quinta-feira, 30 de março de 2023

JERUSALÉM: uma “praça da alimentação”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o relato da "Entrada de Jesus em Jerusalém" - Domingo de Ramos.

“Quando Jesus entrou em Jerusalém a cidade inteira se agitou, e diziam: ‘Quem é este homem?’

Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar da acolhida, ambiente fecundo onde ninguém passaria fome, pois todos teriam o direito de participar da “grande mesa do pão”. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar da inclusão e da partilha, onde se cumpririam as esperanças dos povos.

Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade..., desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.

Jesus entrou em Jerusalém rodeado pelo povo simples. Este povo, escravo e oprimido, o aclamou porque viu n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação; escutou seus ensinamentos e viu seus feitos durante alguns anos; sentiu-se tocado pelas palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz...

Também viu seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de oferta de alimento aos famintos, de reabilitação dos desprezados, de acolhimento dos marginalizados, de denúncia dos opressores...

Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galileia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos.

Esta é a cidade que Deus deseja: uma praça da alimentação, uma mesa celebrativa para todos. A praça é de todos e todos podem ter acesso a ela, todos podem circular livremente, criar relações e convivência, fazendo a experiência de serem aceitos e reconhecidos como humanos. 

A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de festa e de memória, lugar da partilha do pão e dos frutos da terra. Ali ninguém passa fome.

Compartilhar a mesa é o grande símbolo da convivialidade, da reconciliação e da inclusão. O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, de opções. A comunhão acontece por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem...

A mesa da refeição se torna lugar de humanização do ser humano. Espaço de verdadeira reserva de humanidade. Muitos são aqueles que sabem abrir as mãos, partir o pão, saciar a fome do irmão.

Com o gesto do “re-partir” se estabelece uma rede de relações entre as pessoas que aceitam conspirar, co-inspirar, o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma causa.

E nada fica como estava... encantamento que faz ressuscitar a vida que já estava morta; refeição que transforma os desertos em mananciais de água.

Fazer memória da entrada de Jesus em Jerusalém pode ser uma ocasião privilegiada para transitarmos por nossa Jerusalém interior, um bom espaço onde encontrar a nós mesmos, identificar-nos com os diferentes personagens e sentir-nos parte daquela história. O relato da Paixão de Jesus revela ser também a história de cada um de nós. Porque, afinal de contas, é uma história que aconteceu no passado e continua acontecendo também hoje em nossa interioridade. E é a partir do hoje que nós temos de vivê-la, numa atitude contemplativa. E é a partir de nós, e não a partir daqueles personagens de então, que teremos de assumi-la.

Vamos, então, com Jesus montado num jumentinho, transitar pelas ruas de nossa Jerusalém interna, reconhecendo os diferentes personagens que ali atuam e que significam diferentes atitudes vividas por cada um de nós. Cada personagem do evangelho é um espelho onde nos vemos.

Jerusalém não é só uma cidade geográfica, situada na Palestina. Domingo de Ramos nos motiva a fazer o percurso em direção à nossa Jerusalém interior. Mas, para descer em direção a esta cidade é preciso despojar-nos da vaidade, do prestígio e do poder, montado no jumentinho da simplicidade.

Nossa Jerusalém interior é também lugar das contradições e ambiguidades; ali dentro experimentamos a trama de relações conflitivas, ali nos deparamos com as angústias, carências e dúvidas...

É preciso cuidar o coração da nossa “Jerusalém interior”, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde e acolhedor espaço, para que o Espírito do Senhor possa aí descer e habitar, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...

É preciso voltar a pôr o “coração de Deus no coração de nossa Jerusalém”. Faz-se necessária uma opção corajosa, como Jesus, para entrar e estar no interior de nossa Jerusalém, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus, que pulsa no ritmo dos excluídos, dos sofredores, dos sedentos.

A Campanha da Fraternidade deste ano quer despertar em nós uma sensibilidade solidária com aqueles que são vítimas de uma estrutura social e política que concentra os bens nas mãos de poucos, de maneira especial os alimentos. “Fraternidade e fome” denuncia a vergonhosa chaga social dos famintos em um país que é grande produtor de alimentos. A fome clama aos céus e ressoa em nosso coração; ela é expressão de uma profunda incoerência dos cristãos que se dizem seguidores d’Aquele que veio multiplicar os alimentos. Estamos muito distantes das primitivas comunidades cristãs que “tinham tudo em comum, partiam o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46).

Nosso coração deve se revelar como “praça da alimentação”.

O lema da Campanha da Fraternidade deste ano – “dai-lhes vós mesmos de comer”nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais, criatividade, espírito de busca... São alimentos que plenificam e dão sabor à nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento salutar”. Afinal, alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.

“Dai-lhes vós mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de famintos, presentes em nossas cidades: famintos de alimento, de proximidade, de justiça, de comunhão, de afeto...

