sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

JESUS: “Com as Periferias no Coração”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“Jesus deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia” (Mt 4,13)

Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública. Ele começa sua atividade longe da Judéia, de Jerusalém, do templo, das autoridades religiosas.
Jesus, na Galileia, encontrou o seu lugar: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Um “lugar sagrado” que nasceu do seu coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade...
Ali, Ele teve suas preferências e elegeu o seu “lugar” entre os mais pobres e excluídos, vítimas daqueles que se faziam donos dos lugares; ali revelou a presença d’Aquele que se faz presente e santifica todos os lugares: o Pai.
Jesus se fez presente nos lugares onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e os convidou a caminhar para um novo lugar: lugar de vida, de comunhão...
Sua missão foi a de reconstruir a identidade das pessoas, devolvendo a elas o seu “lugar”.
Seu ensinamento, cheio de “autoridade”, introduziu uma perspectiva nunca ouvida antes; apresentou uma alternativa que as pessoas mais simples do povo entendiam como revelação do Pai aos pequeninos.
A partir das periferias do mundo, surgiu um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos; uma sabedoria que vinha de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro.
Jesus desconcertou a “sabedoria” do centro a partir da “loucura” da periferia.

Podemos, então, afirmar que Jesus descentralizou o mundo a partir da periferia.
O fato surpreendente é que, em Jesus, Deus não só se fez homem, mas também se fez “margem”.
O próprio Jesus foi “margem”. Belém e Calvário são os dois extremos periféricos – início e fim – de toda uma vida, despojada e pobre.
Todos tinham os olhos voltados para o centro. No templo de Jerusalém era elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas. No entanto, em Jesus, o Reino de Deus anunciado movimentou-se em direção contrária: subiu, a partir da mais baixa periferia, para o centro. Ele começou a falar a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica.
Nesse sentido, a vida de Jesus foi “ex-cêntrica”, porque não combinava nem se ajustava com a construção social de todos aqueles que controlavam o mundo a partir do centro.
No entanto, Jesus fez o “centro” da história. Nele, o Pai “nos escolheu antes da criação do mundo”.
Isto quer dizer que o “centro” da história teve seu aparecimento na “periferia”.
Portanto, Jesus descentralizou a história para sempre e situou o surgimento da salvação nas terras excluídas. A ação de Jesus provocou um deslocamento geográfico-social-religioso.
O centro da história já não se encontra mais em Roma, nem em Jerusalém, e sim na “margem”. Todo aquele que, a partir de então, pretende encontrar-se com Jesus terá de voltar a cabeça e peregrinar em direção às margens, onde estão os prediletos do Pai.

Tendo Jesus se encarnado para sempre nas “periferias” do mundo, porque desejou assumir toda a história a partir daí, também nós, seguidores(as), temos de dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, a partir de onde Ele continua nos questionando.
“Êxodo para as periferias”: terra privilegiada, de onde podemos contemplar a história e a própria humanidade. A razão mais importante de todo este caminho é a união ao movimento de encarnação de Jesus, decidido pelo Pai como caminho privilegiado para a realização de seu Projeto.
Cada passo na direção das periferias do mundo também é um passo contemplativo em busca do encontro com o Senhor da História, que nos chama de “baixo” e de “fora”.
 “O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Quê significa fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para assumir o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.

Jesus começou sua vida pública com um novo ensinamento, rompendo esquemas e modos de viver ditados pelo Templo. Diariamente ouvimos, lemos e nos deparamos com esta palavra que está tão em moda: inovação; expressão presente em todas as instâncias humanas: empresarial, educativo, social...
Partindo do evangelho deste domingo, podemos também fazer esta pergunta: qual é a “inovação do Evangelho”? Que há de inovador, na vida de Jesus, que pode nos inspirar?
Com certeza, há uma inovação acima de todas: a paixão de Jesus pela vida, pelo Reino, pelas pessoas, de maneira especial pelas mais excluídas e feridas. Por isso, Jesus inicia sua missão fora dos “espaços sagrados” do Templo; é nas “margens” que Ele, com sua presença inspiradora, ativa um movimento inovador e, ao mesmo tempo, humanizador.
Essa paixão de Jesus se revela em cada passagem do Evangelho, em cada palavra que sai de sua boca, em cada gesto que faz tremer todas as instituições, em cada ação que visa levantar, curar e devolver a dignidade a todo ser humano com quem se encontra. Não há um indício sequer de dogma, de doutrina, de regras, de leis..., a não ser isso: tudo o que façamos, vivamos e desejemos, seja em prol das pessoas, para seu bem e sua felicidade.
A inovação de Jesus está em eliminar da vida todo o peso do legalismo, do moralismo, da culpa..., para fazer emergir o que há de mais humano e divino presente em cada pessoa. A expressão “pescador do humano” deixa transparecer essa inovação mobilizada por Jesus, a partir do mais profundo de cada um.
Seguindo Jesus e deixando-nos impactar por sua inovação em favor da vida, estaremos, também nós, inovando, quando deixaremos transparecer uma paixão pelas pessoas, que se manifesta em nossa acolhida, em nossos gestos, no nosso olhar contemplativo, nas nossas palavras mobilizadoras...; trata-se de investir a vida em favor da vida e fazendo os outros se sentirem mais irmãos e mais filhos de um mesmo Pai.

