sábado, 31 de março de 2018

SÁBADO SANTO: “Ameaçados” de esperança

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do Sábado Santo da Páscoa do Senhor.

“José comprou um lençol de linho, desceu Jesus da Cruz, envolveu-o no lençol e colocou-o num túmulo escavado na rocha; depois, rolou uma pedra na entrada do túmulo” (Mc 15,46)

A gravidez é uma metáfora sugestiva e provocadora sobre o Sábado Santo; no silêncio e na obscuridade do sepulcro tem lugar a segunda gestação de Jesus Cristo e o novo parto do homem, da mulher e do cosmos renovados. Assim, o sepulcro é contemplado como o ventre da terra, onde acontecerá o milagre da renovação plena da vida. O amor é mais poderoso que a morte e quem ama não morre nunca, senão que suas sementes são húmus e germe de nova vida, embora não possamos controlar quando nem onde.
É preciso saber acolher este silêncio surdo, que marca a passagem entre duas experiências intensas: a Sexta-feira de dor e o Domingo de Ressurreição.
No sepulcro, Jesus se faz solidário com toda a morte humana. E é preciso esperar com Ele. É preciso esperar em nossos projetos e sonhos, na libertação dos povos, em uma nova humanidade.
Em nossas vidas teremos muitas sextas-feiras santas de dor e dias de páscoa, mas, teremos muito mais sábados de espera.

Fazer memória do Sábado Santo nos faz compreender que, nos sábados santos da vida não podemos ter a pretensão de querer ver o significado de tudo o que vivemos, no mesmo momento que o vivemos. Muitas vezes, terão que passar muitos anos para poder ver o rosto do Deus vivo em situações vividas de dor e abatimento; além disso, temos que começar a entender que não podemos pretender chegar ao último dia com todas as interrogações resolvidas.
Saber viver neste tom vital é o que nos convida o Sábado Santo.

A partir da experiência sabática, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o sepulcro vazio pode causar dúvida, mas ele aponta para a ressurreição; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.
A terra, a humanidade, o cosmos... estão todos grávidos de Ressurreição. Assim começa a ressurreição; assim começa essa experiência que alguns chamam “a outra vida”, mas que na realidade não é a “outra vida”, mas a vida “outra”.
Como nos deixou escrito um jornalista guatemalteco, desaparecido sob a ditadura nos anos 80. “Dizem que estou ‘ameaçado de morte’; nem eu nem ninguém estamos ameaçados de morte. Estamos ameaçados de vida, ameaçados de esperança, ameaçados de amor. Estamos ‘ameaçados’ de ressurreição. Porque Jesus, além do Caminho e da Verdade, é a Vida, embora esteja crucificado no alto do lixão do Mundo...”
Ameaçados de vida, ameaçados de esperança, mesmo que a esperança frequentemente seja uma “esperança enlutada”. Há homens e mulheres que se fizeram “experts” em transitar e esperar na noite. São nossos “mestres e mestras do Sábado Santo”.

O ser humano que espera não tem certeza, não fica seguro, não está satisfeito. Mas a esperança tem fundamento; não é uma ilusão e nem uma utopia; não é um sonho impossível e nem uma lembrança irrecuperável; não é só futuro, mas permanece, disfarçadamente, presente; não é uma morada, mas um sentimento sempre inédito. A esperança evita tropeçar no fracasso, no desânimo, na apatia e no silencioso desespero.
A esperança é caminho e meta, posse e dom, destino e encontro, antecipação e cumprimento, expectativa e busca, risco e proteção, nó e liberdade.  A esperança é certa, mas não dá “garantias”.
       “O coração do cristão é inquieto, está sempre em busca, em espera: esta é a esperança...
        porque a esperança é aquela que faz caminhar, faz abrir estradas...” (Massimo Cacciari)
O ser humano-esperança é o peregrino que caminha, é o artífice que tece o existir.
Esperança é força prospectiva que suscita passos para a gênese da nova humanidade. Esperança é o ser humano nômade. Des-loca-se. Des-dobra-se. Inventa-se. Deixa de ser o que era para chegar a ser o que ainda não é. Na noite ela se acende; na impotência, ela vence; na finitude, ela impele a caminhar.
A esperança é brasa, é pés, é caminho, é narrativa, é assombro, é antecipação.
Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. A esperança é o canto que ativa a coragem nos corredores escuros da história.

Poderíamos acrescentar que uma humanidade, incapaz de cultivar a esperança, não merece ser considerada, porque lhe faltaria a única razão pela qual vale a pena existir. Sem a esperança, a humanidade perde a iniciativa. Embota-se.
A vida sem desafios não é real; mas a vida sem espera, sem desejo, sem paixão, sem esperança, não é vida.
A esperança mora onde a deixamos entrar: onde lutamos, onde convivemos com o outro diferente de nós, onde a fragilidade e a transição podem desorientar, onde as trevas parecem mais fortes que a luz, onde a vida parece ser ameaçada pela morte, onde a violência pensa levar vantagem, onde o caminho é íngreme, onde a espera se confunde com a angústia...
A força da esperança está oculta precisamente na sua impotência e fragilidade.