Para Jesus, uma humanidade constituída por nações, cidades, instituições ou pessoas comprometidas em alimentar os famintos, vestir os desnudos, acolher os imigrantes, atender os enfermos e visitar os presos, é o melhor reflexo do coração de Deus e a melhor concretização de seu Reino.

Esta é a utopia do Reino; tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre elas mesmas e com Deus, sem exclusões, competições nem privilégios. Isto é possível porque todos se deixam afetar pelo dom do mesmo Reino que cresce já no coração de todos.

Texto bíblico: Mt 21,1-11

Na oração:

Procure descobrir os sinais do Reino de Deus no meio da aparente confusão de sua Jerusalém interior: lugar da partilha? espaço aberto e acolhedor?...

- Como re-criar, no coração da cidade interior, o ícone da Nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade?

- Você já parou para pensar na abundância de recursos e nutrientes em seu coração e que poderia compartilhar com os outros? Em seus celeiros interiores há abundância de alimentos que humanizam.

- “Diga-me como você habita sua cidade interior e eu lhe direi como é sua presença no seu espaço urbano”.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Os Sinais de Páscoa no Horizonte da Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 5º  Domingo da Quaresma (2023).

“Eu Sou a Ressurreição e a Vida” (Jo 11,25) 

O tempo quaresmal caminha para o ponto culminante: a vivência do Mistério Pascal, a celebração da Vida plena, sem as amarras e os condicionamentos que travam o fluir de nossa vida. Tal como uma sentinela, situada numa posição estratégica, já estamos vislumbrando no horizonte os sinais da Páscoa.

Por isso, a liturgia deste domingo nos traz um relato inspirador, onde Jesus se revela como a Porta da Vida. Cruzar essa porta é apelo Seu, mas é decisão nossa empurrá-la suavemente para dentro e avançar em direção à vida que, a partir do mais íntimo, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude.

No contexto anterior à ressurreição de Lázaro aparece de novo o tema das obras, desta vez em relação com o verbo crer: “Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim. Mas, se eu as faço, mesmo que não queirais crer em mim, crede nas minhas obras, para que saibais e reconheceis que o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo 10, 37-38). Na cena deste domingo, Jesus vai realizar a obra por excelência do Pai que é comunicar Vida, destravando-a das faixas e tirando-a do túmulo da morte.

A beleza e a sabedoria do relato deste 5º. domingo da Quaresma consistem em integrar, na pessoa mesma de Jesus, uma dupla afirmação: “Jesus chorou” e “Eu sou a ressurreição e a vida”.

Essa é, justamente, nossa condição humana: somos seres frágeis, sensíveis, a quem nos afeta o que acontece e, ao mesmo tempo, somos Vida que se encontra sempre a salvo. Nós nos percebemos como pura necessidade e carência – portanto, vulneráveis -, mas, ao mesmo tempo, somos plenitude à qual nada lhe falta.

Como Jesus, somos, ao mesmo tempo, sensibilidade – por isso choramos -, e somos Vida. E isto é o que na tradição cristã se expressou com o termo “ressurreição”.

Assim fez Jesus em Betânia: mostrou sua vulnerabilidade humana frente o amigo “que dorme”.

A morte será sempre uma história de dor e lágrimas. Quem não experimentou dor diante do sofrimento e morte de um ser querido? Quem não se sentiu, como Marta e Maria, em muitos momentos?

Também Ele sente os golpes da vida, sente a dor de quem perde um irmão e se faz solidário.

O sofrimento pode nos despertar para a dimensão de profundidade da realidade e de nós mesmos. Mas necessitamos passar por um processo de transformação para que o sofrimento e a dor nos abram ao Mistério e não nos afundem no desespero. Jesus vai ajudar Marta e Maria a passar por este processo.

Voltar à casa de seus amigos, num momento em que eles estão tão feridos, supõe também a Jesus deixar-se ferir. Algo terá Ele que perder para dar-lhe ao amigo. A amizade nos faz vulneráveis: “Mestre, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-te, e agora vais outra vez para lá?”

Jesus vai abraçar a perda de seu amigo até o fundo; e quando a dor e a perda se abraçam, deixam de ser nossos inimigos. “Ficou interiormente comovido e se aproximou do túmulo”, que um dia acolherá também seu corpo. Percorreu assim o caminho que depois percorreriam as mulheres depois de sua morte.

As perdas, a dor, a morte, aproximam uns dos outros. Marta e Maria já não estão numa relação de competição nem de rivalidade e enviam, juntas, uma mensagem a Jesus. Mensagem que revela uma confiança profunda nas possibilidades do amor: “Senhor, aquele que amas está doente”. Não lhe dizem “nosso irmão”, porque querem vinculá-lo a Jesus.

A amizade leva-as a crer nas possibilidades latentes no amigo, em seu potencial ilimitado, em sua capacidade de amar e ser amado, em toda a novidade que quer irromper nele.