Nesse sentido, Mateus também situa, no início da vida pública de Jesus, o chamado dos quatro primeiros discípulos. Detrás disso, há uma intencionalidade teológica, que busca mostrar Jesus e seus discípulos compartilhando a mesma missão: aliviar o sofrimento humano, com a certeza de que o Reino de Deus tinha chegado. Assim, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, das margens...
Nesse entorno da Galileia está o futuro do Evangelho; Galileia é a terra do chamado e, a partir desse lugar, inicia-se também novo caminho do seguimento.
Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galileia. É ali que se devem encontrar todos os seus(suas) seguidores(as), para também ali prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.

Texto bíblico:  Mt 4,12-23

Na oração:
Aquele Desconhecido se aproxima, ainda hoje, do nosso mar da Galileia, que representa os lugares, os afetos, os segredos, os costumes da nossa vida cotidiana... ; Ele fixa seu olhar em cada um de nós e, com sua Palavra inspiradora, nos desafia a transgredir os nossos lugares estreitos e entrar em outro mar.
O Evangelho deste domingo faz emergir algumas perguntas que são significativas para a vida cristã:
- Você vive em processo de mudanças ou continua sempre igual? Seu modo de viver o seguimento de Jesus é sempre criativo ou continua “normótico” (normalidade doentia, sem inspiração, sem afeto...)?
- Você é um peregrino ou está ancorado no de sempre? Você está se convertendo constantemente para uma vida nova e melhor, ou se contenta com uma mera repetição?

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Seguidores (as) do Cordeiro

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum (Ano A).



“Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29)

Estamos no início de um novo ciclo litúrgico, o “Tempo Comum”, centrado no Evangelho de Mateus; mas, o relato deste domingo é tirado do evangelho de João, que começa com uma imagem forte de João Batista, retomando o motivo do domingo anterior (batismo de Jesus), que hoje é revelado como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Começamos, então, o novo ano afirmando que o sinal de Deus é um Cordeiro; não é a Águia destruidora, nem o Leão furioso que se impõe na selva do mundo, nem o pesado Elefante... O sinal é um Cordeiro que nos conduz ao campo da vida, desde o princípio dos tempos. Jesus, o Cordeiro que se faz presente entre os pequenos, os fracos, excluídos..., e abre caminhos de vida para todos.
Segundo os evangelhos, já não há mais necessidade de sacrifícios de animais, realizados por grandes sacerdotes, porque Deus se fez Cordeiro entre os cordeiros, porque é Graça que perdoa e que ama, e porque os seres humanos podem corresponder, entrando em sintonia com seu amor.
Esta é a experiência fontal: frente a uma religião centrada nos pecados e sacrifícios, o Jesus do 4º. Evangelho abre um caminho de graça aos homens e mulheres de todos os tempos; assim, rompe a escravidão religiosa, centrada nas culpas e expiações, e oferece o dom da salvação a todos, sem exceção: judeus e pagãos, cristãos e não cristãos.

No evangelho deste domingo, João Batista não só aponta para quem é Jesus, mas também indica sua missão: “tirar o pecado do mundo”. Tanto no texto grego como latino, “pecado” está no singular. Não se refere aos “pecados” individuais, tais como os entendemos hoje. No evangelho de João, “pecado do mundo” tem um significado muito preciso: é o mundo fechado que rejeita Deus, é o mundo que quer dominar pela força e sacrificar os outros para se impor, é a injustiça e a violência que se expressam nas diferentes formas de intolerâncias e preconceitos, é a humilhação que desumaniza a todos...
Trata-se do “pecado de raiz”, a opressão que, enraizada nas estruturas sociais-política-econômicas-religiosas, atrofia o ser humano, impedindo-o desenvolver-se como pessoa e como ser de relações. Todos os demais pecados se reduzem a este.
O dinamismo do mal está entranhado no nosso mundo exterior e interior, nos nossos projetos, desejos e ações. A experiência do pecado é de desvio de rota, de frustração da nossa vocação, experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados...
O modo de “tirar” este pecado não é através de uma morte expiatória. Jesus tira o pecado do mundo destruindo a opressão, ativa e passiva, não pagando a Deus uma dívida que nós tínhamos contraído. Aqui não estamos diante de um Deus ofendido que exige a morte do Filho para satisfazer suas ânsias de justiça. Nada a ver com a experiência do Abbá que Jesus viveu.
O “pecado do mundo” não tem que ser expiado, mas arrancado, eliminado, destruído. Jesus “tira” o pecado do mundo inteiro, reconstruindo as relações quebradas; não aniquila alguns pecados concretos, algumas faltas particulares, mas o “pecado cósmico”, ou seja, tudo o que trava o fluir da vida.