Mas não basta ter esperança. É preciso ser esperança. O ser humano vive de esperança, acredita na esperança, mas, sobretudo é esperança. A esperança leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É madrugada e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. A esperança pascal antecipa aquilo que ainda não é realidade. É o futuro que ainda pode ser convertido em história nova.
O mal, a injustiça, a violência, o sofrimento, existem em nossa história, mas não tem a última palavra sobre ela. A ternura de Deus é mais poderosa e ela é nossa esperança, ela nos sustenta nos túneis mais escuros da vida a partir de dentro, atravessando-os. Deus é nossa esperança; o Deus da vida que nos ama até o extremo é a esperança que nos ampara contra toda desesperança.
Mas a esperança não é uma propriedade privada, mas um presente comunitário, coletivo, um bem comum, como nos diz o Papa Francisco:
“Não vos deixeis roubar a esperança! Talvez a esperança seja como as brasas debaixo das cinzas; ajudemo-nos uns aos outros com a solidariedade, soprando nas cinzas, a fim de que o fogo volte a atear-se mais uma vez. Pois é a esperança que nos faz ir em frente. E isto não é otimismo, mas algo diferente. Todavia, a esperança não é de uma só pessoa, a esperança fazêmo-la todos juntos. Temos que alimentar a esperança entre todos, entre todos nós e todos nós que estamos distantes. A esperança é algo vosso e também nosso. É algo que pertence a todos” (Discurso aos trabalhadores de Cagliari – 22/set/2013).
A Cruz permanece em seu lugar, mas o sepulcro fica vazio para sempre!
É Ressurreição: vida plena antecipada.



Textos bíblicosMc. 15,42-47   Jo. 19,38-42

Na oração: Como muitos mestres e mestras, cujas vidas são testemunhas da esperança, como os discípulos de
                     Jesus e como as mulheres que o acompanharam até o final, nos perguntamos:
- É possível esperar quando sentimos que a realidade é um “beco sem saída”?
- Como esperar em meio a tanta violência, preconceito, indiferença
- Como esperam os vencidos, os últimos, os excluídos...?
- Como aprendemos a esperar quando nos encontramos tendo que enfrentar situações-limite?
- Qual tem sido nosso suporte e ajuda nesses momentos da vida e como podemos oferecê-lo aos outros?
- Quê aprendizagens vitais fizemos na densidade da noite em nossas vidas?
- Quê e quem nos ajudou a rolar a pedra do sepulcro de nossa vida?

sexta-feira, 30 de março de 2018

Sexta-feira Santa - As sete palavras de Jesus na Cruz

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Celebração da Paixão do Senhor.

São sete expressões ditas por Jesus na Cruz e recolhidas pelos evangelistas; elas condensam a vida do Crucificado. Nestas expressões revela-se a identidade de Jesus: quem Ele é e sua missão.
Vamos contemplar o significado das “palavras pronunciadas por Jesus na Cruz”, deixando-nos impactar e iluminar por elas. São palavras densas, carregadas de vida; palavras “ex-cêntricas”, onde Jesus sai de si e se dirige aos outros.

1. PERDÂO. “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23,34)
Jesus, na sua vida pública, sempre revelou o perdão do Pai; no encontro com os pecadores deixou transparecer a misericórdia reconstrutora de Deus. O perdão foi a marca de sua vida e deve ser também a marca dos seus seguidores.
É difícil perdoar: a dor, o orgulho, a própria dignidade, quando é violentada, grita pedindo “justiça”, buscando “reparação”, exigindo “vingança”... Mas, perdão?
Surpreende-nos que Jesus na Cruz seja capaz de continuar vendo humanidade em seus verdugos; Ele é capaz de continuar crendo que há esperança para aqueles que cravam seus semelhantes na Cruz.
Porque, esta palavra de perdão, dita a partir do madeiro, é sobretudo uma declaração eterna: o ser humano, todo homem e toda mulher, conserva sua capacidade de amar nas circunstâncias mais adversas. E todo ser humano, até aquele que é capaz das ações mais atrozes, continua tendo um germe de humanidade em seu interior e que permite que haja esperança para ele.  Perdoar é atrever-se a ver o que há de verdadeiro, de beleza em cada um. O perdão é capaz de ver dignidade e faísca de humanidade escondida no coração do verdugo. O perdão abre futuro, destrava a vida e não se deixa determinar pelos erros do passado; ele quebra distâncias, nos faz descer em direção à fragilidade do outro, ao mesmo tempo que revela nossa fragilidade. É enquanto pecadores que somos chamados a perdoar e não enquanto justos. Por isso, no perdão é onde mais nos assemelhamos a Deus, pois só Ele podia inventar o perdão.
Deus também continua me perdoando hoje, pelas atitudes pecaminosas em minha vida que destroem, rompem, ferem os outros e o meu mundo.
- Deixar ressoar esta expressão de Jesus: Fiz experiência de perdão? Sou capaz de perdoar e acolher o perdão?

2. CONTIGO. “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43)
Jesus sempre viveu “em más companhias” e agora morre entre dois ladrões. Mais uma vez, não assume o papel de juiz sobre dos outros mas oferece uma nova chance de salvação. O moribundo que dá vida: presença solidária, que, mesmo em meio ao pior sofrimento, oferece companhia a outros sofredores.
Um dos ladrões, impactado pela serenidade e testemunho de Jesus “rouba o paraíso”.
Jesus revela uma promessa que muitas pessoas precisam ouvir hoje, sobretudo aqueles que carregam cruzes injustas e pesadas, que vivem realidades atravessadas pela dor, pela solidão, dúvida, incompreensão ou pranto... Como soarão estas palavras no interior de cada um de nós: “Hoje estarás comigo no Paraíso”
Hoje: porque as mudanças, a nova criação, a humanidade reconciliada, não tem que esperar mais; hoje, agora, já...; talvez esse “hoje” não chega é por causa de tantas pessoas que não decidem, não optam, esperam sentadas...
Comigo: promessa de viver em sua companhia e desperta ecos de uma plenitude que não conseguimos entender.
No paraíso: que não é um mítico Eden, mas lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais pranto, nem dor; realidade já presente onde habitará a justiça e a paz.
- Deixar ressoar esta expressão de Jesus para construir, hoje, o Paraíso em nosso cotidiano.
- Como viver hoje no paraíso? Neste momento, a quem podemos despertar a esperança?