E é nesta situação de vulnerabilidade onde Marta se deixa ordenar e faz sua aprendizagem de verdadeira discípula. Que foi aprendendo Marta desde aquela vez que pedia ajuda à sua irmã? Agora é uma mulher que cresceu e que se atreve a expressar uma petição maior, não mais para si mesma, mas para seu irmão, e diz a Jesus: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido... Mesmo assim, eu sei que tudo o que se pede a Deus, Ele te concederá”.

Este contato com seu amigo Jesus, num momento em que ambos compartilham a dor pela perda da pessoa querida, vai fazer Marta amadurecer. Daí em diante será uma mulher desperta, capaz de despertar a outros, e por isso pode dizer à sua irmã: “O Mestre está aí e te chama”.

Jesus foi “traído” pelo seu afeto. Aquele que é o Senhor da Vida, o vencedor da morte, tem um coração que ama como o coração do irmão mais fiel, do pai mais sensível... Jesus é atingido pela dor, é agitado por uma perturbação que brota de dentro dele mesmo e que não consegue controlar; a causa da sua emoção é a presença trágica da morte nos que o rodeiam, mas também com a sua morte iminente, que será devastadora.

Diante da morte, todos sentimos nossa impotência. Queremos que o enfermo fique curado e viva. A ciência médica hoje pode ampliar alguns anos de nossa vida, mas no final a morte termina vencendo o enfermo.

No texto evangélico deste domingo, Jesus, na força do Espírito, comanda a ação: pede às pessoas que afastem a pedra e que soltem as amarras de Lázaro, para que ele possa andar. A ação de Jesus é expansiva pois mobiliza as pessoas para que, por meio de sua cooperação, a vida seja destravada.

A vida com as amarras da fome, da exclusão, da violência... não pode ser chamada de vida.

Diante de uma sociedade que se especializa em impor pesadas pedras e faixas imobilizadoras, defender a vida é caminhar na contramão de tudo que nos diminui como seres humanos.

Há ainda aqueles que vivem a resignação do “quarto dia”, o dia da morte da esperança (para o judeu, o 4o. dia representava o começo da decomposição do corpo). Essas pessoas também precisam ser desamarradas da falta de perspectivas, da falta de esperança, da descrença na vida, da falta de fé n’Aquele que venceu para sempre a morte com todas as suas amarras.

Na 1ª. leitura deste domingo, Deus nos fala através do profeta: “Ó meu povo, abrirei os vossos sepulcros” (Ez 37,12). É uma maneira metafórica de falar. Mas anuncia o cumprimento da maior esperança humana, a vitória sobre a morte. O Deus que nos tirou do nada pode também nos tirar da tumba. É a força de seu amor, a força de seu Espírito.

E não devemos pensar só na morte biológica. Há muitas maneiras de morrer antes dessa morte. Cada um pode conhecer como se chama seu sepulcro (sepulcro da rotina, do medo, do desespero, da perda de fé, da tristeza, do ódio e da intolerância, do preconceito...). E poderíamos nos referir a sepulcros dos vícios, das escravidões íntimas, do consumismo desenfreado, da ignorância, do negacionismo, da falta de liberdade... E, sobretudo, poderíamos nos referir ao sepulcro gigantesco e vergonhoso da miséria e da fome, provocadas pela injustiça e falta de solidariedade.

Todos são sepulcros construídos por nós mesmos. Quem nos livrará de nossos sepulcros! No encontro com Aquele que é Vida, somos movidos a arrancar nossas faixas que impedem nossos movimentos e sair de nossos próprios túmulos. Crer na Ressurreição é já viver como ressuscitados.

Texto bíblico: Jo 11,1-45

Na oração:

Em companhia d’Aquele que é Vida, desça em seu túmulo interior e visualize as “faixas” que estão travando sua vida.

- Deixe ressoar o grito de Jesus: “... Vem para fora!”

- “Viver como ressuscitados(as)”: esta é a paixão que inspira todo(a) seguidor(a) de Jesus. Deixe-se iluminar, leve a luz da vida nas suas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de seu cotidiano.

Páscoa é ter diante de si os desafios da vida.

Rompido o túmulo, resta caminhar...

quarta-feira, 15 de março de 2023

CEGO DE NASCENÇA: “passagem” da margem à iluminação

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo da Quaresma (2023).

“Enquanto estou no mundo, Sou a Luz do mundo” (Jo 9,5) 

A cura do cego de nascença (Jo 9) revela-se como uma instigante narrativa que requer ser lida em seu contexto imediatamente anterior; ali encontramos uma discussão de Jesus com os judeus e que começa com esta afirmação: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). Frente à cegueira cultural-religiosa, Jesus se mostra como Luz na vida.

O relato deste domingo nos põe em contato com Jesus que traz Luz-Vida. Ele não só se revela como Luz, mas, através de seu “toque”, ativa a luz presente naquele que não podia ver a luz do dia. Como no caso da samaritana, é Jesus quem toma a iniciativa, mas o interessado deve responder pessoalmente.

