terça-feira, 25 de maio de 2021

Trindade: uma dança de Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Santíssima Trindade.

“...batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)

 

 “Não há dois sem três”, diz a sabedoria popular; toda a realidade humana tem um componente trinitário. Do amor de um homem e uma mulher brota um terceiro ser humano, o filho. Da união de dois ângulos surge o triângulo. Do negócio de dois empreendedores nasce uma expressa. Da relação entre o artista e a matéria (palavra, cor, som, barro ou mármore) aparece a obra de arte. A “trindade visível” e cotidiana é parte da estrutura da vida.

Mas, e a “Trindade invisível”? Falamos do “mistério da Santíssima Trindade”. Ninguém viu e ninguém sabe como é Deus. Ele não cabe em nossa cabeça, em nossos conceitos; por isso dizemos que é um “mistério”.

A Trindade é Mistério para nós na medida em que nunca conseguiremos compreendê-lo e apreendê-lo pela razão. É o desconhecido que nos fascina e nos atrai para conhecê-lo mais e mais, e, ao mesmo tempo, desperta o assombro e a reverência. A Trindade é o mistério que liga e religa tudo, que deixa transbordar seu Amor criativo no coração de toda a humanidade e no universo inteiro.

O Mistério da Trindade sempre está aí (vivemos submergidos n’Ele), permanentemente nos esbarramos n’Ele (dentro de nós e na realidade) e buscamos conhecê-lo; mas ao tentar conhecê-lo percebemos que nossa sede e fome de conhecer nunca se sacia. Por isso, diante da presença do Mistério Trinitário, afogam-se as palavras, desfalecem as imagens e morrem as referências. Só nos restam o silêncio, a adoração e a contemplação. “O ser humano que não tem os olhos abertos ao Mistério passará pela vida sem nunca ver nada” (Einsten)

Quê diz o Evangelho a respeito da Trindade? De maneira muito simples nos revela que o Pai amou tanto o mundo que enviou seu Filho para que, através do amor, pelo envio do Espírito, nós alcançássemos a vida em plenitude; esta consiste em deixar transparecer em nossas relações o mesmo Amor trinitário, expansivo, aberto, acolhedor e integrador de tudo e de todos; só esse Amor é força capaz de nos transformar e, desta maneira, transformar o nosso mundo.

S. Paulo expressa essa realidade na saudação presente no início de toda celebração eucarística: “a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam sempre convosco (2Cor. 13,13).

A Trindade é, antes de tudo, amor recíproco entre as três Pessoas. Os antigos padres da Igreja entendiam o mistério da Trindade não de uma forma estática como nós, cristãos ocidentais, mas de uma forma ativa, como uma dança. E eles fizeram uso de um termo inspirador para descrever esta Dança Trinitária: “perichoresis”. A principal característica é a reciprocidade no dançar: um dança ao redor do outro, o outro dança ao redor do primeiro, em um constante e recíproco circundar-se. A imagem da dança expressa bem a contínua interação recíproca que caracteriza o dinamismo intra-trinitário.

O termo “perichoresis” foi fixado pela primeira vez na igreja antiga pelos Padres Capadócios (Basílio, Gregória de Nissa e Gregório Nazianzeno). Trata-se de um termo grego construído com duas palavras: uma é “peri” (ao redor) e outra “chôreô” (dançar) e significa “intercambiar lugares”, “dançar em torno”. Isso significa que Deus não é só “diá-logo” (comunicação verbal, palavra compartilhada), mas comunhão e comunicação total: cada pessoa existe somente na medida em que “dança” (avança) para a outra, ocupando seu lugar e habitando nela.

“Pericorese” descreve as inter-relações das pessoas da Trindade. Em tudo o que a Trindade é e faz, cada uma das Pessoas se relaciona e se envolve com cada uma das outras Pessoas divinas. Como uma dança eterna, a “coreografia” do nosso Deus é singular em sua diversidade e em sua unidade. É a dança do Deus-Amor. Em outras palavras, a Trindade é uma dança divina de três pessoas que se amam umas às outras e se acolhem de maneira tão plena que cada uma delas se torna “uma” com as outras.

Portanto, o mais profundo da reflexão teológica sobre o mistério da Trindade é a experiência de uma dança, imagem confirmada pelos grandes teólogos e místicos cristãos, os dançantes de Deus. Para eles, uma bela maneira de entender a salvação é sermos convidados a entrar nessa dança, no belo movimento coreográfico da grande Dança da Vida. A participação na dança divina da Trindade é o coração da vida cristã.

Dançamos juntos enquanto deixamos Deus nos tomar pela mão, nos conduzir pelo seu Espírito para ir ao encontro do seu Filho. A grande dignidade do ser humano está aqui: estamos no centro do “círculo dançante de Deus”. Fazemos parte da “dança” do Deus Trindade.