3. APOIO. “Mulher, eis o teu filho; filho, eis a tua mãe” (Jo 19,26)
Maria, mulher do “sim”; “sim” que se prolonga até à Cruz, onde, de pé, revela sua presença materna e consoladora junto a seu Filho Jesus.
A presença de Maria na vida de Jesus não é acidental: foi aquela que mais amou, conheceu e seguiu Jesus. Ela agora é nossa referência fiel no seguimento do seu Filho.
Despojado de tudo, Jesus tem um tesouro a nos dar: entrega sua própria mãe para que ela seja presença cuidadora e de ternura junto aos seus filhos sofredores.
Jesus não nos deixa órfãos; sempre precisamos dos cuidados e do consolo de uma mãe; alguém para nos acompanhar nas horas mais obscuras e difíceis; alguém que nos sustenta nos momentos trágicos; alguém que compartilha nossas perdas... e que também está presente nas horas boas, que chegarão.
É como se Jesus nos dissesse: “Para viver o meu seguimento, inspire-se nela, tenha-a como referência”.
Não estamos sozinhos: muitas presenças marianas em nossas vidas – amigos, pais, filhos... São tantas pessoas junto ao pé da cruz, inumeráveis homens e mulheres de Igreja que foram e são companheiros de caminho, de esforço, de apoio, de buscas e de amor.
João, também de pé junto à Cruz, representa todo seguidor fiel de Jesus, mesmo nos momentos de crise.
- Deixar ressoar estas palavras de Jesus: ser presença materna e cuidadora junto aos sofredores; prolongar o modo solidário de Maria junto aos crucificados.

4. SOLIDÃO. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”  (Mt 27,46)
O grito de Jesus na Cruz condensa o grito da humanidade sofredora; é o próprio Deus que grita seu abandono.
Esse grito de Jesus revela uma Presença no próprio abandono, embora, de imediato não se sinta esta presença. Grito que não fica no vazio, mas aponta para a Vida.
Todos perguntamos: “Onde está Deus no sofrimento, na violência, na morte...?” E Deus responde, perguntando: “Onde está você no meu sofrimento, na violência que sofro, na morte... de meus filhos/as?”
O sofrimento da humanidade é o sofrimento de Deus; Deus não é insensível e distante da dor dos seus filhos.
Quem não passa por momentos de noite escura, de insegurança, de absoluta incerteza...?
Quem não viveu experiências de abandono, de falta de sentido na vida, de solidão, de rejeição...?
Quem não tem momentos de ceticismo, de amargura, de medo, de dúvida...?
Quem não se pergunta, talvez por um instante fugaz mas pungente, onde está Deus agora?
Nesses momentos temos a impressão de que todas as nossas opções foram equivocadas, que cada decisão nos levou por um caminho sem saída... Nesses tempos nos remorde o fracasso, a miséria, própria e alheia.
É do meio desta situação que brota um grito desesperador, como o de Jesus... No entanto, nos atrevemos a seguir adiante, com nossos projetos, compromissos e esforços em seu nome.
O desafio está em não ceder, em não crer que tudo tem sido uma mentira. O desafio é não abandonar, não render-se, não capitular nesses momentos.
Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Não são poucos os gritos dos mais pobres e excluídos. É um clamor forte pela intensidade de suas carências. Um clamor surdo porque não consegue impactar de modo a conseguir respostas prontas e imediatas aos graves problemas que os afligem.
O grito dos sofredores é sempre forte. Forte pela violência das necessidades e das urgências para a garantia de uma vida mais digna. Em Cristo se condensam todos os gritos da humanidade sofredora.
Sua força, no entanto, não consegue incomodar a todos os que precisam ser interpelados pela exigência deste clamor. Um grito, pois, é a expressão do mais forte sentimento que está no centro do próprio coração; é, também, a expressão mais concreta do que aflige o coração.
Um grito é, na verdade, um convite a um compromisso solidário.
O grande grito de Jesus é a certeza de tudo o que sustenta o seu coração; ao ecoar junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio mas aponta para a vida.
- Deixar ressoar este grito de Jesus: quais são os gritos surdos que brotam da realidade hoje?

5. SEDE. “Tenho sede...” (Jn 19,28)
Jesus sempre foi um homem “sedento”: fazer a vontade do Pai, realizar o Reino, compromisso com a vida, presença solidária junto aos sofredores, fazer conhecido a Deus como Pai/Mãe...
Agora grita sua derradeira sede: um mundo sem dor, sem exclusão, sem violência
Grita o homem com a garganta ressequida: sede na garganta e sede no coração. Sede expansiva, sede que descentra.
Grito que se multiplica em milhares de gargantas espalhadas pelo mundo: quero “justiça”, clamam os injustiçados deste mundo; quero “pão”, pede a criança com a barriga inchada de ar e de fome; quero “paz”, exclama a testemunha de atrocidades sem fim; quero “amor”, pede o jovem solitário por ser estranho; quero “moradia”, sonha o morador de rua que dorme em um banco da praça; quero “trabalho”, suspira uma jovem que se sente fracassar; quero liberdade escreve o presidiário em seus poemas; quero saúde, recita o enfermo em seu leito... Vozes de compaixão, vozes de pranto, vozes que refletem as dores do mundo.
Há alaridos, e também sussurros, todos carregados de sensibilidade dolorida.
O grito de Jesus na Cruz recolhe todos esses brados da humanidade quebrada. E não há explicação; não há sentido; não há justiça. Só um grito a mais.

