sábado, 27 de janeiro de 2018

Palavras que Destravam a Vida

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo do Tempo Comum - Ano B.

“Cala-te e sai dele” (Mc 1,25)

Estamos fazendo o percurso contemplativo, seguindo o evangelista Marcos. Ele foi o primeiro que escreveu o Evangelho, por isso conserva o calor dos inícios da vida cristã. É o mais conciso. Não apresenta grandes discursos de Jesus nem conta muitas parábolas. Interessa-lhe sobretudo o cotidiano na vida pública de Jesus: sua atitude vital para com os pobres e excluídos, sua presença terapêutica, sua liberdade diante da religião, do templo, das tradições judaicas, a revelação do novo rosto de Deus, o anúncio da Boa Notícia da Salvação…
A intenção de Marcos é que as pessoas se façam a pergunta chave: “quem é Jesus?”. Todo o seu evangelho é revelação progressiva da personalidade e da identidade de Jesus.
Jesus não tinha nenhum doutorado na Lei, não tinha nenhum Master em questões do Templo; não era um perito a quem consultar sobre a lei. Jesus era Ele mesmo; seu único título era sua verdade, sua honestidade, sua bondade, sua capacidade de sanar a dor daqueles que sofriam e libertá-los dos maus espíritos que os escravizavam. Era a identidade de si mesmo, plena: a identidade entre o que dizia e fazia, entre o que era e o que ensinava.
Podemos afirmar que Jesus era um “profissional da vida”, um “mestre da vida humana digna”. Não havia estudado em outra universidade a não ser a universidade da vida, do amor, da liberdade...

O evangelho deste domingo é o primeiro ato público de Jesus: estamos num dia típico de sua vida e de sua atividade. Seu primeiro contato com as pessoas, depois do batismo e da experiência do deserto, tem lugar na sinagoga. É um sinal de que a primeira intenção de Jesus foi redirecionar a religiosidade do povo que tinha sido deformada por uma interpretação opressora da Lei. Por duas vezes no relato se faz referência ao ensinamento de Jesus, mas não se diz nada do que ensina. Fala-se de suas obras. As curas e a expulsão de demônios, entendidos como libertação, são a chave para compreender a verdadeira mensagem deste evangelho. O que Jesus faz é libertar um homem de um poder opressor, o espírito imundo.
A Boa Notícia que Marcos anuncia é a libertação, em duas direções: da força do mal e da força opressora da Lei, explicada de uma maneira alienante pelos fariseus e letrados. As pessoas reconhecem um novo ensinamento, com autoridade, ou seja, com convicção, com coerência de vida, com profunda fé...
O ensinamento de Jesus é novo porque liberta ao mesmo tempo que ensina. Jesus não ensina nada verbalmente: mostra-se a si mesmo. Marcos dá mais importância ao modo de falar de Jesus que ao conteúdo de seu ensinamento.

De Jesus diziam que “ensinava com autoridade” e não como os escribas e fariseus. Ele tinha a graça de conceder autoridade a cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remeter-lhe a si mesma, de ajudá-la a conectar com seu ser profundo, com aquilo que é mais divino no próprio interior.
Ensina com autoridade quem fala a partir de sua própria experiência e quem, com seu ensinamento, “faz crescer” (a palavra “autoridade” provém do verbo latino “augere”, que significa aumentar, fazer crescer, elevar o outro…); em outras palavras, é despertar a autonomia e a autoria do outro para que ele seja capaz de dar direção à própria vida.
O critério para distinguir quando nos encontramos em presença de quem “fala com autoridade” sempre será o mesmo: sua palavra faz as pessoas crescerem em profundidade.
A “autoridade” de Jesus, portanto, está em que sua palavra e sua vida formam uma unidade plena, porque não diz nada que não esteja já fazendo; suas palavras brotavam de uma experiência profunda que confirmava com sua vida. Provava com suas obras suas palavras, vivia o que ensinava.
Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem não recebia atenção. Ele faz com que o possuído pelo mau espírito se torne o centro das atenções e sua libertação é, ao mesmo tempo, prática e ensino.
O homem possuído é o símbolo de todas as pessoas despersonalizadas, impedidas de falar e agir, como sujeitos da própria vida e história. Sua vida e destino dependiam de “outros” que pensavam, falavam e agiam por elas.