Todo o relato é simbólico; as alusões ao batismo são constantes. A Igreja primitiva chamava o batismo “photismós”, que significa “iluminação”. Trata-se de indicar aos catecúmenos o caminho que precisam percorrer antes do batismo.

Este cego de nascença representa toda a humanidade, porque, em certo sentido, todos somos cegos enquanto não acolhamos Aquele que é Luz. Esta cegueira é a que impede ver a verdade que nos fará livres. Somos cegos quando nos fechamos em nossa mentalidade, critérios, ideologias... Somos cegos quando nos petrificamos no fanatismo, na intolerância e na resistência em perceber a luz que habita naquele que pensa e sente de maneira diferente.

“Jesus ia passando, quando viu um cego de nascença”. O “passar” é uma evocação do caminho do Êxodo, caminho de liberdade. No deserto, Deus é o “clarão” que orienta e move o povo de Israel a fazer a travessia da terra da escuridão para a terra da liberdade. Jesus é Luz que “passa” em meio ao mundo da marginalidade e da exclusão, reacendo a luz da esperança e da vida em cada pessoa.

Jesus é a “Luz que toca”; aqui aparece, com muita força, o símbolo do contato físico. O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato; é a idade da comunhão, a idade da ternura materna. O caminho do tato é o da mais profunda comunhão. Jesus tocava pessoas feridas, quebradas... e sua gestualidade prolongava o sexto dia da Criação.

Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravilhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato.

Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.

Existem forças reconstrutoras presentes em todos nós. Através de suas palavras e do seu toque, o Mestre da Galileia restabelece o contato do cego com a fonte, com os seus recursos interiores. Esses recursos existem em cada pessoa, e cada um pode aproveitá-los. Através do encontro com Jesus e do seu toque, as pessoas descobrem os recursos interiores que devem ser mobilizados. Ele confia nas forças de autocura do ser humano; não precisa fazer tudo sozinho.

No encontro com Jesus, o doente entra em contato consigo mesmo, com as fontes interiores que o Pai lhe deu: estas são as fontes das forças de autocura, de dons e habilidades, de força e de esperança.

Jesus não explica, não faz uma teoria sobre a origem da cegueira (quem pecou?). Realiza algo muito maior: ajuda o cego, afasta-o da cidade alta (dominada por sacerdotes e escribas) e o convida a descer à fonte da vida, abaixo, no manancial de Siloé, que é sinal profético de abundância e de iluminação futura.

Este cego é o homem que não consegue ver desde o nascimento; não se trata de pecado, mas da própria situação vital, da cegueira humana que se expressa, de um modo claro, neste ser humano. Há muitos que lhe querem ensinar a ver (os mestres da lei), mas lhe deixam na cegueira. É uma cegueira que começa sendo externa (não ver as coisas, não compreender o sentido da vida) e que termina sendo interior (não saber quem é, em quem pode confiar, viver sendo manipulado por outros).

Podemos, então, afirmar que o relato de João é um “texto de rebelião”, um texto que denuncia toda religião que aprisiona as pessoas nas trevas do sentimento de culpa, de medo e de impotência. É o testemunho de Jesus que se rebela contra aqueles que querem manter as pessoas cegas, travando a verdadeira identidade delas que se revela como participação na luz divina, presente no interior de cada uma.

Contra tal situação Jesus diz ao cego de Siloé que se rebele, que não permaneça cego à beira do caminho, que veja por si mesmo, que decida, que confesse sua nova liberdade mesmo que isto lhe custe a rejeição das autoridades religiosas, inclusive de seus próprios familiares.

Junto ao cego de nascença se faz visível o pecado de todas as pessoas que não lhe ajudam, que não querem entendê-lo, que o submetem às suas leis e conveniências. Pois bem, Jesus não consola o cego (em sentido superficial), mas lhe diz para ser ele mesmo, que assuma sua própria vida, que desça à água, que se purifique... Jesus mesmo põe barro nos olhos do cego (terra com saliva, alento vital) e lhe diz que vá, que veja, que não tenha medo, que assuma seu destino... Jesus não cria dependência; ativa no cego sua autonomia para que ele seja autor de sua própria vida, inclusive correndo riscos de ser rejeitado.

No fundo, Jesus pede ao cego que se rebele contra uma lei de cegueira, que o obriga a mendigar, sob a “caridade” dos mestres cegos que vivem à custa da cegueira dos outros. Pede-lhe que se rebele, que deixe seu lugar de mendigo, que saia da margem e que recupere sua verdadeira identidade. Trata-se de uma rebelião para a liberdade, para a vida. É uma rebelião que conduz ao encontro com Jesus que é simplesmente “filho do homem”, o homem em plenitude.

O cego passa a crer em Jesus como “filho do homem”, ou seja, como humanidade libertada e libertadora.

Pouco a pouco, o mendigo vai ficando sozinho. Seus pais não o defendem; os dirigentes religiosos o expulsam da sinagoga. Ao ver a realidade com o novo olhar que Jesus lhe ofereceu, já não cabia dentro da sinagoga, lugar de uma atrofiada visão de Deus e da vida.

