terça-feira, 24 de janeiro de 2023

FELICIDADE: fome e sede de plenitude

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 4º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Felizes os pobres em espírito, os mansos, os pacíficos, os misericordiosos, os puros de coração...”

Todo ser humano anseia por felicidade; como filhos e filhas do “Sopro criativo”, somos habitados por uma “fome e sede” de eternidade, de infinita liberdade, de vida plena...

Muitas são as pistas sobre o lugar onde se encontra a “chave da felicidade”. Alguns o situam na arte; outros, numa religião fundamentalista; muitos, num consumo desordenado; vários, na política alienada; tantos, no sucesso a todo custo; poucos, na militância comprometida; inúmeros, no trabalho estressante; raros, no serviço desinteressado...

A sociedade de consumo que tudo invade, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja... e de novo empreendemos nossa busca.

A felicidade não se encontra na saída e nem no final. Parodiando Guimarães Rosa, podemos dizer que ela está presente na travessia.

Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; é experimentar uma sensação de renascimento contínuo, de satisfação interior... ou sentir despertar em si um potencial de bondade, muitas vezes desconhecida...

A felicidade não vem a nós a partir de fora, nem nos espera no futuro; tampouco se encontra em “algo” que deveríamos alcançar. A felicidade se identifica com o que somos; é outro nome de nossa identidade profunda e transcende toda circunstância e acontecimentos.

Muitas vezes somos ignorantes de nosso estado de felicidade; na essência, já somos felicidade. O problema é que nos identificamos com o que não somos e, nessa mesma medida, nos afastamos da felicidade quando a localizamos em “algo” ou a projetamos “fora”. Mas a felicidade não é um “estado de ânimo” que pode variar, mas um “estado de ser”, que nasce justamente da experiência profunda de nossa vida e que é capaz de abraçar todos os estados de ânimo.

A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir a cada dia que a vida se inicia novamente a cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura...

As bem-aventuranças, pronunciadas por Jesus sobre um monte, tem o caráter de uma teofania e constituem umas das páginas mais belas da sabedoria universal. Falam de uma felicidade diferente que  abre caminho em meio às adversidades e contradições. Cada frase é uma passagem, uma páscoa, onde chega ao auge o que parece contraditório: bem-aventurados são os que sofrem, os pobres, os persegui-dos, os humildes, os que choram... pois demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são, verdadeiramente, os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um novo mundo.

Tanto as bem-aventuranças como o Reino são trans-confessionais. São atitudes que aproximam todos os seres humanos. Seu caráter universal é o que faz com que muitas vezes sejam lidas em encontros inter-religiosos. Elas nos convocam a ir além de nossos pequenos e atrofiados lugares, em direção a uma terra prometida da qual já falavam os profetas de Israel.

Para surpresa de todos, Jesus subiu a uma montanha para ver o amplo horizonte da vida e lá fez um profundo mergulho em seu interior, estimulando também os discípulos e a multidão a descerem no insondável mundo do “eu profundo”. É ali que se encontra a fonte das inspiradas “beatitudes”, aquelas que tecem nossa vida e nos fazem originais.

Não há outro modo de alcançar o divino a não ser “escavar” e fazer emergir aquilo que é mais nobre e humano, escondido nas profundezas da vida. Para ativar as bem-aventuras é preciso perfurar a dura casca do ego inflado e prepotente.

Nas afirmações surpreendentes de Jesus, são chamados de bem-aventurados ou felizes aqueles que vivem em sentido contrário ao que o mundo propõe: pobreza, mansidão, paz, compaixão, sensibilidade solidária.

A felicidade evangélica não é como aquela que o mundo vende, ou seja, euforia fácil e prazer imediato. Ela é muito mais um chamado à plenitude e sabe suportar os embates que a vida apresenta. Com frequência, associamos a felicidade à ausência de problemas, ao êxito econômico, à beleza perene ou ao prazer em todas as suas dimensões. No entanto, tudo isso esgota ou é simplesmente insustentável, pois não tem consistência interior.