A sede de Jesus desperta em nós outras “sedes”: de quê tenho sede? Sede de sonhos, de mundo novo...
Sede mobilizadora que ativa as melhores energias dentro de nós, que desperta nossa criatividade...
Sede que purifica nossa capacidade de escutar os gritos, de perto e de longe. O quê fazer?
“Quem tem sede venha a mim e beba”. Quem não tem sede não busca, não cria.
- Deixar ressoar essa súplica de Jesus: A quem precisamos nos atrever a escutar?

6. COMPROMISSO. “Tudo está consumado” (Jo 19,30)
Parece contradição alguém dependurado na Cruz afirmar que tudo está consumado; tem-se a impressão de fracasso total. Mas na Cruz Jesus leva até às últimas consequências sua Encarnação: mergulha e se faz solidário com todos os crucificados da história. “Desce” até às profundezas do sofrimento humano e ali revela a presença do Deus compassivo.
No alto da Cruz, Jesus tem consciência que não viveu em vão; sua presença fez a diferença; viveu para os outros. Jesus morre com as mãos cheias de vida; gastou a vida a serviço da vida; deixou pegadas nos corações de quem encontrou pela vida. “Jesus morreu de tanto viver”. Morreu de bondade, de compaixão, de justiça.
Jesus teve um “caso de amor” com a vida; viveu intensamente.
Uma vida consumada faz fecunda a morte. Uma história consumada de Amor. Vida consumada quando se consome no serviço aos outros. Jesus desencadeou um movimento de vida.
- Deixar ressoar esta afirmação de Jesus: quão plenificante é poder dizer a cada dia: tudo está consumado. É poder dizer como Pablo Neruda: “Confesso que vivi”.

7. SENTIDO. “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46)
Só quem viveu intensamente uma vida expansiva pode acolher a própria morte com paz, confiança, serenidade e abandono nos braços do Pai. Jesus morre como tinha vivido: ancorado na confiança do Pai.
Jesus, que sempre prolongou as mãos do Pai, agora entrega-se confiadamente nos braços do mesmo Pai.
Jesus sempre viveu em profunda sintonia com o Pai; agora Ele dá um “salto vital” nos braços do Pai.
Ao “entregar seu espírito” Jesus é “aspirado” para dentro de Deus.
A morte nos inspira medo; mas na morte, somos todos iguais, sozinho diante de Deus.
A morte é a última ponte que nos conduz ao Pai. Seremos abraçados do outro lado da ponte. Nosso destino é o coração de Deus.
Não só na hora da morte, mas a cada dia somos chamados a “entregar o espírito”; num mundo em que todos buscam seguranças, que em tudo querem ter “salva-vidas”, num mundo que nos convida a ter as costas cobertas... queremos arriscar, apostar pelo Reino; queremos nos sentir confiados, atravessar tormentas ou espaços serenos, sentindo-nos protegidos pelas mãos do Pai. Mãos que curam, acariciam, sustentam...
- Deixar ressoar em nosso interior as palavras de entrega de Jesus: vivemos amparados pelos mãos providentes e cuidadosas do Pai; sentir-nos movidos a prolongar as mãos do Pai.

Estas palavras, proferidas por Jesus no alto da Cruz, causam um profundo impacto em nosso coração.
Tal impacto nos faz ter os olhos fixos no Crucificado; a partir do Crucificado ativar um olhar comprometido com os crucificados da história. Só podemos crer no Crucificado se estivermos dispostos a tirar da Cruz aqueles que estão dependurados nela (Jon Sobrino).
Após a oração universal faremos a chamada “adoração da Cruz”; não se pode contemplar a Cruz isolada daquilo que nela aconteceu. A Cruz nela mesma não tem sentido.
O que vemos ao contemplar o Crucificado?
A Cruz é expressão da máxima compaixão e comunhão, com Jesus e com os sofredores. Ela aponta para Aquele que foi fiel ao Pai e ao Reino. Por isso, a Cruz não é um “peso morto”.

A partir da Cruz de Jesus, iluminamos e damos sentido às nossas cruzes.


Que a experiência da Semana Santa seja um momento privilegiado para expandir a vida interior e fazer a travessia pascal, no encontro com Aquele que, pela força do Espírito do Pai, venceu toda
expressão de morte e abriu um novo tempo e uma Nova Criação na história. Uma Santa Páscoa a todos.

Quinta-feira Santa - MESA: lugar da solidariedade e do encontro

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Celebração da Ceia do Senhor, na Quinta-feira da Semana Santa.
Que a experiência da Semana Santa seja um momento privilegiado para expandir a vida interior e fazer a travessia pascal, no encontro com Aquele que, pela força do Espírito do Pai, venceu toda
expressão de morte e abriu um novo tempo e uma Nova Criação na história. Uma Santa Páscoa a todos.

“Estavam tomando a ceia” (Jo 13,2)

Essa foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Para Ele, a mesa era para ser compartilhada com todos; a partilha do pão com publicanos e pecadores fazia parte das práticas transgressoras de Jesus.
Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a separação...
Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos. Ele não só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande mesa para a festa, o encontro, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.
Da “mesa eucarística” à “mesa cotidiana”: este é o movimento de vida, inspirado por Jesus.