O que era cego experimentou o amor gratuito e libertador. Para ele é impossível negar o que pessoalmente viveu. Do mesmo modo que Jesus teve que sair do templo, o cego que recebeu a luz, foi expulso da sinagoga.

Jesus não veio colocar uma pequena vela sobre nossas cabeças, mas acender nossa existência humana para que brilhemos a partir de nosso interior, com luz própria. Cada um de nós carrega dentro o combustível inextinguível da luz, colocada por Aquele que é Luz e que ilumina constantemente nossa existência.

Ao despertar, caímos na conta de que não somos o “ego inflado” criado por nossa mente, mas o “eu sou” universal, numa identidade compartilhada com todos.

A luz da treva é sedutora, mentirosa e assassina. Todos levamos dentro resquícios de trevas, espaços onde ainda não deixamos entrar a luz.

Por um lado, temos a luz, a visão e a vida. Por outro, as trevas, a cegueira e a morte. No meio, a longa gestação da luz dentro de nós, que pode progredir na visão de Deus e do mundo como o cego curado, ou que pode crescer também na cegueira das trevas como as autoridades que negam o evidente. Este é o dilema: “Ver ou perecer” (cf. Benjamin Buelta, sj).


Texto bíblico: Jo 9,1-41

Na oração:

Aquele(a) é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo diferente a realidade que o cerca.

Espeleologia é a ciência das cavernas.

A oração é a “espeleologia” que se dedica a explorar as cavernas do “eu profundo”: nossa dimensão iluminada.

O “eu profundo” é um emaranhado de cavernas iluminadas por uma luz que se insinua por frestas estreitas, cavernas que vão ficando cada vez mais fundas e escuras. Lugar do silêncio e da escuta atenta.

Ao entrar na caverna o medo se manifesta; são poucos os que tem coragem de fazer este percurso. Lá dentro tudo é diferente. As vozes se transformam em sussurros; a pupila dos olhos aumenta; também cresce o assombro diante das novas descobertas.

Aqui nos descobrimos sozinhos. Há solidão e silêncio, habitados por uma Presença iluminante e iluminadora que tudo harmoniza, integra e pacifica. Aqui está enraizada nossa identidade (“sou eu”), a verdade do “eu profundo” onde as palavras cessam e podemos ouvir uma serena melodia.

quinta-feira, 9 de março de 2023

A samaritana: de que temos sede?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo da Quaresma (2023).

“E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)

Nestes próximos três domingos da Quaresma a liturgia nos apresenta três grandes relatos do evangelho de João: a samaritana, o cego de nascimento e a revivificação de Lázaro.

A expressão “Eu sou”, característico do quarto evangelho, se encontra nestas três cenas: “eu sou a Água viva”, “eu sou a Luz”, “eu sou a Vida”. São imagens-símbolo que des-velam e nos ajudam a compreender a verdadeira identidade de Jesus; ao mesmo tempo, são imagens que também revelam nossa identidade. É no encontro destas duas identidades que se fundamenta o sentido profundo do seguimento de Jesus.

A Quaresma se apresenta como momento oportuno para enraizar nossa vida n’Aquele que “morreu de tanto viver”; afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não de uma religião, de uma doutrina... Seguir Jesus implica tornar visível em nossa vida o modo de ser e viver d’Aquele que foi o “biófilo”: amigo da vida.

O relato deste domingo – encontro de Jesus com a samaritana – é uma verdadeira catequese, que nos convida ao seguimento d’Aquele que é a Fonte da Vida. Nem no templo, nem em Jerusalém, nem em nenhum outro lugar se pode viver o verdadeiro culto, que se revela como encontro e identificação com Jesus.

Muitas vezes, o que entendemos por prestar culto é apenas idolatria: a tentativa de domesticar e manipular Deus segundo os nossos interesses.

Uma mulher da Samaria chega a um poço para tirar água, alheia a tudo o que ali a espera e distraída na trivialidade de sua vida cotidiana que não se abre ao imprevisível: vai só buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua casa com ele cheio. Não há mais expectativas, nem mais planos, nem mais desejos.

Mas o imprevisível está lhe esperando na pessoa daquele galileu sentado na beira do poço e que inicia uma conversação com ela sobre coisas banais, talvez para não a assustar: falam de água e de sede, de poços e de velhas rixas entre os povos vizinhos, coisas de todos os dias. Repentinamente, irrompe a linguagem “das coisas do alto”, o dom, uma água que se converte em manancial vivo, a promessa de uma sede pacificada para sempre, um Deus em busca do ser humano, fora dos espaços estreitos de templos e santuários.

E, no final da cena, o cântaro que era símbolo da pequena capacidade que está disposta a oferecer, fica esquecido junto ao poço, agora já inútil pois não pode conter uma água viva.

