quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Uma subida desconcertante que nos transfigura

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo da Quaresma (2024).

“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha” (Mc 9,2)

 

Os bons montanhistas sabem que, para chegar ao cume, é necessário muito esforço e sacrifício. Subir vai contra à nossa natureza humana; a gravidade nos arrasta para a comodidade de uma poltrona.

A subida requer programar o caminho, buscar uma rota acessível, usar calçado e uma roupa adequada, exige uma preparação física, levar só o essencial; é imprescindível ter bons companheiros de aventura para reativar o ânimo, ajudar-se mutuamente diante dos perigos dos precipícios, dos escorregões, do mau tempo.

Mas, quando chegam no alto, não sentem mais as bolhas, os cansaços e os arranhões; o ar é como um frio punhal que enche seus pulmões, a luz é sua vestimenta, as nuvens são sua almofada, o céu é tão azul como nunca sonharam, e todos os problemas do seu pequeno mundo que ficaram para trás se tornam insignificantes como formigas. Nas alturas sentem-se mais eles mesmos, como se sua alma pudesse voar.

E assim também aconteceu com Jesus e seus amigos Pedro, Tiago e João: Ele subiu o monte Tabor, para que, a partir do mais alto pudesse revelar sua verdadeira identidade, cheia de Luz e de Paz. O carpinteiro se revela como Panto-crator, custodiado por Moisés e Elias.

A compreensão do relato de Marcos nos revela que a realidade “transfigurada” de Jesus é uma realidade compartilhada: todos somos seres transfigurados.

Transfiguração: tempo de interioridade, desejo de contemplar-nos a partir de nosso “eu profundo”, “lugar” dos nossos recursos mais nobres, dos dinamismos de vida, da criatividade, da intuição e dos sonhos, das forças que nos impulsionam a viver em contínuas buscas...

Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside o que é mais nobre em cada pessoa, que só uma experiência de transfiguração é capaz de des-velar.

É aqui, onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do coração, da dimensão mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.

Uma das características do mundo pós-moderno é a transformação, a evolução, a mudança. O Evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos revela que é possível “transfigurar-nos” se formos capazes de descobrir a Presença transformadora de Jesus em nós no caminho que nos cabe viver, na subida ao monte (Sinai, Hermón ou Tabor), símbolo do divino. É a subida da consciência, do conhecimento interior, dos sentimentos elevados, dos desejos mais nobres... que brotam do mais profundo de nós mesmos.

Diz o texto de Marcos que Pedro, Tiago e João acompanharam Jesus. Que foi que viram? Algo tão natural como cair na conta, em um momento concreto da existência, de uma faísca, uma sensação que vai mais além dos sinais superficiais: a percepção da presença do divino em si mesmos e a fonte da qual experimentaram um antes e um depois. Poderíamos chamar isso de experiência fundante, prazerosa, plenificante, quase nunca espetacular, mas que deixa uma profunda ressonância interior. Nessa situação, pode surgir uma expressão tão humana como a de Pedro: “é bom ficarmos aqui”.

Aqui, a pessoa experimenta algo essencial em sua vida: sente-se como filho(a) amado(a). Já paramos para pensar o que realmente significa ser “filho/a amado/a”?

Deus conhece nossas necessidades, nossos desejos, nos oferece a oportunidade de re-nascer, de transfigurar-nos. Em todo momento nos comunica sua Vida, a única. Somos portadores do divino. No mais íntimo de nosso ser ouvimos sua voz: “Escutai o que Ele diz!”. Uma voz que mobiliza o há de melhor em nós. É preciso distingui-la daquelas vozes que nos atordoam, confundem ou violentam, das palavras falsas, vazias, carregadas de promessas e mentiras que, lamentavelmente, são pronunciadas sem pudor.

Somos vida transfigurada na qual todos estamos implicados.

Diante de um contexto mundial tão obscuro faz-se urgente despertar em nós os atributos mais humanos e divinos para sermos pessoas de luz, pessoas que, através dos estilos de vida sintonizados com a natureza, brilham com luz própria. Somos, na essência, “seres translúcidos”, que deixam passar a Luz divina presente em nós. A Luz existe desde o princípio e a nós cabe sermos testemunhas dessa Luz e, portanto, seres que deveríamos transluzir essa Luz eterna em nosso agir cotidiano.