Não podemos considerar as bem-aventuranças como leis ou como algo a cumprir. Elas são o horizonte, a meta, o tesouro a descobrir. Devemos nos aproximar de cada uma delas como “atributos divinos” presentes em nosso interior e no interior de todas as pessoas. Elas são como estradas através das quais avançamos até viver na “dinâmica do Reino”, que tantas vezes encontra resistência frente a outras dinâmicas egóicas e formas de viver auto-centradas que nós mesmos alimentamos.

- Ao escutar e acolher que somos felizes quando somos “pobres de espírito”, significa ter alcançado a liberdade interior, ser conscientes de onde colocamos a segurança de nossa vida. Mas também implica viver uma existência simples e despojada, sentindo-nos chamados a partilhar os dons e a nossa própria vida com os mais necessitados.

- Quando Jesus proclama que devemos ser “mansos, para possuir a terra” percebemos a radical diferença frente ao orgulho e prepotência cultivados pela nossa sociedade. A mansidão é fruto do Espírito, próprio de quem deposita toda sua confiança em Deus. Se vivemos tensos, agressivos diante dos outros, acabamos cansados e esgotados. Mas, quando olhamos nossos limites e fragilidades com ternura e mansidão, sem nos sentir superiores ou inferiores a ninguém, podemos viver mais integrados, evitando desgastar energias em lamentos ou dissimulações inúteis.

- Ao escutar que somos felizes quando “sabemos chorar com os outros”, significa compartilhar o sofrimento alheio e enfrentar as situações dolorosas, solidarizando-nos com o sofrimento do mundo para transformá-lo.

- E continuamos escutando que somos felizes, bem-aventurados, quando sentimos “fome e sede de justiça”, ou seja, quando emerge de nosso interior um impulso mobilizador para que a vida digna seja possível para todos e sentimos isso como se sente a fome, a partir das entranhas.

- Quando somos “misericordiosos”, significa que deixamos fluir de nosso coração o amor recebido de Deus, significa que estamos acolhendo os outros incondicionalmente, assim como nos sentimos acolhidos por eles.

- Ao nos descobrir que somos felizes quando temos “um coração limpo para poder ver a Deus”, significa ter um coração simples, sem falsidade, autêntico, transparente.

- E nos admiramos, nestes tempos tão sombrios, ao escutar que somos felizes quando “trabalhamos pela paz” sem excluir ninguém; construímos paz quando buscamos o consenso, a harmonia, o perdão, a possibilidade de vida para todos.

- Mais ainda, no final nos é dito que somos felizes quando nos sentimos “perseguidos por causa da justiça”, porque o Reino de Deus pede uma sociedade justa e em paz e isto não é possível sem uma grande dose de entrega pessoal para contrapor todos os obstáculos que nascem dos interesses pessoais e dos egoísmos grupais, retardando a plenitude do Reino.

Texto bíblico: Mt 5,1-11

Na oração:

“Contemplar” o significado de cada bem-aventurança; verificar em que medida e em que circunstância ela se faz visível em sua vida.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Tudo Começou na Galileia

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 3º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas...” (Mt 4,23)

Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública.

Uma decisão que foi essencial em sua vida, porque Jesus permaneceu na Galileia até pouco antes de morrer.

Jesus viu claramente que o melhor lugar em que Ele podia e devia comunicar sua mensagem era precisamente a Galileia. Assim sendo, é evidente que o lugar de onde fala condiciona o que essa pessoa diz. Não é a mesma coisa falar de uma cátedra no Templo que da janela de uma casa simples em um povoado perdido.

“Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia” (At. 10,37), dirá Pedro em seu discurso, batizando para sempre a Galileia como lugar dos começos. Os galileus não viviam preocupados em conservar a memória de antepassados ilustres ou de veneráveis predecessores; nenhum personagem de peso tinha marcado aquela região com sua fama; nenhuma tumba patriarcal a havia convertido em terra sagrada; nenhum profeta ocorreu nascer ali. O pior da Galileia já havia sido descrito por Isaías quando disse: “caminho do mar, do outro lado do Jordão, Galileia dos gentios... (8,28). Respiravam ares de liberdade naquela sociedade mesclada e heterogênea, acostumada ao vai-e-vem das caravanas do Oriente e de muitos gregos e romanos nas ruas das cidades. Havia algo de “marginalidade” em uma Galileia refratária a continuar escutando os discursos, palavras e temas de sempre.