Jesus vai curá-lo com sua presença e também com sua voz. Ao lhe dizer: “cala-te e sai dele”, Jesus está desatando uma vida, está devolvendo ao homem possuído o seu ser essencial. Há palavras que tem força reconstrutora, pois, não só restabelecem a saúde, mas ativam a dignidade escondida da pessoa. Dizem que há pessoas capazes de serem curados por uma voz, pelo material sonoro de uma voz determinada.
Quanto aspira nosso coração escutar este convite: “esteja livre...”! Esteja livre daquilo que os outros possam
dizer ou pensar a seu respeito; livre do domínio das suas compulsões; livre para amar sem defesas; livre daquilo que se acredita saber sobre si mesmo e sobre os outros; no fundo, esteja livre para ser você mesmo, para poder entrar em uma relação nova com a realidade.

Somos seres de palavras e somos também seres de silêncios. Em nosso mundo atrofiamos o dom de proferir palavras de vida; elas tem pouco valor e, por isso, precisamos voltar a lapidá-las no silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Tais palavras tem força para curar, como aquela que Jesus proferiu diante do homem possuído pelo mau espírito.
Precisamos receber palavras que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e a diferença.
Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos requisitados a entregar aos outros uma palavra de vida.

Jesus foi o homem que movia com suas palavras.
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Essas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança.
A palavra tem força de ressurreição, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias.
As palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas têm uma força operativa, desencadeiam um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e ao nosso redor. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado. A palavra foi além de sua vibração sonora. Ela contribui para criar o clima, o ar que respiramos... um ambiente que nos plenifica, nos nutre, favorece o encontro e o compromisso e abre possibilidade de viver

Texto bíblico: Mc 1,21-28



Na oração: Hoje o evangelho nos convida a sermos sinceros conosco mesmos, a revisar nossa conduta cristã. Devemos expulsar muitos “maus espíritos” interiores (ânsia de poder, riqueza, prestígio, vaidade…) que jogam ao chão nossa dignidade e impedem um testemunho coerente, uma verdadeira autoridade que profere palavras que fazem as pessoas crescer.

- Repassar o repertório das palavras proferidas ao longo do dia: palavras que elevam, que curam, que salvam...?

domingo, 21 de janeiro de 2018

3º Domingo Comum: O Horizonte Alternativo do Reino

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo Comum - Ano B.

“O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15)

Apagaram-se as luzes do Natal; os Magos voltaram a seus países; Jesus foi revelado como o “Filho amado” no Batismo. Agora começa o tempo do “chamado”; agora começa o tempo do “fazer caminho com Jesus”; agora começa o “tempo do seguimento”.
Podemos dizer que Jesus irrompe na nossa Galileia cotidiana como um chamado a viver de maneira alternativa, fazendo a experiência de Deus, Mistério último da vida, como uma Força que nos atrai para construir um mundo mais humano e ditoso.
Jesus não começa sua vida pública com ameaças, nem com anúncios de castigos. Começa proclamando a Boa Notícia de Deus; este anúncio original sintetiza toda sua missão: não é em vão que Marcos coloca na boca de Jesus estas primeiras palavras: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”. Trata-se da Boa Nova, ou seja, tudo aquilo que “buscamos”, na realidade, já está próximo.
E para acolher esta Boa Nova faz-se necessária uma profunda conversão. O termo “conversão”, traduzido do grego “meta-noia” (mais além da mente), nos convida a “outro modo de pensar, de ver, de agir...” Trata-se de sair da perspectiva mental atrofiada para entrar em sintonia com aquela Presença que expande a nossa vida para além de nossos estreitos modos de viver, tanto na perspectiva pessoal quanto social.

Propriamente falando, Jesus não deixou como herança uma nova doutrina religiosa da qual se pode extrair alguns princípios que logo são aplicados à vida. O que Ele nos traz, a partir de sua experiência profética, é um novo horizonte para assumirmos a história, um novo paradigma para humanizar a vida, um marco para construir um mundo mais digno, justo e ditoso, a partir da confiança e da responsabilidade.
Sua mensagem não provém do interior do sistema imperial nem da instituição do Templo. Pelo contrário, desmascara a iniquidade do Império e a conivência do Templo, sacudindo a indiferença de muitos e redefinindo as expectativas de outros.
Jesus não é um escriba judeu, nem um sacerdote do templo de Jerusalém, nem um asceta do deserto. O específico seu não é ensinar uma nova doutrina religiosa, nem explicar a Lei de Deus, nem assegurar o culto de Israel. Jesus é um profeta itinerante, um homem a caminho, aberto às surpresas de Deus. Caminhava pela Galileia, anunciando um acontecimento, algo que já está ocorrendo e que pede ser escutado e atendido, pois pode mudar tudo. Ele desencadeia um novo movimento humanizador, que coloca o ser humano no centro de sua missão. Ele já está experimentando isso e convida a todos a compartilhar esta experiência: Deus está comprometido com a história humana. É preciso mudar e viver tudo de maneira diferente.
Começa um tempo novo, uma história nova. Deus não nos deixa sozinhos frente aos nossos conflitos, sofrimentos e desafios. Quer construir, conosco e junto a nós, uma vida mais humana. Para isso, é preciso mudar a maneira de pensar e de agir; é preciso aprender a viver crendo nesta Boa Notícia.
Isto que Jesus chama “Reino de Deus” não é uma religião. É muito mais. Vai mais além das crenças, preceitos e ritos de qualquer religião. É uma experiência fundante de Deus que re-significa tudo de maneira nova. “Reino de Deus” é o coração de sua mensagem e a paixão que animou toda sua vida