Seres translúcidos existiram e existem sempre; mesmo no escondimento, são tantos e tantas que deixaram e deixam passar a Luz em suas vidas e que deixam marcas impagáveis em nós.

De fato, “ser translúcido” é nossa essência pois fomos criados por Amor, que é Luz, embora tantas vezes podemos ficar opacos quando impera em nosso interior o egocentrismo, o ódio, a intolerância, o medo, que nos atormenta e nos bloqueia.

Seguramente que não podemos ser translúcidos sempre e em todo momento; assim como o sol, um astro que brilha sempre, mas só chega a nós algumas horas do dia.

Mas, podemos ser translúcidos a maior parte do tempo, levar a Luz que brilha desde toda a eternidade e fazê-la brilhar na obscuridade que nos rodeia.  Sejamos translúcidos, mostremos a Luz!

A Transfiguração não é algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas é um abrir-se à realidade cotidiana e cair na conta de que a vida e a história estão cheias de sentido, de vida.

A realidade é uma linguagem que nos fala de algo mais que a mera materialidade.

Há pessoas que, no ambiente em que se encontram, transfiguram a vida e os problemas, criando um clima de paz e serenidade na vida familiar, comunitária, eclesial, laboral, etc...

Há pessoas que transfiguram a guerra em paz, o pecado em graça, o ódio em respeito e amor, a enfermidade em fonte de reflexão e aceitação da própria finitude, o desespero em esperança...

Isso acontece também no campo da arte, da estética: no fundo, é uma transfiguração do ferro, da madeira, da pedra, da linguagem, dos sons e nos transportam a um “mais além”.

Um entardecer, um encontro, uma oração, podem transfigurar nosso ser, nossa existência para a verdade, a bondade ou a beleza.

Quando participamos de uma celebração de exéquias, evocando a morte dos seres queridos, somos transportados, transfigurados e isso nos leva a outras realidades de esperança, casa do Pai etc.

O mundo de hoje pede pessoas capazes de transformar, de transfigurar, de proclamar uma Palavra de verdade, de bondade, de estética, de ideais, valores, caminhos...

Viver é transfigurar a existência, transcendê-la. A experiência, o encontro com Cristo transformam, transfiguram nossa vida e a enchem de paz, de luz, de sentido.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 9,2-10

Na oração:

Transfigura tua existência, eis a questão!

Desapega-te de teus problemas, suba, mesmo que te custe. Busque companheiros que te ajudem a situar-te a partir de uma perspectiva de pássaro, onde o ar seja mais puro e a Luz mais clara. Encontra teu Tabor, onde possas sentir a presença do Amor mais puro, onde possas descansar, onde possas descobrir tua verdadeira identidade e o que é essencial para tua vida. Desapega-te do celular, esquece tua agenda, silencia tantos toques. Abandona tua pesada bagagem de preocupações e coisas que não precisas. É teu Tabor.

De tempos em tempos é preciso subir teu Tabor, mesmo que custe desprender-te do passado e do pesado.

- Você é uma pessoa que transfigura um nascimento na família, um sofrimento, que transforma o trabalho, a convivência? Está aberto(a) à transfiguração da grande noite da vida?

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

O deserto desmascara nossas tendências egóicas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º  Domingo da Quaresma (2024).

“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)

 

O 1º. domingo da Quaresma nos conduz ao deserto; ali, na profunda solidão e silêncio, Jesus teve uma experiência fundante, que marcou profundamente sua vida, rompendo com a vida cotidiana anterior, em Nazaré. Enfrentou o que todos nós enfrentamos continuamente: todos nascemos e somos movidos por uma forte tendência a buscar poder, prestígio, riqueza; esta semente vai crescendo e se expandindo por todos os meios possíveis. Prestemos atenção naqueles que fazem da busca do poder, da riqueza e da vaidade, o centro de suas vidas, para ver os efeitos devastadores deste veneno, presente dentro de nós e no nosso contexto social. São as chamadas “tendências egóicas” que rompem toda possibilidade de viver a fraternidade e a acolhida do diferente.

Quando nos deixamos determinar pelo poder, para ter parte no “banquete de morte” dos poderosos, podemos chegar a nos ajoelhar diante deles e “adorá-los”.

Diante desta perene tentação, Jesus, no deserto, vem nos diz: o amor e o serviço são duas atitudes que ativam e elevam a vida.