O fato é que Jesus, para realizar sua missão docente, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Logo após sua decisão, Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência, que não vivia na abundância e que, ainda por cima, tinha má fama, má reputação. Os “galileus” do tempo de Jesus não gozavam de especial estima (Jo 7,52); eram considerados ignorantes e impuros com os quais se devia manter distância.

Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes e, muito menos, os que tinham poder e dinheiro.

Mais ainda, quando Jesus tomou a decisão de ir pregar na Galileia, o que na realidade fez foi dirigir-se a um país governado por um tirano sem escrúpulos (Herodes) e que não estava disposto a admitir “denúncias proféticas” de ninguém. Portanto, Jesus foi para esta região ciente de que estava “entrando na boca do lobo”. Mas nada disso o desviou de seu projeto de ir em busca dos pobres e dos marginalizados, nem o fez tomar precauções para denunciar as mazelas dos poderosos de seu tempo.

Por isso, Galileia é o lugar da luta e compromisso pela vida, o lugar dos excluídos e desprezados, o lugar do discipulado, o lugar no qual Jesus realizou os gestos libertadores em favor da vida.

Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora que vem das periferias e das margens, daqueles que se empenham por imprimir um movimento novo à história; neste lugar está a semente na qual Jesus viu a possibilidade de uma vida diferente, nova e mais promissora. 

E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade.

Foi na Galileia que Jesus anunciou uma notícia alvissareira: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”; foi na Galileia que Jesus lutou contra os poderes que atentavam contra a vida; foi ali que Ele abriu novo horizonte de vida a todos; foi ali que Ele despertou a esperança no coração de cada um: um mundo de fraternidade, de comunhão, de acolhida, de relações sadias... 

O “Reino de Deus” constituiu o centro da mensagem de Jesus: a utopia que enchia seu coração, embora nunca explicasse seu conteúdo concreto. Poderia ser traduzido como o projeto de uma nova humanidade, centrada na vivência da fraternidade e marcada pela compaixão.

Por isso, o anúncio de Jesus não é, em princípio, uma exigência moral, nem a constituição de uma nova religião, com sua doutrina, normas, ritos... O original na mensagem de Jesus está no chamado a despertar, a tomar consciência da nossa verdade mais profunda. Dessa compreensão brotará uma atitude e um comportamento coerentes com o projeto humano – que é o projeto divino – do “Reino de Deus”.

Galileia foi também a terra do chamado e do discipulado. No evangelho de Mateus, a cena do chamado de Jesus nos introduz na dinâmica da troca de olhares. A resposta ao chamado só é possível a partir do olhar inspirador e mobilizador de Jesus, que consegue ter acesso ao seu oceano interior de cada um e faz emergir as ricas possibilidades, criatividades, inspiração...

Com sua presença instigante, Jesus desperta, ativa e faz vir à tona o que há de mais humano nas pessoas e o potencializa. Debaixo das cinzas do cotidiano, encontram-se as brasas da paixão, daquilo que é mais nobre.

Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior; Jesus os desafia a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.

“Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada pessoa; é ajudar as pessoas a viverem com sentido, tirando-as do mar da desumanização.

O chamado-resposta é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior.

Jesus revela a extraordinária capacidade de “pescar” o maior bem possível do outro, de fazer brotar o melhor de cada um, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais.

“Pescar o humano” é extrair a melhor e mais original versão humana de cada um, garimpar a autêntica qualidade humana no cascalho das limitações e fragilidades presentes em todos nós.

No contexto do chamado-resposta somos mobilizados a viver a experiência de ter os olhos fixos em Jesus e de nos sentir olhados por Ele, deixando-nos afetar pela Sua Pessoa, Suas relações, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado...

“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus e sua Palavra mobilizadora ressuscitam o nosso olhar tímido e estreito e nos capacitam a olhar novas realidades: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar e sua palavra nos predispõem a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual e plural com amor, com entusiasmo e criatividade.