A pedagogia de Jesus incluiu a “espiritualidade da mesa”. Ele, antes de fundar uma igreja, fundou a “co-mensalidade”. Ao reunir os seus discípulos para o encontro junto à mesa, Ele revelou o verdadeiro simbolismo deste simples móvel: a lição fundamental da comunhão, como fonte inesgotável de vida. A comunhão que faz sonhar com a mesa eterna no Reino e desafia seus comensais a viver encontros solidários, como hábito e dinâmica que preserva e promove a vida. Do encontro junto à mesa ao encontro com os mais excluídos: este deve ser o movimento inspirador de todo(a) seguidor(a) de Jesus.
A espiritualidade da mesa não pode ser apreendida e mercantilizada por ninguém, pois ela é puro dom da refeição – onde dois ou mais estiverem reunidos por causa do alimento-mesa-ser humano, um novo mundo poderá ser descortinado, revelado. A benção à mesa instaura o horizonte da partilha, em que os alimentos são destinados à necessidade de todos por meio da co-responsabilidade dos participantes, fazendo memória do banquete da Criação, sobre cuja mesa Deus preparou pão e vinho em abundância para todos.
A comunhão bíblica se realiza entre os “distantes e os diferentes”, por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem... “Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles”. (Atos. 4,32).

Preparar a mesa e fazer a refeição é todo um ritual. Comer é mais do que ingerir alimentos, é entrar em comunhão com as energias que sustentam o universo e, por meio dos alimentos, garantem nossa vida.
Por isso, a mesa, a ceia e o banquete são cercados por uma rica simbologia. O próprio Reino de Deus, a utopia de Jesus, é apresentado como uma ceia ou um banquete na casa do Pai (Lc 14,15-24; Mt 21,1-10).
Quando o Criador tirou do húmus o homem e a mulher, Ele pôs, com seu hálito, no coração deles, o desejo do encontro de um com o outro. Esse desejo foi crescendo e configurando-se sob formas sociais diversas, segundo cada cultura e crença.
Surgiram refeições comuns, mesas de comensais, mesas festivas.... Para esse centro converge o ser humano em busca do alimento, renovar suas energias, tomar novo impulso... descobrir-se humano.
É junto à mesa que se dá o processo de humanização e comunhão; a partir desse ato sagrado, podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).

A mesa é um sinal de encontro e comunhão; ao mesmo tempo que sinaliza, ela realiza aquilo que sinaliza, ou seja, a inter-comum-união. A missão da mesa é criar comunhão intra-pessoal (eu comigo mesmo), inter-pessoal (eu-outro) e trans-pessoal (eu-Deus).
Ela não é agente passivo, mas construtora de novas possibilidades de vida. Aliás, ela existe enquanto lugar de refeição por causa do ser humano que a modelou.
A refeição em torno da mesa representa um ato comunitário e reforça nos participantes os laços de humanidade, de compaixão, de mútua confiança e de comunhão. Por toda esta carga de simbolismos, a mesa não pode ser posta de qualquer maneira; a sala que ostenta a mesa deve ser um local aconchegante e íntimo, para realizar o milagre do encontro. Ela passa a ser um “altar” que deve ser preparado e ornado com carinho, para ser digno de realizar a sua missão sagrada, pois sagrados são aqueles que dele se aproximam, se apoiam e se reclinam sobre seus dons.




Sentar-se à mesa com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, latente, carente.
Mas é também descobrir um outro tipo de alimento, que só pode ser colhido na delicadeza da inter-relação, no encontro gratuito com o outro.
Nela e com ela aprendemos a acolher o outro como dom. Aprendemos a nos doar, a partilhar, a receber, a escutar e a falar, a contemplar o outro em sua singularidade. A mesa é também o lugar onde acolhemos as alegrias e as tristezas do outro, com quem partilhamos nossa refeição. A mesa-refeição, portanto, é o lugar do suporte das relações, espaço que garante o sustento, que alimenta o corpo, o emocional, o psíquico, o espiritual e o social. Esse lugar humano é revelador de cultura, do inconsciente individual e coletivo.
Lugar fecundo, onde o imprevisível pode acontecer.

A mesa da refeição se torna lugar de humanização do ser humano. Espaço de verdadeira reserva de humanidade. Muitos são aqueles que sabem abrir as mãos, partir o pão, saciar a fome do irmão.
É nesse universo de mesa-refeição que o ser humano vai se auto-construindo, auto-definindo como ser que é humano, mas também divino. Diviniza-se humanizando, humaniza-se divinizando.
O simples gesto de passar ao outro o que ele precisa é um gesto despojado de poder, de segundas intenções. Quando alguém passa um prato ou um pedaço de pão ao companheiro, está passando mais do que isso: consome em comum a mesma sorte. “Servir” é o nome do gesto fundamental de estar à mesa. Há necessidades atendidas, o cuidado amoroso perpassa as relações; busca-se o necessário revigoramento físico para a continuidade do caminho, e esforço no trabalho, a preservação da saúde...
O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, de opções. A lição da misericórdia é a única que ganha validade e sentido.
A espiritualidade da mesa exala gratidão aos que dela se aventuram em assentar-se. Com isso ela nos interpela a vivermos uma espiritualidade do encontro e do serviço de uns para com os outros. Esta é a prova da autenticidade do verdadeiro seguimento de Jesus. Este é o sentido verdadeiro de toda Eucaristia.
A mesa eucarística se prolonga e se visibiliza na mesa-família.


Texto bíblicoJo 13,1-15   

Na oração:
Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro
em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.

- Rever o sentido e o lugar da mesa-refeição no seu ambiente familiar: é lugar facilitador de partilha e convi-vência?  

domingo, 25 de março de 2018

RAMOS: des-cobrir o Deus en-coberto nas cidades

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do Domingo de Ramos da Paixão do Senhor da Quaresma.