A sede da samaritana – e a de Jesus – é a mesma sede de todo ser humano: é insatisfação radical que não pode ser saciada por nada humano. A sede representa as necessidades e aspirações fundamentais do ser humano: sede de sentido e de plenitude, sede de comunhão e de encontro, sede de vida...

Somos pessoas-sede!

A sede é uma água que nos habita e nos dá vida. A sede é fundamental, essencial. O nosso coração é um «interminável reservatório de sede. Sede de amor. Sede de verdade. Sede de reconhecimento. Sede de razões de viver. Sede de um refúgio. Sede de novas palavras e de novas formas. Sede de justiça. Sede de humanidade autêntica. Sede de infinito» (José Tolentino Mendonça, Elogio da Sede).

Como um bom pedagogo, Jesus acompanha a samaritana a descobrir o desejo de água fresca, a saudade humana de amor e felicidade.

Em termos orantes, o ser humano, todos nós, temos “sede do Deus vivo” (Sl 42,3), que brota de nossa terra ressequida, rachada, sem água: suspiramos como a corça suspira pelas torrentes de água, por Deus. Só o Senhor nos conduz para as fontes tranquilas (Sl 22).

Neste precioso e profundo relato do evangelho de João são tantos os temas que o autor vai alinhavando, a partir de diferentes níveis (histórico, simbólico, espiritual), que se torna impossível aprofundá-los em um breve comentário. A imagem da sede remete à nossa aspiração profunda, incapaz de ser saciada por nenhum objeto. A imagem da água, por sua vez, nos remete à nossa identidade original, que está brotando constantemente em nosso interior.

Jesus aparece como o mestre que nos liberta de enganos e de falsas identificações, para que possamos entrar em contato com a “água viva” que Ele mesmo já saboreia, a única que torna possível “nunca mais ter sede”.

Essa água não é “algo” – algum objeto que possa nos preencher – nem se encontra longe de nós. Constitui nosso núcleo mais profundo. O que normalmente acontece é que – como a samaritana – estamos longe dela. Ao viver “fora” de nós, desconectados da fonte, nos acontece aquilo que S. Agostinho lamentava:

“Tarde te amei, beleza sempre antiga e sempre nova, tarde te amei! No entanto, Tu estavas dentro de mim e era eu quem estava fora”.

O importante é saber que a “beleza sempre antiga e sempre nova” não é “algo” (ou “alguém”) separado de nós, embora possamos nos dirigir a ela em chave relacional, nomeando-a como um “Tú”.

É outro nome da “água” de que falava Jesus, e constitui nossa identidade última, aquela na qual nos reconhecemos quando nossa mente se silencia; aquela que saboreamos quando, simplesmente, nos deixamos ser; aquela que está sempre a salvo e que, para além das aparências mentais, partilhamos com todos os seres.

O encontro com Jesus move a samaritana e, nos convida também, a descobrir o manancial de água viva que flui em nossas entranhas em lugar de continuar sendo buscadores de “poços no deserto”.

Jesus espera a samaritana, como espera cada um de nós, ali onde está a trama de nossa vida. Ele inicia sempre o encontro pedindo-nos daquilo que já recebemos, do que já temos... Junto a Sicar ou ao lado de nossos próprios poços... Não é preciso percorrer um caminho diferente, não pede a ela, nem a nós, ir a nenhum templo, nem lugar sagrado; nossa própria vida, com as circunstâncias nas quais vivemos, é o lugar em que Jesus se faz presente. Às vezes o escutamos e outras nem sequer o vemos.

Ali nos pede, como à samaritana, que entremos no mais íntimo de nós mesmos, que desçamos ao nosso próprio centro, à nossa realidade profunda, que estejamos atentos à nossa própria fonte e à fonte dos outros. O encontro com Jesus não acontece na superfície de nossa vida, no banal ou impessoal, nas aparências ou falsas imagens que tantas vezes alimentamos. A presença d’Ele des-vela (tira o véu) nosso manancial, muitas vezes bloqueado por uma cultura da exterioridade que nos resseca e torna estéril nossa vida.

Em nosso percurso existencial encontramos, muitas vezes, pessoas que são verdadeiras nascentes. São límpidas e transparentes, inspiradoras e mobilizadora, habitualmente delicadas. Estar na presença delas é saciar nossa sede, saímos renovados. São pessoas-fonte que despertam em nós o desejo de acessar nosso manancial interior de desejos, criatividade e busca... É ali, na fonte interior, que a vida se renova.

Outras vezes nos encontramos com pessoas que são verdadeiros lençóis de água. Subterrâneas, circulam debaixo da terra, discretas, silenciosas, mas surpreendentemente criativas. Trabalham no silêncio e fazem mover a engrenagem do mundo com seus gestos escondidos, simples, mas eficazes; suas presenças fazem a diferença. Sem elas não seria possível a vida.

É certo que também há as pessoas pântano, pessoas charco, pessoas “águas paradas” ou águas poluídas, pessoas “enxurrada” que tudo destroem. Claramente, nem todas as águas são boas!