Jesus nos precede com seu olhar, se adianta à nossa necessidade, nos convida e nos desafia a ir mais além de nós mesmos, destravando nossa estreita vida; em outras palavras, o olhar de Jesus vai mais além da casca humana para buscar o que é mais nobre e digno em cada pessoa. Este jogo de olhares é humanizador e não possessivo: nosso olhar fixo em Jesus e deixar-nos olhar por Jesus.

Uma vez que levantamos o olhar para Jesus e nos deixamos olhar por Ele, brota a Palavra. Depois do olhar, a Palavra. Depois do amor, a missão. O olhar de Jesus gera uma atitude de serviço.

Texto bíblico: Mateus 4,12-23

Na oração:

Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a fazer opções mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.

- Sinta-se movido(a) a ser original, criativo(a), audacioso(a) em dar um estilo e um matiz diferente à principal mensagem de Jesus: a doação ao próximo, o serviço gratuito, a presença inspiradora em um mundo que interpela a sair das estreitas fronteiras pessoais.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Seguidores(as) de Jesus, “empapados-as” com seu Espírito

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 2º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo” 

É muito significativo que o segundo domingo do tempo litúrgico comum continue falando de João Batista. Tudo o que o evangelista João nos diz do Batista é surpreendente. Ele nos indica uma relação especial de Jesus com o João do deserto. O evangelista quer deixar claro que não há rivalidade entre eles. Por isso nos apresenta um Batista totalmente integrado no plano de salvação de Deus. Sua missão é a de ser precursor, ou seja, preparar o caminho para o verdadeiro Messias.

Recordemos que João não narra o batismo de Jesus em si; vai diretamente ao centro e nos fala do Espírito, que é o mais importante em todos os relatos do batismo do nazareno.

O evangelho deste domingo, com o qual iniciamos o Tempo Comum, depois das festas natalinas, nos convida a fazer uma reflexão sobre o sentido do que celebramos, sobre o que foi verdadeiramente importante nestes dias.

Quem é este Jesus que nasceu entre nós? Como é esta Pessoa que o Pai nos enviou? Como Ele afeta nossas vidas?

São as perguntas que as primeiras comunidades cristãs também fizeram a si mesmas e são suas respostas que nos chegam neste texto que o evangelho de João põe na boca do Batista, saltando toda cronologia.

João Batista que nos acompanhou durante o Advento é agora, ao terminar o tempo do Natal, aquele que nos diz: “ficai atentos, abri os olhos, descobri quem é, na verdade, este Menino que nasceu para nós e como tem a força do amor para libertar nossas vidas”.

João não fala porque ouviu dizer, nem estudou nos livros; ele nos fala de sua própria experiência. Afirma que “vê” Jesus que se aproxima dele, que vem ao seu encontro e descobre n’Ele algo novo, que “não conhecia”. Descobre exatamente quem é Jesus. Esse a quem ele mesmo saiu a anunciar, mesmo sem conhecê-lo. E isso que ele vê não o deixa indiferente: afeta-o profundamente, move a tomar posição, a se re-situar diante de sua missão.

João Batista confessa a Jesus como o “Cordeiro de Deus”, expressão muito familiar e significativa para o povo judeu contemporâneo de Jesus, mas não para nós. Era para eles uma clara referência à saída do Egito, ao cordeiro com cujo sangue eram marcadas as portas das casas dos judeus e os livrava da morte, abrindo-lhes o caminho para a libertação, saindo do lugar de sua escravidão para viver em liberdade. Recorda-nos o cordeiro que era sacrificado para celebrar, cada ano, a festa da Páscoa, este acontecimento fundamental para a vida de fé do povo de Israel.

Mas João continua: “este Cordeiro de Deus tira o pecado do mundo”. Fala de pecado, no singular; não está nos falando dos pecados ou falhas individuais, mas da situação global de opressão que impede o ser humano de ser plenamente pessoa segundo o plano de Deus. Todos os demais pecados se reduzem a este; ou, em outras palavras, este “pecado do mundo” é fonte de todos os outros pecados.