... quando se aproximaram de Jerusalém” (Mc 11,1)

A experiência espiritual da Quaresma implica a travessia do deserto: tempo de despojamento, de pobreza, de confiança em Deus, de esperança e horizontes abertos... O deserto quaresmal desemboca na cidade.
E todos sabemos que a cidade é o contrário do deserto: autossuficiência, segurança, limitação de horizontes, acomodação, conflitos... Cidade moderna, globalizada pela tecnologia fria e sem alma, amordaçada pela funcionalidade e pela utilidade, com uma política submetida ao mercado, à produção e consumo, cidade estendida e sem muros de contorno, mas com horizonte atrofiado, aparentemente sem Reino de Deus à vista...
Hoje temos esvaziado a dimensão do deserto em nossas vidas e nos adaptamos de tal maneira à cidade e às suas exigências técnicas, produtivas, aos seus programas e solicitações... que acabamos nos sentindo passivos diante dela.
O tempo quaresmal nos possibilita manter aberto o acesso ao deserto, que cria um espaço interior vazio, onde se faz realidade um encontro surpreendente com Deus; a partir daí, mesmo em nossa atribulada vida na cidade, podemos recuperar a liberdade do chamado profundo e redescobrir o caminho do Seguimento de Jesus, que começa e termina nos “aforas” da cidade.

Jesus entrou na cidade de Jerusalém com seus(suas) seguidores(as) e não foi uma decisão fácil porque implicava o alto risco de ser incompreendido e rejeitado.
Como bom judeu, Jesus subiu a Jerusalém, cidade de Davi (do Messias) em nome dos pobres, com um grupo de galileus, para anunciar e preparar o Reino. Subiu na Páscoa, porque era o momento propício (hora do Reino), tempo para que os homens e as mulheres pudessem se encontrar a se comunicar, em gesto de paz, a partir dos mais pobres. Subiu a Jerusalém porque estava convencido de que sua mensagem era de Deus e porque Deus lhe havia confiado a missão de instaurar, com sua palavra e com sua vida, o novo Reino dos pobres, que já havia começado na Galileia e que devia estender-se, desde Jerusalém, passando de novo por Galileia, para todos os homens e mulheres da terra.
Jesus tinha a certeza de que Deus falaria através do que fizessem (ou não fizessem) com Ele em Jerusalém, pois esta era a última oportunidade para a cidade da promessa e do templo.
Entrou na cidade santa para que finalmente ela se transformasse na “cidade de Deus”, o lugar de encontro do ser humano com Deus, de Deus com todos os seres humanos, e estes como irmãos.
E pela primeira vez Jesus se deixa aclamar: “Hosana ao filho de Davi”. Desta vez não recusou o papel de liderança, mas deu um outro sentido, porque não se valeu disso para conquistar o poder e sim para desmascará-lo. Não fez pactos militares ou políticos, porque Deus não atua por meio do poder, mas de um modo gratuito. Dessa forma entrou na cidade de Jerusalém, desarmado e cheio de esperança, renunciando todo poder sobre ela, todo domínio, toda força, sem espadas, sem exército... Não entrou montado a cavalo como os grandes, mas num jumentinho; não entrou rodeado das grandes autoridades religiosas e políticas  pois Jesus se sentia muito melhor acompanhado das pessoas simples do povo;  não usou traje de gala, mas as vestes rudes de um peregrino; não lhe fizeram nenhum arco de flores pois a Ele lhe bastavam os mantos do povo e os ramos cortados das árvores; entrou provocativamente como mensageiro da concórdia e da paz em meio a aplausos e hosanas do povo peregrino que veio à festa.
Jerusalém inteira fica alvoroçada. Os donos do poder, político e religioso, sentem-se ameaçados.

Não devemos perder o deserto que carregamos dentro de nós; por isso, só podemos “entrar na cidade” seguindo a Jesus Cristo que é fiel à causa do Reino, com o risco da Cruz (Semana Santa), porque a Cruz assume, radicaliza e eleva o deserto. Jesus vai morrer nos “aforas” da cidade, nesse limite fronteiriço entre o deserto e Jerusalém, nesse espaço que só Deus pode preencher e onde podemos enraizar nossa confiança n’Ele. A Cruz se eleva e abraça ambas realidades.
O(a) seguidor(a) de Jesus é um(a) apaixonado(a) do deserto e que nunca se “encaixa” nas estruturas da cidade; sua presença sempre rompe com as muralhas, alargando espaços e acolhendo o diferente.
Se carregamos o deserto dentro de nós, estaremos vazios de nós mesmos, de nosso ego, de nossas visões fechadas, de nosso monopólio da verdade. Só assim nossa presença na cidade vai se revelar inspiradora e provocativa, como a presença de Jesus em Jerusalém.

Embora muitas realidades urbanas nos queiram impedir o encontro com Deus, devemos reconhecer na cidade a presença d’Ele, muitas vezes de um modo imperceptível, como o sol está presente nos dias nubla-
dos. Deus está sempre presente na histórica e na cultura de nosso tempo. Ele continuamente vem ao nosso encontro. O cristianismo é a religião do Deus com rosto humano e urbano que nos busca apaixonadamente em Cristo. Por isso, não é necessário que levemos Deus para a cidade; Ele já está ali presente, em meio às alegrias e dores, esperanças e sofrimentos nela.
A presença de Deus não é percebida à plena luz do dia; uma pessoa pode viver na cidade e perfeitamente ignorar, negar, desmentir ou simplesmente desconhecer a presença divina nela.
É preciso buscar a Deus, “descobrir Deus na cidade”, como se estivesse encoberto, oculto, escondido no espaço urbano. Uma aguda sensibilidade religiosa capta a presença de Deus também nos sinais de sua ausência. O “Deus escondido” se apresenta onde é marginalizado. Deus acompanha a todos em seu aparente ocultamento; pronuncia sua voz em seu silêncio; revela sua onipotência em seu despojamento; mostra sua máxima bondade em sua mínima expressão, do presépio à Cruz.

