte da maturidade e
crescimento pessoal encontrar e entender, em cada um de nós, a mensagem e o
desafio de animais interiores como a pomba, o cachorro, o corvo, a serpente, a
raposa, a perdiz, o lagarto, o falcão, o lobo, o leão... Cada animal deve ser
verbalizado, integrado harmoniosamente no tempo certo e no lugar adequado. Ao
fazer isso, descobriremos as diferentes dimensões da ecologia espiritual,
paradisíaca e harmônica, para bem viver a maravilha da vida plena e em
abundância.
Quando todas as
energias animais são ordenadas, elas colaboram para o conhecimento pessoal, o
refinamento da identidade e a busca da autenticidade, elas são fonte interior
de sabedoria e de desfrute espiritual. Então, os animais pacificados irão nos
conduzir ao mais profundo e nos mostrar onde o tesouro está escondido, e
ajudam-nos a desenterrá-lo. Aqui está o lado “humanizante” da vida.
Fomos forçados, durante nossa
formação cristã, a viver uma espiritualidade que nos ensinou a reprimir
e a manter presos todos os animais na
gruta interior e a levantar junto dela um edifício de “grandes ideais”. Lutar
contra os animais interiores é permanecer na superfície de si mesmo e não ter
acesso às reservas de riqueza do próprio coração.
Tal vigilância e suspeita nos
levaram a viver constantemente com medo de que os animais pudessem fugir e nos
devorar. Fomos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para
dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com os eles.
Quanto mais os amarramos, tanto mais perigosos eles se tornam; eles nos atacam
por dentro, tirando a disposição, o ânimo de viver.
Com isso nos excluímos do prazer
de viver, porque tudo é reprimido e nossa animalidade
é violentada.
E onde está o nosso medo pode
estar também o nosso tesouro enterrado.
“Não tenhais medo deles. Não há nada de oculto que
não venha a ser revelado, e nada de escondido que não venha a ser conhecido” (Mt 10,26).
Sem
a superação cotidiana desse medo, nossa missão estará
comprometida; perderá sua força inovadora, garantida pela novidade do Projeto
de Deus.
Sabemos
que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais
selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, gera um desgaste muito
grande e fica nos faltando a sua força de que temos necessidade para o nosso
caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros.
Nosso compromisso
deveria ser a de travar um diálogo amoroso com os animais dentro de nós. Então
tornar-se-á realidade o que o profeta Isaías prometeu: “O cordeiro e o
leão andarão juntos, e a pantera se deitará com o cabrito...” (Is. 11,6ss).
O
compromisso com o Reino requer de todos uma forte dose de coragem e uma
alma ágil, animada e vivificada pelo sabor da aventura e da novidade.
Vencido
o medo, nós nos tornaremos autênticos, criativos e audazes seguidores de
Jesus.
Texto bíblico: Mt 10,16-33
Na oração:
Na vivência cristã, o que importa é ter a coragem
de entrar na “arca interior” e dialogar amigavelmente com todos os animais. Então
eles indicarão o caminho do tesouro
escondido. Este tesouro pode ser
“uma nova vitalidade e autenticidade, um sonho
ousado, uma intuição,
um dom especial, o encontro com o verdadeiro eu, a imagem que Deus faz de cada um de nós...”
“Entrar na arca” significa “buscar
e encontrar a Deus” exatamente em nossas paixões, em nossos traumas,
em nossas feridas, em nossos instintos, em nossa impotência e fragilidade...
Viver
uma nova espiritualidade significa,
então, não buscar “ideais de perfeição”, mas dialogar com nossas paixões, nossas
fragilidades, nossas carências...
Poderíamos
nos interrogar o que é que Deus deseja nos revelar por meio delas, e como
justamente através delas Ele deseja nos conduzir ao tesouro escondido no interior de nossa vida.
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