Para o evangelista João, portanto, há um só pecado (a opressão, a injustiça) e um só mandamento (o serviço, o amor). Jesus tirou o pecado do mundo escolhendo o caminho do serviço, da humildade, da pobreza, amando a todos indistintamente até à entrega radical. Esta atitude destrói toda forma de domínio, de injustiça e violência, revelando que a salvação de Deus chegou para todos. Ao abrir o caminho da verdadeira vida, Jesus rompe todas as cadeias que mantinham oprimidas todas as pessoas.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Não se trata de uma mera infração, uma quebra de lei, nem mesmo de uma falta contra nós mesmos, mas sim de quebra de uma relação de amor e de amizade.
Em uma palavra, trata-se de uma recusa a viver e a amar.
Os horrores do sofrimento que o ódio, a violência, o terrorismo, a injustiça, a exclusão... apresentam aos nossos olhos, descrevem, em imagens bem vivas, a “experiência infernal” que a humanidade vive. Elas estão aí, onipresentes, como pesadelo assustador diante de nossa vista, veiculadas diariamente pelos meios de comunicação. São a consequência da resistência do nosso mundo em deixar-se transformar pelo amor redentor do Senhor; são expressões do fechamento da humanidade à proposta de vida do Criador, alimentando o dinamismo de morte, presente em seu interior.

É a partir daqui que o relato evangélico deste domingo desperta em nós a tomada de consciência de uma “história de pecado”: história de desintegração, de divisão, de desumanização...
Nosso drama é perder a memória de que somos parte do todo: ao distanciar-nos do Deus Criador, rompemos a relação cordial com todos e caímos num devastador vazio existencial. O “auto-centramento”, sem levar em conta a rede de vida que nos envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos.
São as “amarras sociais” que nos prendem, atrofiam nossa liberdade, bloqueiam o fluxo da vida divina e matam o impulso de “expandir-nos” em direção aos outros e à realidade que nos cerca.
Este é o veneno que nos corrói por dentro: petrificação de nossa interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico, o esvaziamento dos encontros...
O pecado – enquanto ruptura de relações - nos faz cegos e surdos diante do mundo da exclusão e da violência. E se há fome e sofrimento ao nosso redor, isso já não nos impacta. A maldade, a mentira, o preconceito, a intolerância..., não nos afetam mais. Não choramos mais as dores do mundo que construímos e ao qual pertencemos; anestesiamos nossa sensibilidade e entramos num estado de apatia e indiferença para com o mundo, as coisas e as pessoas. A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre.
Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.

O que buscamos, ao considerar o “pecado da humanidade”, é alimentar o desejo e o compromisso de que o mundo seja novamente o sonho de Deus: lugar onde todas as expressões de vida se encontram, em profunda sintonia. Está em nossas mãos construir outro mundo.
Nossa vocação, como seguidores(as) do Cordeiro é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço, para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, as relações sociais, as estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos de Jesus que passam, se compadecem, curam, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos.
Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala e nos revela o rosto misericordioso do Deus que se humanizou para humanizar nossa vida.
Nós só poderemos chegar a ser pontes, em meio às divisões de um mundo fragmentado, se tivermos feito a experiência do encontro com a Misericórdia reconstrutora do Deus Pai-Mãe.
Desse modo, frente a uma “cultura da morte”, cooperaremos com o Senhor na construção de um mundo novo, para uma “globalização na solidariedade”.
A conversão significa, portanto, re-orientar a cabeça e o coração para as “margens”, ativar o dinamismo da compaixão, desenvolver uma sensibilidade solidária e assumir lutas em defesa da vida e da dignidade das pessoas: “um outro mundo é possível”

Texto bíblico:  Jo 1,29-34  

Na oração:
Contemple a realidade com os olhos misericordiosos do Pai e com os olhos dos excluídos deste mundo; sinta a dor do Pai e a dor dos excluídos; olhe o rosto dos feridos deste mundo; olhe o rosto do Crucificado.
- Faça memória do mundo fragmentado, dividido, desumanizador... que clama por reconciliação.
- Sua presença, neste mundo, faz diferença? Você deixa fluir, através de todo o seu ser, a vida do Cordeiro?

sábado, 11 de janeiro de 2020

Batismo de Jesus: “tatuado” pelo amor do Pai

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade do Batismo do Senhor.