Quando queremos tirar os obstáculos de nosso caminho para tornar nossa vida mais fácil, procuramos transformar “as pedras em pães” com o que temos à mão: ameaças, extorsão, mentiras, ódios...

Jesus vem nos diz: “que a Palavra sustente tua vida!”

Quando nos sentimos tentados a manipular Deus a nosso favor, queremos negociar e “comprá-lo” com nossos ritos e observâncias, acreditando que Ele está em dívida conosco.

Jesus vem nos convidar a viver como filhos e filhas, sem tentar a Deus.

Para facilitar o esvaziamento dos “impulsos egóicos” e re-ordenar a vida, a liturgia nos convida a buscar inspiração junto a Jesus, durante sua estadia no deserto.

Ali, Jesus “vivia entre as feras e os anjos o serviam”; o texto grego e latino diz “animais selvagens”. Podemos entender a maneira como Jesus se situou na vida, em meio às “forças” que condicionam o ser humano, umas boas (Espírito, anjos), outras más (“demônios”, “feras”).

O relato do evangelista Marcos também faz alusão aos tempos idílicos do Paraíso, onde a harmonia entre seres humanos e a natureza inteira era total. Recordemos que o tempo messiânico fora anunciado como uma etapa de convivência harmoniosa entre seres humanos, os animais, a natureza...

Além disso, as tentações acompanharam Jesus durante toda sua vida, como apontam claramente os Evangelhos. Isto quer dizer, obviamente, que o discernimento que Jesus teve de fazer sobre sua própria vida e sobre sua missão, não foi experiência de um dia ou de um momento.

O Jesus dos evangelhos é Aquele que busca, que reza, que discerne, que se vê na encruzilhada de optar entre várias possibilidades, que se retira ao deserto para descobrir qual é a Vontade do Pai, que elabora progressivamente seu projeto global e passa depois às opções concretas.

Tudo isso iluminado e orientado a partir de uma opção fundamental: a opção pela solidariedade com todos aqueles que em suas vidas só experimentaram a exclusão. E isto, mantendo-se fiel até o final, mesmo às custas de encontrar-se em situações de conflitos e perseguições, até culminar em sua morte na Cruz.

Jesus não sai fragilizado de seu deserto. Sai tão fortalecido que seu compromisso posterior, fruto de sua relação direta com o Abba, que transforma a história em um antes e um depois.

Portanto, quando nos perguntamos por que foi Jesus tão liberal naquilo que se refere às leis, normas e tradições religiosas, e porque foi tão radical a respeito da justiça, do amor e da proximidade junto aos pobres, doentes e excluídos, a resposta é clara. O segredo de tudo está na opção fundamental que Ele assumiu no batismo e a manteve durante suas tentações, ou seja, a opção pela solidariedade como meio e caminho para realizar sua missão.

O relato evangélico deste domingo termina nos dizendo que, após o batismo e o retiro no deserto, Jesus caminhava pela Galileia “proclamando a Boa Notícia de Deus” (Mc 1,14). Para Jesus, Deus é uma presença amistosa e próxima que faz viver e amar a vida intensamente. Jesus vive Deus como o melhor amigo do ser humano: um Deus “Amigo da vida”. O que contagia a todos é sua experiência de Deus como um “Mistério de bondade” que nos liberta de tanto peso e de tantas culpas, alimentadas por um legalismo e moralismo estéreis que acabam obscurecendo Seu rosto compassivo.

Quanta alegria se despertaria em muitos se pudessem ver em Jesus os traços do Deus da vida! Como se acenderia sua fé se pudesse captar com olhos novos o rosto de Deus encarnado em Jesus!

Muitos homens e mulheres de fé frágil, vacilante e quase apagada necessitam hoje escutar a notícia de um Deus bom e amigo: o Deus de Jesus Cristo, que só quer uma vida mais digna e feliz para todos.

Tudo aquilo que impede acolher a Deus como graça, libertação, perdão, alegria e força para crescer como seres humanos não leva dentro a “Boa Notícia de Deus” proclamada por Jesus.

Crer no Deus “amigo da vida” nos compromete a viver a “amizade social” como atitude oblativa.

Neste tempo quaresmal, a Campanha da Fraternidade nos motiva a viver a amizade social como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus. Viver como Jesus significa encontrar-se com “o mundo do sofrimento, da injustiça, da fome... e não ficar indiferente”. A fraternidade, que nasce da compaixão, nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.