Este é um dos grandes desafios na grande cidade. Romper com o individualismo e o poder que marcam as relações entre os homens e as mulheres, para criar um marco novo, humanizador e aberto a Deus Pai, através de pequenas comunidades. Comunidades daqueles que confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas – as mesmas esperanças, os mesmos sonhos, a mesma utopia do Reino.
É, sobretudo, em torno da mesa que as comunidades se constituem; com o gesto do “re-partir”, estabelece-se uma rede de relações entre as pessoas que aceitam conspirar, co-inspirar, em torno do fascínio da proposta de Jesus. Na verdade, a Eucaristia vivida é o sal, o fermento, a luz e a alma da cidade.
Assim é a cidade que Deus deseja: uma praça de encontro e uma mesa celebrativa para todos.


Texto bíblicoMc 11,1-10

Na oração:
As cidades não são pessoas, mas tem sua identidade e personalidade próprias; algumas tem múltiplas personalidades. Elas existem no espaço e no tempo.
Há cidades acolhedoras, que dão as boas-vindas, que parecem se preocupar com cada habitante, alegram-se com o fato de que os moradores ali se sintam bem; são cidades humanizadoras...
Há cidades indiferentes, aquelas que dá no mesmo que as pessoas estejam ou não nelas; cidades que seguem seu rumo, que ignoram seus habitantes...
Há cidades que são más, violentas, que parecem perdidas, que dão a sensação de que seriam mais felizes em outro lugar... Algumas grandes cidades se propagam como um câncer que devoram tudo em sua passagem, absorvem cidades pequenas e povoados, destroem culturas e hábitos de vida, esvaziam regiões que em outros tempos eram prósperas... Cidades desumanizadoras.
Mas somos nós que damos uma feição às cidades; cada cidade revela o rosto e o coração de seus moradores... Como é sua cidade? É espaço de encontro, de comunhão, de qualidade de vida?

Diante dos dramas de sua cidade (violência, exclusão, divisão...), qual a sua reação? acomodação, alienação? Indiferença? Ou, compromisso? Envolvimento em projetos humanizadores? Presença inspiradora e facilitadora de encontros?...

domingo, 18 de março de 2018

A Lógica Inexplicável do Amor: “é morrendo que se vive...”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 5º Domingo do Tempo da Quaresma - Ano B.

 “Se o grão de trigo morre, então produz muito fruto” (Jo 12,24)

Caminhamos para o final da Quaresma, e o evangelho deste domingo nos situa diante de uma experiência radical de morte por amor, como o grão de trigo. Esta é uma experiência universal: só o trigo que “entrega” sua vida é fecundo: multiplica-se em sementes na espiga, transforma-se em alimento (pão compartilhado), alimenta vidas.
Estamos no cap. 12 de S. João; depois da unção em Betânia e da entrada triunfal em Jerusalém, e como resposta aos gregos que queriam vê-lo, João põe na boca de Jesus um pequeno discurso sobre a Vida. Vida maiúscula que só pode ser alcançada quando se entrega em favor de tantas vidas feridas e excluídas.
O evangelho deste domingo nos situa diante da lógica inexplicável do Amor: “perder” a vida por amor é a certeza de “ganhá-la”; morrer a si mesmo é a verdadeira maneira de viver, entregar a vida é a melhor forma de recebê-la...
Perder-ganhar, morrer-viver, entregar-reter, doar-receber..., parecem dimensões ou realidades contraditórias, mas captar a profundidade da verdade contida nesta “contradição aparente” é descobrir o Evangelho.

A vida  é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, ela ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude.
Ela é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que impede o germinar dessa vida, embora ela esteja presente dentro de cada um de nós. Amar é romper a casca para que a vida se expanda na doação. A morte do falso eu é a condição para que a vida se liberte.
Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida dos outros.

Por si mesma, toda vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente do trigo há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.
A condição da fecundidade é saber morrer a muitas coisas: auto-centramento, busca de poder, vaidade...
E esse processo de mortes de tudo aquilo que limita, que atrofia e isola..., não é o fim da vida, mas sua plenitude; esse caminho permanente de esvaziamento do ego, para viver a entrega aos outros, não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação; pois a vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão... Desperdiçar a vida é travar a existência; é trágico que alguém viva na superficialidade sem ter acesso à sua riqueza interior. Quem conhece o valor da vida não se limita a viver de maneira “normótica” (normalidade doentia)
Precisamos abandonar nossas medidas de segurança, ser liberados do domínio cego do ego, para que possa emergir e brilhar o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. “Não é o centrar-se em si mesmo que confere dignidade à existência, mas o des-centrar-se, o reestruturá-la em favor dos outros” (L. Boff). “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20).
O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”. A vida aumenta quando compartilha e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade.
De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança do conhecido e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.
O Evangelho de hoje nos ajuda a descobrir que a preocupação doentia para com a própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade da vida à medida que ela é entregue para possibilitar vida a outros.

“Morre e transforma-te” (Goethe) Somos seres que passamos por contínuas transformações.
Tudo muda. Muda o nosso coração, nossa mente se abre ao novo, nossos sentidos se expandem, nossos encontros com os outros revelam-se criativos e inspirados... Reagimos como aquelas pessoas que tiveram uma experiência limite da morte (por enfermidade, acidente ou por ter superado uma morte certa); elas experimentam uma mudança radical em suas vidas. Sua atitude diante da vida é totalmente diferente; vêem-na com olhos novos:
captam muitos detalhes que antes escapavam de sua atenção, vivem intensamente, amam com mais paixão, prestam atenção a muitas coisas que lhes passavam desapercebidas; tem um comportamento diferente para com os outros; há, nestas pessoas, mais ternura, são mais sensíveis à dor e à injustiça.
Ao apreciar o presente da vida, vivem como se fossem ressuscitadas; crêem que, amando mais a vida, se afastarão mais da morte e resistirão às hostilidades do mundo presente.
E, no entanto, continuam vivendo na mesma casa, fazendo as mesmas coisas..., mas, com outra sensibilidade, com mais criatividade e doação.