“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado” (Mt 3,17)

Começamos o “Tempo Comum” do novo ano litúrgico (Ano A: evangelista Mateus); ao longo deste ano vamos realizar um percurso contemplativo, deixando-nos impactar pelos mais importantes acontecimentos da vida pública de Jesus. É natural que comecemos com o primeiro relato deste percurso, o batismo.
Sem dúvida, foi a experiência decisiva na vida de Jesus. Ali, Ele tem clareza de ser o Messias, enviado pelo Pai, a serviço do Reino.
Jesus mergulha no rio Jordão e, ao sair das águas, experimenta uma “teofania” (manifestação) que revela seu mistério mais profundo e que antecipa sua Páscoa. Jesus é proclamado oficialmente o “Filho amado do Pai” e sobre Ele desce o Espírito.
Jesus se sente verdadeiramente o Filho amado do “Abbá”, e o batismo deixa claro que o motor de toda sua trajetória humana é obra do Espírito.
Nesse sentido, o Batismo revela-se como um momento chave no percurso de Jesus, marcando-o para toda sua vida; marcou sua experiência de Deus; marcou a experiência de si mesmo e marcou o caminho que tinha adiante.
Em Jesus, essa tomada de consciência de quem é Deus n’Ele, foi um processo que não terminou nunca. O relato do batismo está nos falando de um passo a mais, embora decisivo, nessa tomada de consciência.
O que a cena do Batismo nos relata é uma autêntica conversão de Jesus, o que não quer dizer que vivia uma situação de pecado, mas um profundo despertar de sua missão, em seu caminhar para a plenitude.

Pela primeira vez, em sua condição humana, Jesus sente a confissão do Pai sobre Ele; confessa-o como Filho. E lhe marca com os sinais do amor: “Este é meu Filho o amado, no qual eu pus o meu agrado”.
É a experiência messiânica fundante que marcará para sempre: júbilo, confiança, disponibilidade, fé profunda, fidelidade total, docilidade incondicional ao Pai e a seu desígnio de salvação.
Em seu batismo, Jesus ficou como que “tatuado” pelo amor do Pai. E por isso viveu numa total liberdade de espírito. Não importava se o rejeitavam, pois Ele se sentia profundamente unido ao Pai. Não importava se o criticavam, pois Ele se sentia marcado pelo amor do Pai. Não importava se os seus lhe abandonavam, pois Ele se sentia “tatuado” pelo amor do Pai.
Jesus quer viver sempre sendo Filho amado, que ama a seu Pai e, portanto, que ama o que seu Pai ama. Quer deixar-se apaixonar por aquilo que seduzia o coração do Pai: a vida da criação, a vida digna dos seus filhos e filhas, a quem também deixa transparecer um amor de predileção.
Essa experiência de ser “o Filho amado” será sua força vital durante toda a vida de Jesus. E essa também deveria ser a experiência do(a) seguidor(a) d’Ele: ser alguém “marcado como o(a) amado(a) de Deus”. Quando descobre este sinal e esta “tatuagem” de ser também ele(ela) “o(a) amado(a), o(a) predileto(a) de Deus”, então descobrirá o que é ser cristão(â), compreenderá sua fé, entenderá as exigências do Evangelho, acolherá o grande mandamento do Amor: “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado”.
Para amar como Ele amou, antes é preciso fazer a experiência de sentir-se amado(a) pelo Pai.

Deixando-se conduzir pelo Espírito, Jesus se encaminha para a plenitude humana, marcando-nos o caminho de nossa plenitude. Mas, é preciso ser muito consciente de que só nascendo de novo, nascendo da água e do Espírito, poderemos ativar todas as nossas possibilidades humanas. Não seguimos de Jesus a partir de fora, como se tratasse de um líder, mas entrando, como Ele, na dinâmica da vivência interior, onde o Espírito atua com liberdade. Daí em diante, tudo o que dissermos e fazermos será a manifestação continuada do Reinado de Deus, que experimentamos em nós mesmos.
Deus chega sempre a partir de dentro, não de fora. Nossa mensagem “cristã” de doutrinas, normas e ritos, está muito distante daquilo que Jesus viveu e pregou. O centro de sua mensagem consiste em convidar todos os homens e mulheres a ter a mesma experiência de Deus que Ele teve. Depois dessa experiência, Jesus vê com toda claridade que essa é a meta de todo ser humano e pode dizer como disse a Nicodemos: “é preciso nascer de novo”. Porque Ele já havia nascido da água e do Espírito.
Deus quer suscitar vibrações novas em nossas vidas e sua Presença instigante desperta em nós o grande desejo de entrar em sintonia com Seu coração. Abrir os olhos e os ouvidos à Presença e à ação de Deus nos faz ficar atônitos, fascinados e sensíveis à voz divina que cada dia ressoa em nosso interior.
Talvez Ele precise colocar outro ritmo em nossa existência, que nos permita estar atentos e à escuta das surpresas que a vida des-vela. A nós corresponde nos mobilizar e estar atentos aos movimentos do Seu Espírito e dos acontecimentos.