O surpreendente é que Jesus nunca define o que é o Reino de Deus. Ele o encarna em suas palavras e em sua vida; é algo que irrompe, de maneira surpreendente. Podemos dizer que “Reino de Deus” é a vida, tal como Deus deseja que a vivamos.
Se queremos saber o que é o Reino, também nós devemos nos colocar a caminho com Jesus: Ele é o Reino. Ele foi o homem que se definiu, que tinha claro qual era sua missão; por isso, nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacendendo o que de mais nobre há em cada um e ampliando nosso horizonte de vida.
Para Jesus, a vida de uma pessoa vale pela causa à qual se entrega. Por isso, ao anunciar a presença do Reino do Pai, Ele desperta nas pessoas uma garra, uma vibração e um entusiasmo por esta causa tão nobre. Escutar e acolher a proclamação do Reino é uma prova de audácia e coragem, uma provocação à generosidade de cada um.
É preciso sonhar alto, ter ideais, ser uma pessoa corajosa e marcada pela esperança para poder “escutar” o apelo de Jesus; é preciso ser apaixonado(a), deixar-se empolgar, aceitar correr riscos na vida para saber o que significa “estar e fazer caminho com Ele”; é indispensável uma enorme generosidade para se dedicar incondicionalmente a uma grande causa; é preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...

Jesus não só se deixou mobilizar pelo “sonho do Reino”, mas foi também capaz de seduzir e mover outras pessoas a participarem desse mesmo sonho; sua presença inspiradora era capaz de despertar nos outros o melhor de si mesmos e de mobilizá-los. Por isso, os primeiros discípulos deixaram-se impactar pela força do seu chamado e foram capazes de dar uma nova direção às suas vidas.
Não sabemos se o chamado ao seguimento foi assim tão rápido, como relata Marcos; mas, provavelmente, a forma um tanto mecânica em que ele se expressa, é uma maneira de destacar a força mobilizadora da presença e do chamado de Jesus. Todas as narrativas acerca do chamado conservam a marca intencional de um encontro surpreendente, inesperado e expansivo: deixar a vida estreita do lago de Genezaré para entrar no vasto oceano de vida proposto por Jesus.

Há um dado, um tanto quanto estranho no chamado de Jesus: parece ser um chamado que quase não tem programa. Ele afirma simplesmente: “sereis pescadores de homens”. O que isto quer dizer?
Esta frase deve ser lida não no sentido quantitativo, típico dos proselitismos e da mentalidade moderna, mas num sentido mais qualitativo: “pescar homens” é extrair o melhor, a melhor versão humana de cada um, fazer emergir a autêntica qualidade humana desse mar turvo de inumanidade que somos todos.
Isso é “pescar o humano” que todos carregamos dentro. No contexto atual, essa expressão tem uma enorme importância: porque é verdade que nem todos os homens desejam ser cristãos, mas, seguramente, continua sendo verdade que Deus deseja que cada um extraia de si a melhor versão possível.
O convite para “pescar homens”, que pode parecer uma expressão estranha, evoca a imagem de sair de um meio aquático e começar a respirar. Não poderíamos ver aí a possibilidade de ajudar outros em um novo nascimento, de uma saída das águas amnióticas para começar a respirar a vida do Espírito?

O chamado de Jesus, portanto, nos individualiza e nos personaliza de modo irrepetível e inconfundível, confere um sentido completamente novo ao nosso próprio nome. Jesus toma em suas mãos o futuro daqueles(as) que o acompanham: junto d’Ele vão adquirindo nova personalidade, definida pela referência a outros. Responder ao chamado de Jesus inaugura uma nova relação com os(as) seus(suas) seguidores(as): Ele adiante, nós atrás. O encontro com Ele atinge o núcleo de nossa própria autonomia e de nossa consistência pessoal, de nossa vida profissional, familiar e relacional. Há um deslocamento de nossos estreitos mares da vida e passamos a respirar a imensidão de outro oceano.