A amizade social se enriquece quando se deixa pautar pelo diálogo fecundo, pela cultura do encontro, pela paciência e tolerância com o diferente, pela renúncia a instrumentalizar e descartar o outro simplesmente porque “vive, pensa, crê, sente e ama de maneira diferente”.

O(a) discípulo(a) missionário(a) não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como ameaça ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do encontro inspirador.

Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência a

fraternidade como valor ético e como hábito permanente de vida.

Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas.

É urgente que nos deixemos “empurrar ao deserto” pelo mesmo Espírito de Jesus, para sermos mais fraternos e humanos. Vivamos com “sabor” a travessia quaresmal!

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 1,12-15

Na oração:

O Espírito de Jesus continua nos conduzindo ao deserto para desintoxicar-nos de todo resquício de poder, vaidade, indiferença, ódio, preconceito...; de tempos em tempos, precisamos nos deslocar para o deserto, para o lugar de discernimento das diferentes vozes que nos movem por dentro: vozes de morte (egóicas) e vozes de Vida.

É na escuta atenta do Espírito que seremos capazes de tomar decisões oblativas, des-centradas, com sabor de Reino, e a dar passos em direção ao amor incondicional.

- O que prevalece e determina sua vida: as más tendências ou os sentimentos mais elevados, as vozes de morte ou as forças de vida?

- Que experiências de deserto sustentam sua vida?

Renascer das cinzas para uma fraternidade universal

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da Quarta-feira de Cinzas (2024), que inicia o Tempo Litúrgico da Quaresma. Desejamos uma profunda "travessia quaresmal" a todos.

“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai” (Mt 6,17-18).

 

Começamos a Quaresma com o rito da “imposição das cinzas”. Há um risco de vivermos a travessia quaresmal contentando-nos com atos externos de penitência, renúncia, mortificações... sem referência à pessoa de Jesus Cristo e sem abertura aos outros. O silêncio do deserto nos ajuda a encontrar nosso centro, a partir de onde podemos acertar em nossas opões vitais, sem cair nas armadilhas do ego.

A Quaresma é um tempo privilegiado de discernimento e mudança; ela des-vela as grandes carências existenciais que nos afligem e nos desumanizam; ao mesmo tempo, ela nos faz ter acesso aos melhores recursos e dons, encontrados em nosso interior e que ainda não tiveram chances de se expressarem.

Há uma “carência radical” que nos afeta a todos e que, cada vez mais, assume um rosto assustador. Trata-se das profundas rupturas fraternas que se expressam numa cultura do ódio, da violência, da intolerância, do preconceito... Precisamos, neste tempo litúrgico especial, reforçar os nossos laços fraternos, reconstruir os vínculos quebrados e alimentar a comunhão entre os diferentes. A Quaresma pode ser um tempo de graça que ajuda a eliminar a “cultura da indiferença” de nossas vidas.

Para tornar a nossa vida mais fraterna, aberta e acolhedora, a Campanha da Fraternidade da Igreja no Brasil nos situa diante desta dura realidade que nos escandaliza.

Com o provocativo tema - “Fraternidade e amizade social” – e o lema – “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8) - somos chamados a despertar nossa sensibilidade solidária frente a esta grave situação de divisão que nos envergonha. Não podemos continuar passivos e indiferentes frente a esta realidade tão desumana. Onde há divisões e conflitos é sinal de que o Evangelho não está sendo vivido de modo coerente pelos cristãos.

O caminho da Quaresma passa pelo coração. Como seguidores(as) de Jesus, somos chamados(as) a retornar a Deus de todo o coração”, a não nos contentar com uma vida medíocre, mas a crescer na amizade com o Senhor. E quando alimentamos a amizade com o Senhor também amadurecemos nossa amizade com os outros e, unidos fraternalmente, celebraremos a Páscoa, a plenitude da vida cristã.

Assim, em sintonia com o movimento humanizador de Jesus, a Quaresma se apresenta como um momento privilegiado para despertar os nossos recursos internos e ativar nosso espírito fraterno. Para isso, é preciso redescobrir o caminho do coração para viver um permanente processo de reconciliação e conversão.

O “Tempo Quaresmal” é uma excelente mediação para viver com mais sentido e inspiração. Ele nos abre a possibilidade de acessar nossa interioridade e destravar os impulsos relacionais que nos habitam: relação com Deus (oração), relação com os outros (esmola) e relação com as coisas (jejum).