Trata-se do grande pecado de “raiz”, presente no coração de todos, que se expressa como ruptura de relações entre as pessoas, quebra de comunhão, esvaziamento da capacidade de amar... Pecado que brota de um coração petrificado, insensível e que se encarna nas estruturas sociais-políticas-econômicas-religiosas, alimentando divisão, ódio, intolerância... Este “pecado do mundo” apresenta vários rostos: injustiça, humilhação, violência em sentido moral e físico...

Jesus “tira o pecado do mundo” com sua maneira de viver, elegendo o caminho do serviço, da humildade, da pobreza e da entrega em favor da vida. Esta atitude é fruto de uma radical liberdade que lhe permite ser “homem autêntico”, eliminando de sua vida toda opressão e anulando toda forma de domínio sobre Ele. Por isso, Ele é portador da salvação radical para todos.

Jesus viveu esta liberdade durante toda sua vida. Foi sempre livre; não se deixou avassalar nem por sua família, nem pelas autoridades religiosas, nem pelas autoridades civis, nem pelos costumes ou tradições impostas pelos letrados e fariseus. Tampouco se deixou manipular por seus amigos e seguidores, que tinham objetivos muitos diferentes dos seus (zelotas, Pedro...)

João Batista completa, assim, seu testemunho reafirmando seu olhar contemplativo sobre Jesus. Contemplar é mais que ver, é observar com atenção, interesse e profundidade. E acrescenta que “viu” o Espírito que estava com Ele. E essa contemplação lhe abre os olhos e descobre, na pessoa do nazareno, o Messias do Senhor, o esperado dos profetas. Desvela a origem divina de Jesus, quando percebe que n’Ele está o Espírito. O Filho de Deus é quem batizará com Espírito Santo e fogo.

A humanidade de Jesus está inundada do Espírito; é a humanidade do Filho de Deus possuída pelo Espírito, guiada pelo Espírito. Jesus é, por excelência, o homem nascido do Espírito e se deixa conduzir pelo Espírito do Pai, vivendo intensamente o seu tempo presente. “Tempo carregado” da presença do Espírito; por isso, tempo criativo, inspirador...

“Deus armou sua tenda entre nós” e seu Espírito está nas entranhas de nossas vidas e nas entranhas mesmas da história da humanidade. Assim, os cristãos se deixam transformar internamente pelo Espírito de Jesus.

Esquecer isto é mortal para a Igreja. O movimento de Jesus não se sustenta com doutrinas, normas ou ritos vividos exteriormente. É o mesmo Jesus quem há de “batizar” ou “empapar” os seus seguidores com seu Espírito. E é este Espírito que há de animá-los, impulsioná-los e transformá-los. Sem este “batismo do Espírito” não há cristianismo.

Não podemos esquecer isto: a fé que há na Igreja não está nos documentos do magistério nem nos livros dos teólogos. A única fé real é a que o Espírito de Jesus desperta nos corações e nas mentes de seus seguidores. Esses cristãos simples e honestos, de intuição evangélica e coração compassivo, são aqueles que de verdade prolongam o modo de ser e viver de Jesus e abrem espaço à ação de seu Espírito no mundo. Eles são o melhor que temos na Igreja.

Infelizmente, há muitos outros que não conhecem por experiência essa força do Espírito de Jesus. Vivem uma “religião de segunda mão”. Não conhecem nem amam a Jesus; não O seguem porque não se identificam com Ele. Contentam-se com algumas práticas piedosas, alienadas, autocentradas.

Simplesmente creem no que os outros dizem e não experimentam em seu coração nada do que viveu Jesus.

O que os cristãos hoje precisam não são catecismos que definam corretamente a doutrina cristã nem exortações que apresentem com rigor as normais morais. Só isso não transforma as pessoas. Há algo prévio e mais decisivo: narrar nas comunidades a pessoa de Jesus, ajudar a que as pessoas entrem em contato direto com o Evangelho, ensinar a conhecer e amar a Jesus, aprender juntos a viver com seu estilo de vida e seu Espírito.

João Batista aponta para uma pessoa: “este é o Filho de Deus”. Ele não aponta para uma religião, para uma doutrina, para um código de normas e leis.