Texto bíblico: Mc 1,14-20

Na oração:
Encontrar-se com Jesus é encontrar-se com o Reino de Deus. Jesus se põe totalmente a serviço da “causa” de Deus; Ele é inseparável de sua obra: o Reino que anuncia e que Ele faz presente.
Somos impulsionados a ser protagonistas de uma história mais ditosa; somos movidos a atrever a pensar e agir “fora do sistema” para entrar na lógica e na dinâmica do Reino de Deus. O Reino condensa e leva à plenitude todas as aspirações humanas.
- Que sonhos você carrega em seu coração?

- Sua vida tem a dimensão do “mar da Galileia” ou do Oceano de vida de Jesus?

sábado, 13 de janeiro de 2018

2º Domingo Comum: A Busca Vital

Depois do Advento e das "festas natalinas", iniciamos a primeira etapa do Tempo Comum. Faremos nossa caminhada contemplativa seguindo o Evangelho segundo Marcos (Ano B).
Neste 2º Domingo do Tempo Comum (na verdade ainda Evangelho segundo João), deixaremos ressoar a pergunta fundamental de Jesus: "Que buscais?" 
A resposta será dada ao longo de todo este ano, ou seja, ela nos fará crescer no seguimento e na identificação com Aquele que é o "Cordeiro de Deus". 

“Que estais buscando?” (Jo 1,38)

Um dos temas importantes do quarto evangelho é o da busca-encontro de Jesus. Ao leitor atento não passa desapercebido que a primeira palavra que o autor do evangelho põe na boca de Jesus é uma pergunta: “Que buscais?”
Na realidade, parece que no ser humano tudo começa com a busca, pois é ela que põe em marcha todo o processo existencial. No princípio, sem saber bem o quê, ele busca “estar bem”, “sentir-se melhor”... E projeta a busca “fora”, naqueles objetos, pessoas, títulos, bens, ocupações..., que poderiam satisfazer sua sensação de carência e conferir-lhe maior segurança.
Mais cedo ou mais tarde, a vida lhe mostrará que nada que está fora é capaz de “plenificá-lo”, fazendo-o suspeitar que é preciso dirigir o olhar para o seu interior.
Quem busca, entra em um movimento inspirador, criativo, despertando os melhores recursos da própria interioridade. É a busca que dá sentido e calor à própria vida. Quem não busca, vive um processo continuo de atrofia de sua própria humanidade, pois a busca é o dinamismo que mais nos humaniza.

Viver é desafiador na medida que viver é buscar. A dinâmica da busca marca a caminhada humana e define os rumos da vida. Vive-se em permanente busca e só à medida que se vive para buscar  é que a vida se torna, de verdade, vida, com mais sabor e sentido. O que se busca define e determina o que é a vida da pessoa. “Diga-me o que buscas e dir-te-ei quem és”.
No interior de cada um permanece aguçada a dinâmica da busca, aquela que mantém a vida de todo coração e o incita na direção do que vale, do que conta e do que é essencial. Como ser necessitado e carente, o ser humano se sente impulsionado a buscar para conseguir acalmar sua insatisfação existencial. Mas a busca não guarda relação só com a carência, senão que é, ao mesmo tempo, expressão do desejo (aspiração) que parece constituir à pessoa e que se manifesta em forma de dinamismo vital (“buscar o que quero e desejo” – S. Inácio de Loyola).
A diferença entre ambos movimentos – o que nasce da carência e o que nasce do desejo – poderia se expressar deste modo: pelo primeiro, o ser humano busca apegar-se e apropriar-se de algo que percebe como “bom” para ele e que lhe dá segurança; no segundo, pelo contrário, o que se dá é o impulso a viver e a expressar a própria identidade profunda.
No primeiro caso, falamos do ego e seus movimentos egocentrados; no segundo, de nossa verdadeira identidade, enquanto Plenitude que se transborda.
O coração de cada um foi feito para encontrar a razão mais profunda do seu viver; há uma inquietude latente em seu interior que o faz peregrino do sentido. Tão fundamental como é o respirar, toda pessoa precisa assumir sua condição de navegadora do infinito. Somos todos, por natureza, eternos buscadores e garimpeiros do novo. Por isso, buscar torna-se um hábito de vida.