Bebemos de muitas águas e partilhamos muitas fontes. Talvez em nós convivam agora, e em diversas fases da vida, muitas destas águas. A água é dinâmica, viva. Como nós. Não somos estáticos, mas vamos no expandindo ao longo da vida, regando ambientes secos e áridos. Às vezes pensamos que só quando estivermos saciados poderemos saciar, ou só quando formos água boa poderemos matar sedes. No entanto, em nós convivem miséria e grandeza, força e fragilidade, estagnação e movimento, água boa e água pior. Simultaneamente, somos água e somos sede. E o encontro destas duas realidades constitui nossa verdadeira identidade.

Tentar só guardar a nossa água ou permanecer fechados na nossa sede faz-nos definhar e morrer. Sondar as nossas águas e oferecer as nossas sedes é caminho comum de vida e redenção.

Afinal, Jesus fez-se sede para nos redimir.

Texto bíblicoJo 4,5-42

Na oração:

Somos seres insaciáveis, insatisfeitos;  vivemos eternamente buscando, sem saber o quê. Em contato com o “poço infinito” (nosso interior), sentimos a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenchemo-lo com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio... e sentimo-nos frustrados, porque nada  nos satisfaz. Precisamos ativar outras “sedes”.

- Dê nomes às suas “sedes existenciais” que o(a) mantém criativo(a), buscador(a)...

- Escave seu interior e verifique a “qualidade” da água que brota do seu manancial?

quarta-feira, 1 de março de 2023

TRANSFIGURAÇÃO: Ser Presença Iluminante

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo da Quaresma (2023).

“O seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz...” (Mt 17,2)

O evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos apresenta um acontecimento muito profundo e transcendente da vida de Jesus, na presença de seus discípulos. O contexto desta passagem é a subida de Jesus a Jerusalém, antes de sua morte. O Mestre leva consigo três discípulos com os quais já tivera dificuldades devido à falta de compreensão deles com relação à sua missão. Pedro tentara desviar Jesus de seu caminho de Cruz e os outros dois, João e Tiago, disputavam os primeiros lugares no Reino. Jesus deseja revelar a eles, e a nós, que há uma dimensão muito mais profunda neste seguimento e que o impulso egóico deve se esvaziar diante da transcendência de uma vida que se faz entrega.

Ali, no Monte Tabor, também aparecem dois personagens que são referenciais na tradição judaica: Elias e Moisés. Elias é aquele que lhes revela que a Divindade é uma presença única como brisa suave e que se comunica como sussurro interior no mais profundo do ser humano, algo inesgotável. Moisés, em outra dimensão, revela que a Divindade atua na história como ação libertadora de toda opressão.

Na transfiguração, Jesus vai além destes dois personagens e revela que não é um profeta eleito para nos ensinar quem é e como é Deus; Ele mesmo deixa transparecer sua divindade e revela que toda a humanidade é chamada a visibilizar a presença divina em cada um. Deus é Luz que envolve a realidade humana na pessoa de Jesus, e é Palavra dirigida agora aos discípulos para lhes comunicar que Ele é o Filho Amado.

Já vimos no Batismo que essa voz foi dirigida somente a Jesus; mas a revelação continua avançando e essa Voz agora é dirigida aos discípulos e a cada um de nós. Na verdade, todos(as) somos “filhos e filhas amados(as)”; todos somos um pequeno “sol”, conectados com o Grande Sol que tudo ilumina. Somos criaturas profundamente amadas, para além de nossos medos e inseguranças, para além das imagens que temos ou que outros têm de nós. A nossa condição humana se “transfigura” na “filiação divina”: aqui está a nobreza e a grandeza de cada um de nós.

A Transfiguração de Jesus nos mobiliza a ultrapassar a superficialidade da realidade e nos impulsiona a ir além das aparências: é a profundidade de um rosto, de um acontecimento ou de um ato que pode chegar a transfigurar nossas vidas. É questão de ativar um novo olhar que vai se aprofundando, um olhar contemplativo que que vai além do imediato e faz captar o sentido de tudo e de todos; um olhar que nos revela nossa verdade mais profunda; um olhar que percebe a luz escondida em meio às sombras da vida.

É o olhar de um amor não condicionado que transfigura nossa vida e irrompe em nosso corpo e em nossos olhos em forma de uma luz suave e intensa que nos impacta.

Esse é o olhar verdadeiro sobre nossas vidas, aquele que desperta as fontes de amor adormecidas em nós.

Esse é o olhar que nos pacifica, elimina toda inquietação e nos faz dizer com Pedro: “Senhor, é bom estarmos aqui”.

A Transfiguração de Jesus põe em evidência nossa condição humana; de um lado, ela deixa transparecer que, como humanos, somos frágeis e vulneráveis, carentes de necessidades, e que buscamos nos apegar àquilo que nos promete segurança; no entanto, de outro lado, ela manifesta que, na nossa essência, somos partícipes da Luz divina, plenitude de presença, em profunda unidade com tudo e com todos.