Recuperar o “batismo do Espírito” é a primeira missão da comunidade dos seguidores de Jesus.

Texto bíblico: Jo 1,29-34

Na oração:

Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.

Deixar o Espírito “pousar sobre nós” é dispor-nos a algo grande. A missão que Ele nos anima a viver é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. É Ele que nos faz mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós.

Somos feitos disso: desejo, busca, esperança... No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz clamar: “Vinde Espírito Santo!”

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Não percas a “estrela” de tua vida

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da celebração da Epifania do Senhor.

“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)

Mateus começa e termina seu evangelho dando a Jesus o título de “rei dos judeus”. Trata-se de um “rei” que nasce e morre rompendo todos os esquemas das realezas mundanas: nasce em uma gruta que acolhia animais e morre numa cruz.

Em seu nascimento, os Magos vão em busca do “rei dos judeus”. Se estamos falando de um rei, compreende-se que os magos o buscaram na cidade dos grandes palácios, ou seja, em Jerusalém. Equivocaram-se de caminho e de lugar, porque o “rei” que tinha nascido era tão diferente e tão novo que só podia nascer entre os pobres. O evangelista Mateus não se refere a nenhuma realeza que não seja a de Jesus. Foram as tradições populares posteriores que, usando muita imaginação, consideraram os Magos como reis. O evangelista só reconhece um rei, que é Jesus. Por isso os magos se prostam diante dele e o adoram.

Estamos celebrando a Epifania, quer dizer “manifestação”. Se o Senhor não se manifestasse, sua Encarnação não teria chegado à toda a humanidade. Pois bem, a manifestação de Deus em Jesus tem um alcance universal, está destinada a todos os seres humanos.

É interessante que a tradição tenha interpretado que os três magos procediam dos três continentes até então conhecidos: África, Ásia e Europa. O mago negro aparece sempre. No Reino de Jesus Cristo não há distinção de raça ou de origem, não há diferenças nacionais, nem sociais, nem religiosas. Todos são filhos e filhas do mesmo Pai. Jesus Cristo une todos os povos e todas as pessoas, sem perder a riqueza de sua diversidade.

Os Magos são aqueles que vieram dos confins da terra ao encontro do Menino, os estranhos ao povo judeu, os que não eram da raça do recém-nascido, os afastados. Também para eles nasceu o filho de Maria. E também a eles deve chegar a boa notícia do Evangelho.

O Evangelho é para todos os seres humanos porque, mesmo sem saber, todos buscam a Cristo, já que Ele é o “princípio e modelo dessa humanidade renovada à qual todos aspiram, cheia de amor fraterno, de sinceridade e de paz” (Vat. II). A partir desta perspectiva, os Magos representam a humanidade em busca de paz, verdade e justiça. Representam o desejo profundo do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro d’Aquele que se “humanizou” plenamente. Há sempre uma “estrela” na vida de todos indicando o caminho para a gruta da simplicidade e do despojamento, “lugar” onde se faz visível o “novo rebento” da vida.

Talvez a presença da “estrela” no relato dos Magos tenha suas raízes na bonita tradição judaica que diz: quando uma criança nasce, “acende-se” uma estrela no céu. Por isso no céu há tantas estrelas. Quando nasce uma criança, acende-se uma luz, um mundo de possibilidades se abre, um universo pessoal se faz visível no espaço da comunidade humana.

A estrela, porém, moveu os Magos a que deixassem de olhar para ela, mas que olhassem antes para o lugar, na Terra, que a sua luz iluminava. Ali havia uma presença surpreendente que dava sentido a todos os peregrinos desta terra.

Cristo como “estrela”, é guia dos homens e mulheres, e por isso “desce” à terra. De fato, a estrela se deteve no presépio, onde estava Jesus. A estrela, portanto, é Jesus presente no cosmos; logo, o cosmos fala implicitamente de Cristo, embora sua linguagem não seja totalmente decifrável para o ser humano.