Uma lógica de contínua busca deve permear o coração do(a) seguidor(a) de Jesus, para aprender a viver da busca d’Ele, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor.
A vida se torna mais vida na medida que se vive para dar razão a essa busca. Uma busca que exercita o coração e o modula na sinfonia amorosa do coração de Deus. Ele é a única e completa razão da busca do coração humano.
Estar em busca é sair de nosso ser atrofiado pelas preocupações individuais para mover-nos num horizonte maior de pré-ocupação pelo Reino; estar em busca é perguntar-nos, é estar abertos para sermos tocados pela mais profunda das graças: a gratidão diante de Deus.
Enquanto estejamos identificados com o eu superficial (ego), nos perceberemos como seres carentes e nos sentiremos compelidos a uma busca ansiosa daquilo que supostamente poderia completar-nos. Quando chegarmos ao reconhecimento de nossa verdadeira identidade, a busca deixa de ser estressante para ser repousante.
Cairemos, então, na conta de que a Plenitude não é “algo” que devemos alcançar ou um “prêmio” que nos aguarda mais adiante; é o que já somos e sempre fomos. Quando a pergunta de Jesus – “Que buscais?” ressoa em nós, aí é que descobrimos nossa mais autêntica maneira de ser, nossa originalidade, nossa identidade... Na realidade, o que andamos buscando é o nosso “eu verdadeiro”, o “eu profundo”, a “identidade original”. A busca revela nossa identidade profunda. Com outras palavras: o que buscamos não é diferente do que já somos. O buscador é o buscado.

Com esta chave, podemos voltar ao texto do evangelho de hoje: ao “ver Jesus”, estamos vendo quem somos, pois o encontro com Ele des-vela nosso “eu original”. Quando não nos identificamos com o nosso “eu carente”, emerge a plenitude que somos: a semente enterrada se descobre espiga transbordante.
Reconhecido em sua identidade, consciente de seu lugar e missão junto ao povo de Deus, o(a) seguidor(a) de Jesus continuamente mantém fixo seus olhos fixos n’Ele” e deixa ressoar em seu interior sua pergunta radical: “o que vocês estão buscando?”
Jesus não chama para seguir uma religião, uma doutrina, nem faz proselitismo... Ele desencadeia um movimento e o seu modo de viver a todos seduz para identificar-se com Ele e com sua proposta de vida. Aqui não se trata de adesão a um programa nem a um projeto, senão do convite a um seguimento (“vinde e vede”), no calor e intimidade de uma relação pessoal que é dirigida a cada um em particular. Para isso requer-se uma resposta sem reservas, sempre mais criativa e ousada.

João Evangelista quer deixar claro que há maneiras de seguir a Jesus que não são as mais adequadas. A pergunta – “onde moras?” -  não significa querer saber o lugar ou a casa onde habita Jesus, mas buscar uma identificação com a atitude vital d’Ele.
Poderíamos ampliar a pergunta dos discípulos de João Batista: “Mestre, onde vives, ou seja, onde estão tuas raízes; quê é que te dá Vida; quê é o que te vivifica; diga-nos onde está a Fonte, para que nós possamos permanecer, enraizados, sempre bebendo dela?”
Os dois primeiros discípulos não lhe perguntam por sua doutrina, por sua religião, mas por sua vida. E Jesus não responde com um discurso, mas com um convite à experiência de vida.
“Vinde e vêde”, disse Jesus àqueles dois buscadores. “Entrai”, vinde à “Casa”, “reconhecei-vos na Vida que sois...; Vida que continuará se expandindo, movendo-vos a uma contínua busca, pois sois habitados por uma fome e sede de Plenitude”.
“...e permaneceram com Ele naquele dia”: é a mesma expressão que João utiliza para dizer que o Pai permanece no Filho e o Filho permanece no Pai; ou que Jesus e sua Palavra permanecem em nós e nós somos chamados a permanecer n’Ele. Permanecer enraizados somente na pessoa de Jesus e no sonho do Reino como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte e um novo sentido para suas vidas.

Texto bíblico: João 1,35-40


Na oração:
Ter os olhos centrados em Jesus deixando-se impactar pelo Seu modo de viver, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado.
- O que lhe impede de ter um olhar límpido e transparente na tentativa de se configurar ao olhar de Jesus?
- O que você busca ao fixar os olhos em Jesus? O que sente ao perceber os olhos de Jesus fixos em você?
- Que consequências tem para sua vida o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus?
                                   - Quais são seus sonhos? Quê esperanças você carrega no coração?

                                   - A que você se anima a gastar sua vida? Quê medos o paralisam?

sábado, 6 de janeiro de 2018

EPI-FANIA: caminho da trans-parência interior

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Festa da Epifania do Senhor.