O “relato das tentações” de domingo passado nos situou frente à nossa condição de vulnerabilidade e carências (busca de poder, prestígio, riqueza...); o “relato da transfiguração” deste domingo des-vela (tira o véu) a luminosidade que somos. Ambos os relatos revelam nossa natureza contraditória: somos Plenitude que se expressa na vulnerabilidade, somos luzes e sombras, seres enraizados, mas abertos ao horizonte, carregados de “bem-aventuranças” e de “mal-aventuranças, vida que se expande e vida que se retrai...

A sabedoria cristã integra estes dois polos de nossa vida: o absoluto e o temporal, o oculto e o manifesto, a identidade e o ego inflado, interioridade e exterioridade... É do encontro dos polos contrários que brota a energia, a criatividade, o espírito de busca...

O tempo quaresmal, inspirado pela pessoa de Jesus Cristo, nos faz “descer” ao chão de nossa vida e nos colocar diante da nossa realidade contraditória: justa e injusta, pacífica e violenta, amorosa e odiosa, sincera e falsa, fiel e infiel... É preciso ser sábio o bastante para crescer na consciência da nossa identidade profunda e não ficarmos presos e fechados na ignorância sobre aquilo que “somos”. Na essência, somos “luz” e, no entanto, vivemos perdidos nas sombras da culpa, preocupação, competição, ativismo, perfeccionismo...

É preciso avançar na compreensão e na consciência do que pensamos, do que sentimos, do que fazemos, do que vemos e ouvimos... a partir do nosso ser profundo. E isso é luminosidade, transparência, trans-figuração, plenitude de presença. Na realidade, isso que somos não tem, e nem pode ter, um nome adequado, porque escapa e vai além do sentido das palavras. Dizia José Saramago que “em nós há algo que não tem nome. Esse algo é o que somos”. Isso que somos só pode ser percebido quando calamos nossa mente, nossas concepções estreitas, nossas visões atrofiadas... O monte da transfiguração nos desafia a contemplar nossa interioridade sem o filtro dos pre-conceitos, ideias, percepções...

Celebrar a “transfiguração de Jesus” é despertar nosso ser, nossa essência, nossa originalidade... No encontro com o Jesus transfigurado, também nos trans-figuramos. Já somos “seres transfigurados” e não sabíamos disso. A transfiguração não é algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas significa uma abertura à realidade cotidiana e tomar consciência de que a vida e a história estão cheias de sentido. A realidade torna-se “diáfana” (transparência) e nos impulsiona a ir além da pura materialidade.

A transfiguração é mistério de mão dupla: por um lado, nos “diviniza” ao revelar que somos “filhos(as) amados(as); por outro, nos “humaniza”, pois nada do que é humano é descartado; todas as dimensões que compõem nosso ser (corpo, razão, afetividade, coração, memória, vontade, relações...) são perpassadas pela realidade divina que nos habita. Somos seres de transcendência e de enraizamento.

Assim, a transfiguração não é um evento que acontece num determinado momento especial, mas um “modo de ser e de viver” na realidade cotidiana; só quem tem sensibilidade contemplativa pode perceber e entrar no fluxo da transformação, sendo presença transfigurada e iluminante.

Um entardecer, um encontro com alguém, uma ação oblativa, uma oração... podem transfigurar nosso ser, nossa existência para a verdade, a bondade e a beleza.

Há pessoas petrificadas por dentro que tudo o que tocam, ou o ambiente em que vivem, se transforma em sombra pesada: a vida familiar, comunitária, política, trabalho, ambiente eclesial... Outras, pelo contrário, transfiguram a vida e os problemas, desafios, cuja presença proporcionam um clima de paz; há quem transforma a vida, a enfermidade, os desafios em paz e serenidade. Há quem transfigura a guerra em paz, o ódio em respeito e amor, a enfermidade em fonte de aceitação da própria finitude, o desespero em esperança... Há pessoas que bloqueiam a ação da luz presente em seu interior; há outras que, tal como um vitral, deixam a luz divina atravessar sua vida e transmitem a luz da bondade, da proximidade, da compaixão...

Enfim, viver é transfigurar a existência, iluminá-la, transcendê-la...

Texto bíblico: Mt 17, 1-9

Na oração:

Quem crê se torna luz, reflexo da Luz de Jesus transfigurado.

A vida inspirada pela fé é um “caminhar na Luz”. Somos portadores da “luz nova”; não extinguir essa luz que queima dentro. Abafar essa luz é menosprezar a vida da Graça, o tesouro que nos foi confiado no batismo.

Devemos guardá-la ciosamente, velar por ela, valorizá-la pela nossa colaboração, estimá-la e protegê-la, como a chama olímpica que nos levará à vitória.

- Sou pessoa que transfigura a realidade da vida? Deixo transparecer a luz da bondade, do amor, da compaixão que habita em mim? Sou presença “radiante” que tudo des-vela, ilumina...?