Viver a cultura do encontro fraterno é ativar nossa própria capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, de escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta. Ela nos mobiliza a viver uma relação sadia com todos; nosso centro se expande em direção aos outros e à criação, fazendo-nos viver uma conexão livre com toda a realidade, através da íntima solidariedade e do compromisso ativo.

O gesto de receber as cinzas sobre nossas cabeças tem o sentido de uma mobilização para começarmos a caminhar em direção ao “centro de nosso ser”, conscientes de que este caminho nos humaniza e nos diviniza ao mesmo tempo. A partir daí podemos sair ao encontro dos outros com outra profundidade, com um amor mais puro, com mais gratuidade e, com a força do Espírito, mais livres das redes egóicas.

Esta Quaresma pode ser um marco no nosso caminho, um caminho de Paixão que já estamos vivendo nestes momentos de profundas crises e rupturas sociais; quer ser também um caminho de Ressurreição e que não poderá ser uma experiência solitária; ou nos renascemos todos para uma nova humanidade ou este mundo será uma experiência falida.

Os grandes momentos de nossa vida (decisões, ano litúrgico...) pedem uma “parada”, um tempo de preparação. Há sempre o perigo da improvisação e do imediatismo; vivemos a cultura da pressa, buscando resultados rápidos. Sabemos que a vida tem seu ritmo, como a natureza tem suas estações. É hora de parar, quebrar o ritmo estressante, frear nossos pensamentos, sentimentos, afetos desordenados, sentidos..., esvaziar o nosso ego para nos deixar conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus.

Existem aqueles que nunca freiam, que vivem sempre com pressa, indo de um lado a outro, de uma experiência a outra, de um momento a outro. A velocidade é a marca de nossos tempos. Mergulhados na rapidez, perdemos a memória, pois esquecemos rapidamente as vivências que nos marcaram.

Por isso, de tempos em tempos, é preciso parar, deter-nos, plantar os pés na terra firme, olhar ao redor e, também olhar para dentro. Perguntar o porquê da inércia ou da imediatez, perguntar pelas pessoas que fazem parte de nosso horizonte diário, pelas metas que guiam a nossa própria vida.

Para viver com mais intensidade o espírito quaresmal, a liturgia nos propõe três atitudes que nos descentram e nos fazem entrar no ritmo da radical gratuidade: a oração, o jejum e a esmola (caridade fraterna).

Uma vez no deserto com Jesus, devemos ativar a atitude de escuta daquela voz interior que se desperta diante da força da Palavra. A isso chamamos oração. Oramos quando dirigimos nosso olhar a Deus, ao mundo e a nós mesmos. Oramos com a Bíblia, com as notícias, com os desejos, com os medos... Oramos de mil formas diferentes...

E, se escutarmos profundamente com os sentidos ativos, brotarão gestos de atenção e sensibilidade diante de homens e mulheres que mais precisam de paz, pão e palavra. Chamamos isso de “esmola” (ou “caridade fraterna”), que significa porta aberta para viver a partilha e o encontro com todos, movidos pelo nosso olhar contemplativo e pelas nossas entranhas compassivas.

Depois da esmola e da oração, culminando a trilogia da “justiça” do evangelho de Mateus, vem o gesto da renúncia positiva, não por sadismo ou vitimismo, mas por elevação da interioridade pessoal e pela solidariedade humana. Este é o sentido do jejum da quaresma cristã: ao lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê e para quem vivemos? Só para acumular e encher nossos “celeiros”...?

Se uma pessoa autossuficiente não aprende a renunciar, a jejuar, a contemplar Deus em tudo e amar os outros (para que eles se liberem, rompendo as cadeias, os muros da separação e o impulso egóico que mata) essa pessoa se destrói a si mesma, se torna enferma e perde o equilíbrio de sua vida mesma.

Sem um jejum como atitude de solidariedade, matamos os pobres e nos matamos a nós mesmos. Trata-se de um jejum não só dietético e medicinal, mas humano, espiritual e corporal no sentido mais profundo. Falamos de um jejum pessoal, que quebra nosso farisaísmo e nos conduz a uma autêntica solidariedade e maturação existencial.