A experiência do batismo de Jesus também é importante para todos nós, seus(suas) seguidores(as), para compreender o verdadeiro sentido de nossas vidas.
As raízes de nossas histórias podem estar marcadas pelo amor ou pelo desamor. Quando estas raízes estão marcadas pelo amor, crescemos em harmonia conosco mesmo, em harmonia com os outros e em harmonia com o mundo. Quando nossas raízes estão regadas pelo amor crescemos com segurança em nós mesmos, com confiança nos outros e nossas vidas passam a adquirir o sentido da unidade interior.
Somente aqueles(as) que mergulham nas águas do perdão, da compaixão, do amor solidário..., saem marcados pelo Espírito e confirmados na filiação.
O mundo seria diferente se as pessoas, rompendo o medo e a insegurança, se atrevessem a sair dos seus moldes, dos seus hábitos arcaicos, das suas maneiras atrofiadas de pensar, sentir, amar...
Recordando os inícios do cristianismo, com João Batista submergindo as pessoas no rio Jordão, não podemos deixar de dar um destaque especial que também Jesus se submergiu.
Jesus se submerge e experimenta, escuta, sente, adquire lucidez... Essa passagem de Jesus é determinante para nos abrirmos a uma experiência nova na vivência do seu seguimento. Ele nos aproxima ao abraço refrescante de Deus, recebido nas águas. O que para os outros foi purificação, perdão..., para Jesus é de um dinamismo incomparável. Essa experiência O transforma, O faz ir além de si mesmo, rompendo visões estreitas de Deus, quebrando conceitos antigos de religião...
Submergir-nos é sinônimo de deixar Deus, a Vida, trabalhar em nós. A água, com sua força misteriosa, com sua capacidade de gestar vida, é também um símbolo que nos move a abandonar o que é arcaico para deixar-nos submergir no que é de Deus, nunca antigo, nunca ultrapassado. A água que corre, que flui, sempre é nova. Deus Fonte inesgotável: Ruah, ar, alento, espírito, dinamismo, puro fluir.
Encharcados de água, entramos no fluir daquele maravilhoso início, quando a Ruah fluía e enchia nossa vida de alento e inspiração. Precisamos nos atrever a submergir de novo, adentrando-nos por caminhos desconhecidos, para descobrir nosso mapa interior e nossa verdadeira identidade: “Filhos e filhas, amados(as) do Pai”.


Texto bíblico:  Mt 3,13-17

Na oração:
Na musicalidade da vida sinta a regência, suave e delicada, do Grande Compositor, arrancando notas divinas da dispersão caótica do seu cotidiano. Sinta a cadência da música divina que vibra, conduz e vivifica. Receba, com gratidão, o mais leve toque das mãos providentes e ternas do Grande Maestro.
Aguce seus ouvidos e escute até com os olhos a sinfonia que brota do mais profundo de seu ser.
- Faça memória de sua experiência batismal; renove, junto ao Jordão interior, seu compromisso batismal.

domingo, 5 de janeiro de 2020

EPIFANIA: Deus se manifesta sempre, mas a partir de dentro

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Epifania do Senhor do Natal.



“Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma alegria muito grande” (Mt 2,10)

O relato evangélico deste domingo é desconcertante: o Deus, escondido na fragilidade humana, não é encontrado pelos que vivem instalados no poder ou fechados na segurança religiosa. Ele se deixa revelar àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano, na ternura e na pobreza da vida.
Para além da intencionalidade do evangelista Mateus, o texto contém um profundo simbolismo, carregado de sabedoria. Tudo começa com uma “estrela”. É a luz interior (intuição, insight) que desencadeia o processo de busca e nos põe a caminho. Pode aparecer de maneira inesperada, em qualquer momento e, com frequência, costuma surgir numa situação de crise que, ao remover nossos hábitos, faz com que nos abramos a uma dimensão mais profunda.