Para quem se deixa afetar profundamente pela experiência quaresmal, é impossível não ser movido(a) a viver bem a vida, a valorizá-la e a coloca-la a serviço. O convite de Jesus é para “perder” nossa vida, não afeiçoarmos egoicamente a ela e abrir-nos para receber uma Vida maior, nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, deixar de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa autoafirmação... para que Deus possa entrar e atuar em nós.
Aquele que “quer salvar sua vida”, ou seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença diferente..., esse “perderá sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente, economicamente, socialmente...!
Mas aquele que por amor ao Reino se desinstala, acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua a dor do outro... esse “ganhará a vida”. Sua vida se transformará em Vida. Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de sua vida uma doação, um oferecimento. Assim deixam passar por eles(elas) o que é Deus, puro Dom de Si, Amor que não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presença compassiva e, à maneira de Jesus, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem brilho algum, sem vozes que a proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolveram na massa para fazê-la crescer.


Texto bíblico: Jo. 12,20-33

Na oração:
Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”

sexta-feira, 9 de março de 2018

Deus Marca Encontro com a Humanidade

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo do Tempo da Quaresma - Ano B.

“Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito...” (Jo 3,16)

O evangelho indicado para este 4º. dom. da Quaresma nos faz retomar o verdadeiro sentido do Mistério da Encarnação. Pode parecer estranho, uma vez que a liturgia quaresmal nos motiva e nos prepara para viver os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Mas os “mistérios” da vida de Jesus não estão separados: trata-se de um só e único “Mistério”, qual seja, do “Deus que se humaniza” para redimir a humanidade perdida.
O que aconteceu no mistério da Encarnação é algo surpreendente e cheio de novidade.
Não só Deus ama radicalmente a sua criatura, senão que se “abaixou” e se fez um de nós em Jesus: a carne é digna de Deus, o mundo é digno de Deus, a Encarnação é a expressão mais profunda de que somos de Deus. Com isso, rompe-se o medo do corpo, o medo do humano, o medo do diferente, o medo do mundo, o medo de sentir e experimentar a condição humana, com sua grandeza e fragilidade.
Ao se revelar Manancial e Fonte de nossa humanidade, não é mais possível crer que o Criador seja nosso rival, mas amigo; não é possível mais aceitar que Ele seja insensível, mas providente; que seja nossa ameaça, mas alívio; que seja nossa diminuição, mas plenitude; Ele não é o “juiz distante” mas o “Deus encontro”, fonte de nossa liberdade...

O relato do Evangelho de hoje nos revela a atitude de Deus no seu encontro com o mundo, marcado por uma atitude amorosa.
Em Jesus Cristo, nos fazemos conscientes da relação que há entre todos os seres humanos e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou próximo um Deus cuja essência é encontro (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude e a transformação humana consiste “entrar no fluxo do encontro intra-trinitário”, fazendo-nos encontro e re-construindo as relações rompidas.
Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a um novo encontro com tudo o que existe; tal encontro é o prolongamento do encontro trinitário e concretização do sonho do Reino de Deus.

Inspirados no evangelho deste domingo, contemplemos, com o olhar do Deus Amor, nosso mundo fragmentado, vendo as diversidades em conflito que geram o sofrimento, a exclusão, a morte...
Entrar no fluxo do “amor compassivo e descendente de Deus” ativa também em nós uma maneira cristificada de ser e de estar no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. O “amor descendente” nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos “contemplativos nos encontros”.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os irmãos e irmãs no mundo, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.
O Tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa.
Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é.  É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar gratuito e desinteressado, que nos abre a uma atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.
O (a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como ameaça ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do encontro inspirador.

Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens.

A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.

Encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar outros relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar a partir de um horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e deixar-nos impactar pelos valores presentes no outro. Escutar de tal maneira que o que ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos e diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração.
O encontro com o diferente possibilita também o encontro consigo mesmo, ou seja, encontrar a própria verdade. Isso implica em se perguntar pela própria identidade, por aquilo que dá sentido à própria vida, o impulso por viver de uma maneira cristificada, conforme os valores do Reino.
Para que haja verdadeiro encontro com o outro, o deslocamento ex-põe quem se desloca, deixa-o vulnerável e “contaminado” pela realidade que encontrou. Quando alguém se desloca e se aproxima de realidades diferentes, é para encontrar, encontrar-se e encontrar Aquele que veio iluminar todo encontro.

Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para encontrar-nos com Ele e trabalhar juntos por seu Reino. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como ami-gos(as) de Jesus que passam, observam, curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os es-forços humanos. Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, simplicidade, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala do novo rosto do Deus que buscamos com desvelo. E amando e investigando tudo o que é do mundo, adoramos o Deus que habita em tudo.

Texto bíblico:  Jo 3,14-21   



Na oração:
“Pai de bondade, para descobrir tua proposta original, ensina-nos a contemplar o mundo inteiro com o teu próprio olhar, respeitoso e fiel à nossa realidade”. (Benjamin Buelta)

- Evangelizar nossos sentidos, muitas vezes atrofiados e limitados, para que eles sejam mediação cristificada e assim viver encontros verdadeiramente humanizadores.