Jesus, ao recuperar o sentido verdadeiro destas três práticas quaresmais, nos “revela” aquilo que os hipócritas escondem: o que a esmola, a oração e o jejum têm em comum é que precisam ser vividas no “escondimento”. O essencial da vida, que é o amor, sempre é discreto. O que não é essencial faz barulho, como a vaidade, o prestígio social, o querer despertar uma boa impressão nos outros...; tudo isso é pura hipocrisia. Quaresma pede humildade e sinceridade de coração.

Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 6,1-6.16-18

Na oração: 

Para fazer uma “travessia quaresmal” é preciso uma inspirada preparação e uma mobilização de todo nosso ser.

- Como você se propõe a viver as “três práticas quaresmais: oração, jejum e esmola?

- O tema da CF deste ano (fraternidade e amizade social) tem ressonância em seu interior? Que gestos concretos você poderia assumir para romper com essa cultura do ódio e da indiferença que provoca tantas divisões?

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Jesus terapeuta, reconstrói as relações fraternas - 6º Domingo Comum (B)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 6º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

 “Eu quero, fica curado!” (Mc 1,41)

Continuamos no primeiro capítulo de Marcos que resume a habitual maneira de Jesus atuar. E o evangelho de hoje nos fala de um leproso cara a cara com Jesus de Nazaré! Um leproso em Israel não era, de modo algum, um enfermo qualquer: seu grau de impureza era tal que sua exclusão sócio-religiosa era a mais radical das exclusões ordenadas na Lei: “O homem atingido de lepra andará com as vestes rasgadas, os cabelos soltos e a barba coberta, gritando: ‘Impuro! Impuro!’. Durante todo o tempo em que estiver contaminado de lepra, será impuro. Habitará a sós e terá sua morada fora do acampamento” (Lv 13,45-46).

Não é fácil imaginar a carga de sofrimento e marginalização imposta pela enfermidade da lepra na Palestina do séc. I. O doente era obrigado a carregar não só o peso da enfermidade, da vulnerabilidade e do medo que procedem dela, mas também o estigma de ser considerado “pecador” e com a marca da rejeição que se concretizava numa severa norma de marginalização social. Tudo isso fazia com que o leproso fosse visto como um “empesteado” em todas as dimensões (física, social e religiosa).

Mas, mesmo nos casos mais desesperados, ainda havia a esperança de recuperar a saúde e, com ela, a possibilidade de reintegrar-se mais plenamente na vida social.

Compreende-se, então, que quem padecia de lepra desejasse, acima de tudo, “ficar limpo”. E essa é a petição que faz com que o leproso do relato se aproximasse de Jesus.

Chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: se queres tens o poder de curar-me”. Esta atitude indica ao mesmo tempo valentia, porque se atreve a transgredir a Lei, mas também temor de ser rejeitado, precisamente por isso.

A ação terapêutica de Jesus acontece em quatro passos. O número quatro representa o aspecto terreno, o ser humano é reestabelecido em sua humanidade, à imagem do Deus que o criou.

O primeiro passo da cura: Jesus tem compaixão para com o leproso e se abre para o doente. O segundo passo: Ele estende sua mão, prolongando seu coração compassivo e estabelecendo assim um contato.

O terceiro passo: o Mestre toca o leproso, quebrando uma norma legal que o excluía por ficar contaminado. Jesus não tem medo do contato físico; aproxima-se do doente, ativa todos os seus sentidos para senti-lo, demonstrando assim sua dedicação incondicional.

O quarto passo: o Mestre diz ao doente “Eu quero, fica limpo”. Ele demonstra sua dedicação ao doente.

O gesto de Jesus de “tocar o leproso”, expressão de sua profunda compaixão, revela uma clara confrontação com o que era exigido pela Lei; fala, de um modo eloquente, da forte reação de Jesus diante da exclusão, à qual está submetido um ser humano.

Jesus despede o leproso já curado para que os sacerdotes do Templo de Jerusalém atestem sua cura e autorizem sua integração junto à sociedade: respeitoso do código social de pureza-impureza, o Galileu situa o homem curado diante da Lei como caminho para recuperar seu lugar na comunidade.

O leproso curado não permanece passivo, simplesmente acolhendo o dom que acabara de receber, senão que participa também, em certa medida, na cura da qual é o beneficiário.