Estar a caminho de Belém é fazer a travessia em direção a nós mesmos. Ao buscar uma Criança na Gruta, buscamos nossa verdade mais profunda e original, a verdade interna da alegria e do amor, do sentida da vida, em meio a um mundo no qual a maioria só parece buscar coisas externas, afastando-se de si mesmos.
A luz que aqui importa é a tua, a nossa, a minha, ou seja, a de Deus que ilumina o caminho da vida, que nos leva até Jesus e com Jesus nos leva ao Reinado do Pai, que é a plenitude de nossa própria vida.
Peregrinos somos todos, mas não em guerra de estrelas (star-wars) e sim em um caminho messiânico que leva ao ouro, incenso e mirra de Belém, que é o sinal da verdade da vida.
Trata-se sempre da voz do desejo que nos habita, e que não é outra coisa que expressão de nossa verdadeira identidade que nos chama para “voltar à casa”.
Com efeito, o caminho no qual o desejo nos introduz é o caminho da verdade; a estrela sempre conduz à verdade. E sabemos ou intuímos que a verdade vai nos desnudar de tudo aquilo que havíamos absolutizado.
Por esse motivo, é importante que nos perguntemos se realmente buscamos a verdade..., ou nos conformamos com qualquer coisa que a substitua.
A estrela não tem outra finalidade que a de conduzir-nos à “casa”, nossa gruta interior. Mas, apenas iniciamos o caminho, aparecem as dificuldades: os apegos que não estamos dispostos a soltar, as formas de viver que se fizeram habituais, o medo do incômodo que toda mudança supõe, o susto diante do desconhecido... e, em último termo, a ignorância básica que nos faz acreditar naquilo que não somos e nos mantém acomodados na noite da insatisfação existencial.

Os Magos (sábios) do Oriente são símbolo do ser humano em sua busca de Deus, em seu desejo de infinito e plenitude. Esta é a “impressão digital” de artista que Deus deixou em todos nós: a saudade do divino, do sublime, do infinito, do pleno, do Outro.
A estrela simboliza a força dos desejos mais profundos do ser humano (no latim, a palavra desejo “de-sid-erium”, contém a raiz “sid”: sideral, firmamento, horizonte). Portanto, quem deseja transgride as estreitas fronteiras da vida e se deixa conduzir para além de si mesmo; quem não ativa os desejos profundos, limita-se a vegetar, a cercar-se de proteção, a buscar segurança... atrofiando a própria existência. Só os nobres desejos, presentes em nosso interior, alimentam o espírito de busca, acendem a criatividade e nos movem ao encontro do novo e do diferente.
Se levássemos a sério o movimento de “saída” dos Magos, muitas coisas poderiam mudar: o interior de nós mesmos, nosso entorno mais próximo, a estrutura social, as igrejas, as religiões, a ecologia...
O “quê” da questão não está nos verbos senão no sujeito ativo que gera o ato de sair, buscar e encontrar.
Como os Magos, precisamos ativar a capacidade de abrir a janela que nos conecta com a vida dos outros e nos permite continuar interessados, com paixão e com lucidez (para ter boas fontes de informação), por tudo aquilo que está ocorrendo em nosso convulsionado mundo. Visitar ambientes que talvez nunca tivemos ocasião de conhecer, sair de nossos espaços rotineiros e conhecidos, abrir-nos às surpresas da vida...
Os Magos perguntam àqueles que podem ajudá-los. Hoje precisamos dialogar com mais profundidade.

Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, interesses.
Ele carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz... Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele, não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à grande importância de quem ou do que se busca. Vale a pena buscar o que é importante e encontrar Aquele que responde às razões mais profundas da busca.

Os Magos ensinam como devemos nos mobilizar para viver esse deslocamento (geográfico, interno, social...) para acolher intensamente a surpresa do encontro: caminham em busca, observam os sinais com atenção, desfrutam o trajeto com alegria, porque a alegria consiste em caminhar para o outro, entram no lugar onde Maria já oferece o ambiente aberto... É interessante notar este detalhe do texto do evangelho: “viram o menino com Maria, sua mãe” (v. 11); tudo indica que o tinham em frente, no centro, como o mais importante. Maria põe o Filho fácil de ser encontrado. Nem sequer perguntam por Ele, já o descobrem imediatamente. Não estabelecem diálogo com a mãe. Vão mudos e diretos ao objetivo. Podemos aqui intuir o regozijo de Maria, pois sua felicidade é que a humanidade descubra seu Filho como ela o descobriu.
Uma vez dentro, os visitantes se prostram, se abaixam, reconhecem, identificam, adoram. Em seguida abrem seus cofres e oferecem seus presentes.
O relato diz que os magos levaram ouro, incenso e mirra. A meta, para a qual aponta a voz do desejo, requer desapego e desprendimento de nossos “tesouros”. E isso só é possível quando compreendemos que aquilo à qual nos havíamos apegado se esvazia diante da verdade d’Aquele diante de quem estamos.