A Criação inteira desperta no interior de todos uma sintonia com Aquele que, a partir da gruta, abre seus braços para a todos acolher. Suscita também a expectativa, mais ainda, a esperança de que um dia este Deus se manifestará plenamente. A partir de então, as verdadeiras “estrelas” serão as pessoas que mostrarão o novo caminho para o Deus encarnado.

Para a Igreja do Oriente hoje é o dia da Natividade, o dia que Jesus se manifestou como a Luz do mundo, o dia que Deus elegeu para manifestar-se a todos os homens através da pequenez do filho de Maria.

Como os Magos, esta cena nos convida a também “cair de joelhos”.

E por que fazer isso? Porque quando aqueles Magos se levantaram já não eram os mesmos.

Ajoelhar-se pode parecer um gesto servil, mas em ocasiões como esta é um gesto de humildade. Implica descer do pódio do ego ao qual subimos constantemente, acreditando ser os melhores, os mais sábios, os mais formosos, os mais perfeitos. De joelhos pedimos compaixão, ajuda, clemência, compreensão, misericórdia. E levantar-nos é poder de novo estar de pé, tendo passado pela experiência da pequenez.

Além disso, pôr-se de joelhos diante daquele Menino de Belém é abrir passagem à ternura, à grandeza que não está em saber mais, nem ser mais forte, mas em ser mais humano, e por isso, profundamente imagem de Deus. E ajoelhar-se diante daquele menino é deixar-se deslumbrar, despertar o assombro e o encanto.

Quando entregamos a luz a alguém, parece que tudo em sua vida se torna mais luminoso, e essa luz se expandirá. Quando alguém recebe sol revela um aspecto mais vital, mais saudável...; é a isso que nos convida a celebração da Epifania.

Como Igreja e como cristãos temos de repensar muitas coisas, mas não a partir do poder (Herodes e Jerusalém), mas a partir da Luz. A revelação, a estrela, estão no fluxo da história da Igreja e da humanidade; precisamos ativar nossa essa luz para que ilumine cada situação humana e eclesial. É preciso despertar os “magos” que nos habitam para sairmos de nossa “normalidade doentia”, de nossos lugares atrofiados, de nossas visões estreitas... Somos seres de travessia; quem não se desloca apaga a estrela que o habita.

Esta festa nos convida a descobrir a epifania não só em nós, mas em tudo e em todos; ela nos inspira a respeitar e acolher quem pensa, sente e ama de maneira diferente. Esta festa também nos instiga a viver a cultura do encontro frente à cultura da indiferença e intolerância que geram tantas rupturas.

Os Magos são sinal da grande missão cristã, ou seja, da missão do evangelho que se abre como dom a todos os povos e culturas da terra, não para conquistar ninguém, nem para fazer proselitismo, nem para destruir outras culturas, mas para oferecer a todos os povos uma experiência de gratuidade.

Em um mundo de pobreza e exclusão, marcado por tanto ódio e intolerância, somos portadores da riqueza de Deus, do amor feito presente... Só podemos encontrar nossa verdade em Jesus quando entramos na Gruta de Belém, onde encontramos Aquele que não foi recebido na cidade, mas entre estrangeiros e marginalizados; só O encontraremos quando nos aproximarmos das vítimas de Herodes, de ontem e de hoje.

Uma Epifania política, uma Epifania religiosa, uma Epifania social... No centro do relato dos magos está a oposição do Rei Mau (Herodes) que mata os meninos e todos os inocentes para poder reinar e os milhares e milhões de “magos e magas” que, apesar de tudo (apesar de Herodes) continuam buscando a verdade de Deus nas crianças marginalizadas e nos perseguidos. Por isso os Magos são reis e rainhas de um modo diferente: pela realeza do coração, pelo mistério da vida (a luz na noite), pela peregrinação para a verdade que eles encontram em Belém.

Texto bíblicoMt 2,1-12

Na oração:

A mensagem do Evangelho dos Magos é um mapa que nos mostra o terreno onde pisar na busca, encontro e manifestação do “Emmanuel”, Deus conosco. E, em versão do séc. XXI: “Deus em nós”.

Ele é a Luz que brilha em nossa gruta interior.

E então seremos lamparinas acesas e colocadas no candeeiro para iluminar àqueles que nos rodeiam.