Mas, o curioso é que acontece algo fascinante: o excluído perde todo interesse em sua inclusão social a partir da Lei; em vez de ir ao Templo de Jerusalém, torna-se um propagandista da pessoa de Jesus. Sem dúvida, o ex-leproso encontra no mesmo Jesus a possibilidade nova de inclusão em uma comunidade que não gira em torno à Lei, mas em torno à igualdade fraterna. É justamente o gesto da imposição de mãos de Jesus um desafio implícito ao mundo da Lei que abre ao leproso um horizonte radicalmente diferente: o Reino de Deus, no qual se sente incluído.

Permanece, então, a memória da mão estendida de Jesus de Nazaré sobre a pele do leproso como gesto crítico às leis de uma sociedade que rejeita todo aquele que não se acomoda aos seus pré-conceitos; ao mesmo tempo, tal gesto se revela como uma forte exigência à comunidade universal de discípulos que o Mestre fundara para ser o espaço de inclusão que, de modo alternativo, venha a ser o lar de todos os excluídos. O fato de que Jesus se aproximasse dos doentes e se deixasse tocar por eles, ou de que os curasse de forma pouco ortodoxa, era um atentado contra as normas de pureza que fora imposta à sociedade palestina daquele tempo. Jesus não teve receio em transgredir estas normas, pois só assim podia se aproximar daqueles que estavam em situação de exclusão.

O que chama a atenção é a “gestualidade” de Jesus: Ele se aproxima dos homens e mulheres de sua época, toca os enfermos, impõe as mãos, toma as pessoas pela mão, estende as mãos...

As verdadeiras curas e milagres de Jesus são, antes de tudo, gestos de “humanização evangélica”. Curar é sua forma de amar e seu amor curador o impulsiona à proximidade, estima para com o enfermo, respeito à capacidade de cura da própria pessoa. Seu amor que cura é gratuito.

Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais sadio e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões. Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde em seu corpo, em suas emoções, projetos, relações e abertura ao Transcendente.

Através das curas Ele mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura seu universo relacional e abre sua interioridade à alteridade; ao mesmo tempo Ele potencia a liberdade do ser humano, recuperando a autonomia e a capacidade de dar direção à própria vida.

A enfermidade e o sofrimento têm muito a ver com a fragmentação, a dispersão e a divisão. A pessoa curada por Jesus recupera a harmonia, a unificação interior, a reconciliação com a vida e a relação com os outros.

Ser curado implica assumir uma responsabilidade que leva a implicar-se na transformação pessoal e social. A saúde integral tem a “carga” da maturidade e da responsabilidade na própria vida e no próprio processo.

O evangelista Marcos destaca que, em Jesus, a “comoção das entranhas” é o núcleo de sua ação curativa.

O sofrimento das pessoas desperta n’Ele a compaixão e o amor.

De fato, o primeiro sentimento que aflora em Jesus quando se vê diante dos enfermos é o da compaixão. Movido por ela, viola a lei que proibia aproximar-se e, muito mais, tocar o leproso. E assim revela que é a compaixão que cura as pessoas e não a simples observância da lei.

A compaixão constitui, ao mesmo tempo, o sentimento e a atitude nuclear de Jesus e um dos eixos do evangelho. Na realidade, todas as grandes tradições espirituais reconhecem a compaixão como o “test” que verifica a autenticidade do caminho espiritual.

Não se trata de um mero sentimento superficial que brota de nossa sensibilidade diante do sofrimento do outro. É um sentimento infinitamente mais profundo, uma comoção interior que nos faz estremecer com a pessoa que sofre (“com-paixão”, “cum-passio” significa literalmente “sofrer-com”; no grego “sym-pátheia, termo eloquente que evoca atitudes de simpatia e de empatia); sentimento que nos põe na pele do outro, nos faz sentir com ele, e nos mobiliza a uma ação eficaz de ajuda.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 1,40-45

Na oração:

Há tantas dimensões de nossa vida nas quais o corpo fala mais alto: maneira de nos aproximar dos outros, de acolher, de cuidar, a delicadeza com que nos relacionamos... Nosso corpo pode expressar compaixão ou rigidez, calor humano ou frieza, acolhida ou preconceito...

- Suas mãos são o prolongamento das mãos divinas? Abertas, generosas, solidárias, que se estendem e envolvem os outros num abraço, sabem “bordar uma carícia”? Sabemos que nesses e em muitos outros gestos Deus está verdadeiramente ao alcance das mãos.

- “Devemos tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco). Como você sente suas mãos? Elas são o prolongamento do seu coração compassivo para poder “tocar em Deus”?