Procuremos, neste dia festivo, seguir os passos do processo de busca-encontro-manifestação que os Magos experimentaram. Eles buscavam o Rei dos judeus porque “viram sua estrela”, e o encontram em um menino, em casa, com sua mãe, Maria. Descobrem o divino no humano mais frágil. Este é o núcleo da mensagem do relato da Adoração dos Magos. O divino está no humano. Quanto mais humano mais divino.
Como os Magos, também nós somos buscadores de Deus. E, como eles, devemos nos perguntar: a quê Deus buscamos? Onde o encontraremos? Como é possível saber que de fato o encontramos?
A Epifania consiste no encontro com Recém-nascido em Belém; o reconhecimento recíproco transforma os Magos em testemunhas vivas da Boa-Nova. Transformados, eles mesmos se tornam Boa-Nova e assim anunciam, em diálogo vivo, a Luz das nações.
Epifania é deter-nos a contemplar aquela Criança, o Mistério de Deus que se faz homem na humildade e na pobreza; mas é, sobretudo, acolher de novo em nós mesmos aquele Menino, que é Cristo Senhor, para viver de sua mesma vida, para fazer que seus sentimentos, seus pensamentos, suas ações, sejam nossos sentimentos, nossos pensamentos, nossas ações. Celebrar a Epifania é, portanto, manifestar a alegria, a novidade, a luz que o Nascimento de Jesus trouxe e que afeta toda a nossa existência, para sermos, também nós, portadores da alegria, da autêntica novidade, da luz de Deus aos outros.


Texto bíblico:  Mt 2,1-12

Na oração: Em sua aparente simplicidade, o relato dos Magos nos apresenta perguntas decisivas: diante de quem nos ajoelhamos? Como se chama o “deus” que adoramos no fundo de nosso ser? Como cristãos, adoramos o Menino de Belém? Colocamos a seus pés nossas riquezas? Estamos dispostos a escutar seu chamado para entrar na lógica do Reinado de Deus e sua justiça?
- O que os Magos despertam em nós, hoje?

ANO NOVO: presença visível do Deus da Paz

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria do Natal (Dia Mundial da Paz):

Que a travessia para o Novo Tempo reacenda, em cada um(a), o espírito de assombro e admiração para acolher as surpresas que o "Senhor dos tempos", em sua bondade infinita, fará chegar a todos.
Um inspirado 2020 com a marca do "Deus da Paz".


“Paz na terra aos homens que o Senhor ama!” (Lc 2,14)

Novamente nos encontramos abrindo um Ano Novo: desejado, esperado, buscado...; estreamos e recomeçamos um novo tempo; ocasião privilegiada para aprofundar o sentido do tempo, no qual se desenrola nossa existência. Não podemos fazer a “travessia” em direção ao Novo Ano sem fazer uma reflexão sobre nós mesmos e examinar como estamos fazendo uso de algo tão importante e tão passageiro como o tempo.
No texto bíblico, encontramos duas palavras gregas que traduzimos por “tempo”, mas que tem um significado muito diferenciado.
“Chronos” é o tempo astronômico que se refere à passagem das horas, dias e anos. Em princípio, é o que estamos celebrando hoje. Trata-se de um tempo que absorve, devora, desgasta, esgota...; ele se torna cada vez mais veloz, fugaz, estressante... Tempo de excessos, com a marca da ansiedade e do estres; por isso mesmo, gerador de conflitos e tensões.
Com isso, a existência inteira faz-se maquinal e rotineira: é a soma das horas, dos dias, dos anos. Marcados por tradições e hábitos, dialogamos com o possível, o já esperado, o já testado, o “sempre fizemos assim”...
Corremos o risco de sermos apenas imitadores ou repetidores, pois tememos nos perder na busca do novo; as respostas são confirmadas, mesmo que estas estejam velhas e desfocadas e as perguntas são silenciadas. Vivemos restritos ao cotidiano com o anonimato que ele envolve. Um tempo assim só é habitado pelo “ego”, não há lugar para o outro. Também Deus não consegue entrar nesses “tempos apertados”.
Aqui, a paz tão desejada, não encontra terreno propício para se tornar realidade.

Outro termo grego referente ao tempo é “Kairós”: este é o tempo humano; é o tempo oportuno, carregado da presença d’Aquele que é o “Senhor dos tempos”.
Trata-se do tempo que nos é dado como dom e como oportunidade para ativar todos os nossos recursos internos.  É o tempo da interioridade, de crescimento no ser. Viver o “kairós” significa sentir o desejo do retorno à espontaneidade, alimentar a aventura na descoberta de um mundo diferente, ativar o impulso à transcendência, proporcionar um clima favorável à paz como dimensão plenificante da existência humana.
Viver o “kairós” nos faz tomar consciência de que nos encontramos diante de uma grande carência existencial e que os anjos, na noite do Natal, souberam proclamar aos pastores e à toda humanidade: a presença da Paz. Eles revelaram o significado daquela Noite Santa: o céu e a terra se reconciliam, porque Deus faz chegar a paz e a salvação a todos os seres humanos. A Criação inteira celebra a soberana Bondade e o amoroso Coração do Criador, sendo, portanto, uma celebração da alegria e da paz.
Felizes aqueles (as) que, na Gruta de Belém, se mostram sedentos de paz e justiça, e despertam dentro de si uma fome crescente para tornar realidade a igualdade e dignidade de todo ser humano!
Cremos na paz do coração e no empenho por deixá-la transparecer no mundo em que vivemos, tão carente de pacificadores.
Paz, um bem escasso, mas tão precioso que é sempre desejado e buscado, para que a vida se torne um pouco mais plena e com sentido: paz interior, paz na família, paz nas relações de trabalho, paz na ação política e paz entre os povos.