“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)

Teilhard de Chardin, paleontólogo jesuíta, manifestou, repetidas vezes, o desejo de que a solenidade da Epifania mudasse de nome, ou ao menos de prefixo. A solenidade de hoje deveria denominar-se “dia-fania” em lugar de “epi-fania”, para ressaltar que festejamos o dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo se revela em plena transparência, como fundamento de tudo e de todos, fonte e fim, alfa e ômega.
Teilhard não vê o relato dos Magos como uma “verdade fotográfica”, mas como uma verdade que nos ilumina sobre Aquele que enche o universo com sua presença dinâmica, sobre Aquele que dá sentido à nossa história, tornando-a “diá-fana” (transparente).
Porque, neste mistério, não se trata propriamente de uma repentina irrupção de quem é o Salvador, senão muito mais de uma misteriosa e silenciosa “dia-fania”, mediante a qual o recém-nascido em Belém deixa “transparecer” o verdadeiro rosto do Deus misericordioso e compassivo. Nele, Deus se humaniza para também des-velar (tirar o véu) e deixar trans-parecer a verdadeira e divina identidade de cada ser humano, escondida na interioridade de cada um.
Nosso eu profundo é habitado por “magos” e “herodes”: impulsos de vida e impulsos de morte, busca da verdade interior e busca do poder, caminho de “saída de si” e caminho de “auto-centramento”... O Nascimento de Jesus des-vela e ilumina nosso interior e nos coloca diante deste desafio: qual dos dois dinamismos nós alimentamos? Qual caminho marca a nossa vida? O caminho dos Magos ou o medo de Herodes?

Continuam acontecendo atualmente as famosas peregrinações que levam a Meca, a Santiago de Compostela, a Jerusalém, a Roma..., mas, na verdade, segundo o evangelho de hoje, a primeira e mais importante de todas é a peregrinação dos Magos que vão até Jesus, guiados pelo canto e pelo chamado de sua Estrela (a Estrela de Deus, a Estrela de cada um).
Os Magos consultavam os astros do céu para compreender o caminho da humanidade na terra.  Examinando os céus, descobriram uma estrela brilhante como nenhuma outra. E ficaram fascinados com o seu fulgor. Deixaram-se conduzir por inquietações e buscas, talvez não oficialmente “religiosas”, mas sim profundamente humanas, que pulsam no interior de cada pessoa; perguntaram, comunicaram o que tinham visto, seguiram adiante em tempos de obscuridade e, como recompensa de sua busca, “encontraram o Menino com Maria sua mãe”.
Foi assim a longa jornada dos Magos, seguindo o caminho que a luz da estrela lhes indicava. E ao final de longa peregrinação chegaram ao lugar procurado.
Eles, então, ficaram iluminados, não pela luz da estrela, mas pela luz da criança, pois é na simplicidade e pobreza dela que resplandece a Luz de Deus.
Os Magos retornaram, depois, a seus países, agora convertidos em portadores da Nova Luz. O encontro com o Senhor os transformou. Todo encontro com Jesus era e é um encontro que transforma radicalmente. Alguns encontros são fundantes, são como uma pedra angular sobre a qual podemos começar a construir algo novo; outros encontros reavivam e ativam os fundamentos de nossa vida.

Hoje também estamos vendo sinais. Em nossas vidas sempre há alguma estrela que nos guia até Belém.
Podemos nos assustar e permanecer paralisados, olhando as estrelas, mas os sinais não nos são dados para ficarmos pasmados, mas para nos deixar interpelar e responder. Algumas vezes nos convidarão à interioridade e outras nos mobilizarão a fazer caminho, mas sempre nos tirando da acomodação e nos abrindo horizontes. Os sinais nos comprometem e nos dinamizam. Precisamos ler e interpretar para onde as “estrelas”, que aparecem no horizonte da vida, nos conduzem.
Esta é a Grande Peregrinação que os profetas haviam prometido, como um caminho que leva para a Nova Jerusalém da Paz e da vida. Mas, segundo o evangelho de Mateus, essa Peregrinação da Luz não leva a Jerusalém (cidade dominada pelo Rei Herodes e pelos sacerdotes cumplices da morte), mas a Belém, que é a “Casa do Pão”, a “Casa da Lua”, pois alimenta e ilumina homens e mulheres que, na noite da existência, buscam um sentido para a própria vida. Por isso, uma peregrinação que continua sempre aberta.

Esta é também a nossa peregrinação em direção à nossa Belém interior; a vida mesma é entendida como caminho de des-velamento de nossa verdadeira identidade e de descoberta da nossa própria verdade (o que é mais divino em nós). No encontro com Aquele que é a Luz e que ilumina todo ser humano, ativa-se a “faísca de luz” que todos levamos em nosso coração.
Epifania, portanto, é a festa da “estrela de Deus”, que não só ilumina o caminho da humanidade; ela é a grande Festa de Iniciação, de “descobrimento da própria luz”, ou seja, da Luz do Deus de Jesus em nossa própria vida.
Por isso, no sentido mais profundo, todos somos “phos-phoros” (fós-foro) ou “phos-phorantes”, portadores de luz, lamparinas de Deus neste mundo envolto em trevas; cada um de nós é uma estrela de Deus no imenso mar de constelações. Somos luz de Deus, porque Deus é nossa luz, a lâmpada de sete luzes que é a única Luz de verdade em nossa existência.