Muitos se perguntam para onde vai nosso mundo, surpreendidos e preocupados pelo crescimento de uma violência desconcertante. Em muitos países triunfam líderes populistas, manejados por forças ocultas sem escrúpulos e marcados por discursos intolerantes, preconceituosos e julgamentos moralistas; a corrupção vai lançando raízes em todos os ambientes; os conflitos e as rupturas se acentuam; a Igreja católica é sacudida por uma grande crise de credibilidade; o sistema de valores e conhecimentos está mudando profundamente. Vivemos um momento de um grande colapso civilizatório: uma metamorfose da sociedade que afeta todos os aspectos da vida, pessoal e coletiva, de toda a humanidade. Trata-se, pois, de uma crise global, embora às vezes possa parecer local ou inclusive pessoal. Tudo isso nos inquieta, nos tira a paz.
Em virtude dessa brutal situação de violência, observa-se em toda parte um grande clamor social pela paz. Esse clamor das multidões está nas ruas, nas grandes passeatas pela paz, nas redes sociais e está no desejo mais profundo de cada um de nós.
Infelizmente, todos os dias aparecem, nos meios de comunicação, mais motivações para a violência do que razões para a paz. Entretanto, precisamos afirmar: “não fomos feitos para a violência”; a humanidade não é naturalmente inclinada à violência. Nosso coração é habitado por um desejo profundo de paz: “Felizes os que promovem a paz!” (Mt 5,9)


Na raiz bíblica do termo “shalom” (paz) está a ideia de “algo completo, inteiro”, “estar terminado”. 
Paz significa o que é integral, o que plenifica a vida. Shalom é vida em expansão, na presença de Deus.
Portanto, quem vive no “Shalom” está com saúde, sente-se bem, encontra-se em um estado de plenitude.
Quando alguém deseja “Shalom” a outro é como se dissesse: “Que Deus te conceda todo o necessário para viver em amizade com Ele, em fraternidade com o próximo e calma dentro de ti mesmo”.
A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto. Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, quebra as relações, exclui os mais fracos...; há uma paz falsa que é a injustiça estabelecida, porque a verdadeira paz está ligada à justiça. Não há paz sem liberdade, não há paz sem verdade.
Em Belém, somos pacificados de nossas ansiedades e pressas, de nossa sede de poder e de acumular mais; e, se permanecemos em silêncio ali, diante do menino deitado no presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos no rosto aberto daquela Criança; ao mesmo tempo, brotará também um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua paz.

Ao nos reconhecermos nessa morada interior, podemos receber a paz cantada pelos anjos diante dos pastores; não só isso: descobrimos que, na essência, “somos paz”. Não é a “paz do mundo”, que sempre é oscilante e inconstante, senão a Paz que abraça todas as situações da vida, porque estamos enraizados naquilo que realmente somos.
A paz natalina é a paz que somos, no nosso “eu” mais profundo.
A paz não é “algo”, nem vem “de fora”, nem é condicionada. A Paz da qual os anjos proclamam é a unidade com nossa interioridade: é outro nome de nossa verdadeira identidade.
E diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as no coração”. Ir mais além dos conceitos e das palavras e, desse modo, descansar – admirados, agradecidos, irmanados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.
 “Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar contemplativo”, presente em todos nós e que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados (as) interiormente, seremos presenteados com o dom de permanecer no presente, onde tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz.

Texto bíblico:  Lc 2,16-21

Na oração: Que a “entrada” neste Novo Ano nos faça descer em direção à nossa humanidade.
Ali, nas grutas de nosso interior, recanto de paz, uma infância divina nos espera... e nos enche de alegria. Ditosos somos nós se podemos saborear e abraçar a paz do coração que o Menino Jesus traz e oferecê-la largamente para que outros possam também receber seu dom: sem defesas, sem preços, sem temores.
Que nosso coração, apesar de tudo, continue pulsando em paz, na Paz que tudo cria e transforma!
- Como seguidores(as) do Menino Deus, devemos criar politica-mente outro tipo de sociedade fundada nas relações justas entre todos, com a natureza, com a Mãe Terra e com o Todo que nos sustenta. Então florescerá a paz que a tradição ética definiu como “a obra de justiça”.
- Que 2020 seja, para todos, um Kairós carregado daquela Paz que brota da Gruta de Belém.