Por isso, Epifania não é só hoje, epifania é sempre, é nossa vida. Frente ao Rei Herodes e frente a todos os Reis e Sacerdotes do poder estabelecido, que só buscam o domínio sobre os outros (que são capazes de matar, porque não tem outra riqueza), emergem, no relato de Mateus, os “magos e magas”, que realizam o caminho de iniciação, que os leva à verdade de sua própria vida, a verdade do Deus dos pobres, a verdade de Belém.
Todos somos “magos-magas”, homens e mulheres que buscam a Deus, em gratuidade, em reverência, em constante surpresa... Por isso, desde a Idade Média, os Magos aparecem como sinal de reverência amorosa, no caminho de iniciação que temos de fazer para o encontro de nossa verdade original.
A Estrela dos magos é o mesmo Jesus, cuja luz brotou em Belém, para iluminar, a partir dali, a todos os homens e mulheres. Por isso, os magos nos ajudam a descobrir Aquele que é a Luz, para que, a partir do encontro com Ele, nós mesmos sejamos luz, sejamos Cristo, feito epi-fania (manifestação) e dia-fania (transparência) de Deus na terra. Nós somos os “magos e as magas”, milhares de homens e mulheres de luz, estrelas de Deus espalhadas pela imensidão do universo do Criador.
O presente dos magos (ouro, incenso e mirra) é nossa própria vida, que se faz dom de Deus, para nós mesmos e para os demais. Somos ouro, o de maior valor, mas não em forma de capital monetário para comprar e vender, mas como beleza da vida que se faz dom-presente para ser compartilhado. Somos incenso, o melhor odor do Natal, o perfume mais precioso, para exalar santidade, amor, compaixão… em meio a um ambiente fétido de morte e exclusão. Somos mirra, unguento do amor, como o que usavam os noivos, unguento da vida com o qual se despedia dos mortos, esperando a ressurreição. 
Nossa vida mesma é um presente que viemos oferecer a Deus e aos outros, no transcurso da noite luminosa de nossa existência, dirigida para Jesus.


Texto bíblicoMt 2,1-12

Na oração:
O relato dos Magos nos convida a ir ao encontro do ano novo por outro caminho. Depois do encontro com o Menino Jesus, não deveríamos regressar à nossa terra pelo mesmo caminho pelo qual viemos. Transitar por um caminho novo é que deveria caracterizar o começo doeste novo ano. E esta mudança de estratégia deveria ser criativa, buscando alternativas desconhecidas e novas para enfrentar os desafios que a realidade na qual vivemos nos apresenta. A criatividade não está em dizer ou fazer coisas raras ou extraordinárias, mas em saber dizer e fazer o mesmo com outra motivação, com outra inspiração, de maneira que o resultado seja sempre melhor.

Somos chamados a re-ler muitas vezes nossas vidas, à luz das experiências que tivemos, e tomarmos consciência de que cada encontro nos vai configurando, até chegarmos a uma identificação mais profunda com Jesus.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

ANO NOVO: onde encontrar a novidade?

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do Primeiro Dia do Ano Novo.
Desejamos a todos um ano novo cheio de fé, amor, esperança e vontade de construir um mundo novo, mais justo e mais fraterno.

“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)

A celebração do “Ano novo”, prática vivida em todas as culturas e religiões, parece responder a um desejo humano de “começar de novo”.
“O homem foi criado para que no mundo houvesse um começo”. Este pensamento de S. Agostinho deveria iluminar nossa vida ao longo deste novo ano que se inicia.
Desde que o ser humano surgiu da terra e sobre a terra, o mundo criado ganhou um “novo início”.
Nós o estamos reconstruindo incessantemente. “O ser humano é criado e é criativo”; pois é exatamente o dom de re-começar, sempre, que nos caracteriza como humanos.
Caminhamos hoje para algo novo; somos convocados pelo futuro a realizar projetos diferentes, possibilidades novas, “coisas” que nos acenam lá de longe e nos fazem uma proposta: “re-criem-nos”; coisas que surgem sob a forma de um desejo, de uma esperança... mas que sempre dependem de nós para se tornarem concretas. Elas exigem empenho, dedicação e criatividade.

Habita em nosso interior uma nostalgia de alguma coisa mais original, de um novo início e da tentativa de outros caminhos. Trata-se de uma aspiração de algo mais humilde e simples, que nasce do “húmus”, da terra que somos. É o desejo de sermos nós mesmos simplesmente, sinceramente, prazerosamente.
É a necessidade de viver re-começando, sempre.
A atitude do “recomeçar contínuo” revela-se como oportunidade para ativar outros recursos internos e colocar a vida em outro movimento, mais inspirado e criativo.
É inevitável que na existência humana se façam presentes a dor, o cansaço, a frustração, a repetição mecânica..., que ameaçam afogar as melhores expectativas. Frente a essa constatação, compreende-se a voz que brota das nossas entranhas e diz: “comecemos de novo”. A celebração do “ano novo”, neste sentido, significa a oferta de uma nova oportunidade à vida, para que ela tenha um novo sentido.
Somos impulsionados, continuamente, a romper com o formalismo e o convencional, a vida marcada pela ordem, normas claras e recompensas seguras... e caminhar para uma vida mais audaz e incerta, de horizontes amplos, de exigências que nos convidam a “começar de novo”, de significado mais universal.
Não caminhamos empurrados pelas costas, nem nossa vida é obra da inércia. Fomos feitos para o “mais”.

Ver a novidade em uma simples mudança de datas do calendário não passa de uma mera convenção. O 01 de janeiro não é mais “novo” que o 31 de dezembro. E, depois do rito de “passagem de ano”, tudo continuará sendo como era ontem, ou inclusive pior, porque, a ressaca da celebração será acompanhada pela frustração de comprovar que nada mudou.
É óbvio que a novidade não é “algo” que possamos encontrar “fora” para ser incorporada à nossa existência cotidiana. O máximo que podemos encontrar nesse nível são aparências de novidade que, satisfazendo por um momento nossa curiosidade, rapidamente nos farão voltar ao ritmo da rotina.
O “novo” está dentro de nós. Estamos no tempo para crescer na consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “kronos” mas no “kairós” (tempo de plenitude e de sentido). Nosso verdadeiro ser é constituído pelo divino que há em nós, e isso é eterno, é sempre novo. Somos já a plenitude e estamos no eterno.

Nesse sentido, novidade é sinônimo de viçoso, abertura, presença, vida; a vida sempre é nova, e vai acompanhada de atitudes e sentimentos de surpresa, admiração, louvor, gratidão, comunhão e plenitude.
         “E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam” (Lc 2,18).
Seria um crime transformar a vida num velódromo, dando voltas sempre em torno ao mesmo circuito de 365 dias, sem avançar nada.  
Vida expansiva, projetada para todas as direções e sintonizada com as surpresas, grandes e pequenas, que a plenificam e lhe dão um sentido de eternidade. “A vida é demasiado breve para ser mesquinha(Disraeli).
Tudo isto é o que, saibamos ou não, nosso coração aspira. Mas, habitualmente, o buscamos onde não pode encontrar-se. Os pastores, movidos por uma sensibilidade especial, foram capazes de encontrar onde ninguém pensaria encontrar:

Este ano será novo se aprendermos a crer na vida de maneira nova e mais confiada, se encontrarmos gestos novos e mais amáveis para conviver com os outros, se despertarmos em nosso coração uma compaixão nova para com aqueles que sofrem.
Quem sabe, o Evangelho de hoje nos possa inspirar para que, algum dia, aprendamos a viver cada momento como se fosse o último, ou melhor, o mais completo, o mais ditoso: a melhor oportunidade para uma presença inspiradora, para o abraço mais acolhedor, para a palavra melhor pronunciada ou o silêncio mais criativo, para o gesto solidário mais espontâneo... É como se cada momento fosse sagrado e eterno.
O cristão é aquele que, como os pastores de Belém, conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo germinada em sua vida. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.

“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido”. Qual foi o novo e o surpreendente que encontraram: um recém-nascido deitado na manjedoura. Trata-se do “novo” despojado de ornamentos, de poder, de riquezas. Tiveram olhos e ouvidos abertos para se deixarem impactar pela imagem, humanamente simples; o encontro com o “Deus que se humanizou” possibilitou o retorno à eterna infância, escondida na própria interioridade.
Porque descobriram facilmente o Infinito, passaram a viver humildemente sua condição humana na paz, na alegria e na gratidão.

Texto bíblico: Lucas 2,16-21

Na oração: A partir do “olhar” admirado dos pastores, iniciar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar junto...
- Re-cor-dar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.
- Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt. 5,8).