Deus dança e existe dançando, em movimento de amor que é princípio de todas as coisas.

Imagem pro-vocativa: “pericorese” não revela só uma dança entre as três pessoas divinas. A Trindade “dança” na Criação, gerando um grande movimento de vida; em outras palavras, a Criação é o grande palco da dança das Pessoas divinas. Mais ainda, nosso interior também é cenário onde a Trindade dança, ativando e mobilizando nossas energias e forças mais criativas e que se manifestam como amor e cuidado na relação com os outros e com todas as criaturas. Amar é entrar no ritmo da dança trinitária.

Segundo isso, a “pericorese” é uma forma de entender o convite que Deus oferece à humanidade, para que os homens e mulheres entrem na dança do Amor íntimo da Trindade, dirigindo-se uns aos outros em amor, de maneira que todos se despertem para esta interconexão fundamental de uns com os outros.

Certamente, Deus nos convida continuamente a participar nesta dança divina; mas, muitas vezes, não sabemos se queremos ou não queremos “aceitar a mão” de Deus para dançar com Ele.

A dança é um símbolo instigante para falar de Deus, um símbolo também usado de maneiras diferentes em outras tradições religiosas; nelas existe uma maneira de expressar a como convite para “dançar com Deus”.

As comunidades judaicas festejam o Dia do Perdão, o Ano Novo, a Festa das Tendas e a Festa da Alegria da Lei. Nesse dia, em Israel, os rabinos saem pelas ruas, tendo nas mãos os pergaminhos sagrados e dançando com fervor. Toda a comunidade canta, bate palmas e dança em roda, até experimentar a união íntima com Deus.

Também os muçulmanos têm movimentos que buscam a comunhão com Alá através da dança.

As comunidades do candomblé, em cada festa, dançam sem parar.

Uma das imagens que também podem nos ajudar é a visão que teve S. Inácio de Loyola (estamos celebrando o Ano Inaciano) que era muito devoto da Trindade. Ele viu como três teclas de um piano. Três teclas distintas que, tocadas ao mesmo tempo, produzem um só acorde.

Este “som” é o que nos interessa para viver: o Amor. Se Deus é Deus, Ele “abraça e abrasa” tudo, também a dimensão comunitária. Quando somos solidários, compassivos, amorosos... revela-se o rosto da Trindade. “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”

Texto bíblico: Mt 28,16-20

Na oração: No interior de cada um, a Trindade está atuando, está convidando a que ponha em movimento toda a capacidade de admiração e quer ensinar a ler e interpretar Sua presença em todas as coisas.

- Como você deixa transparecer no seu cotidiano o amor fontal da Trindade?

José, o Santo do cotidiano inspirador

Texto 6 da série elaborada pelo pe. Adroaldo Palaoro, sj sobre a vida e missão de São José que poderá ser usada como subsídio para melhor viver o ano de São José (2021) decretado pelo Papa Francisco na Carta Apostólica "Patris Corde".

“Todos podem encontrar em São José – o homem que passa despercebido, o homem da presença quotidiana discreta e escondida – um intercessor, um amparo e uma guia nos momentos de dificuldade. São José lembra-nos que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação. A todos eles, dirijo uma palavra de reconhecimento e gratidão” (Papa Francisco – Patris Corde)

 

Quando falamos da figura de São José, muitas vezes nos limitamos a afirmar que temos pouquíssimo dados sobre ele nos evangelhos. Mas, sob outra perspectiva, podemos afirmar que temos muitíssimos dados sobre José, todos revelados pelo seu próprio filho, Jesus de Nazaré. Na realidade, quem modelou a natureza humana de Jesus, foi José, da casa de Davi.

Na verdade, lendo o Evangelho como um todo podemos encontrar, com facilidade, uma descrição muito aproximada de quem era José. Quem, senão José, poderia ensinar a Jesus tudo o que conhecia sobre o campo, as colheitas, o tempo, as aves e o mundo que os rodeava? Quem, senão José, poderia ensinar Jesus a tratar as pessoas, a servir o seu próximo, a olhar, a falar, a sorrir...?

Em cada gesto de Jesus, revelava-se um ensinamento do Pai e de seu pai José; em cada parábola havia uma expressão da natureza e da terra com o selo de José, e uma mensagem espiritual inspirada a partir do alto. Em cada cura que Jesus realizava havia um modo e uma sensibilidade de tratar o enfermo, o desvalido, herdados da tradição mantida por José; e à hora de orar havia um hábito criado na casa de seu pai, fiel cumpridor da lei mosaica e aberto à novidade e ao mistério que seu filho Jesus deixava transparecer.

Podemos dizer que o aparente vazio da paternidade legal de José revela, na verdade, plenitude e grandeza.

Foi na escola cotidiana da família de Nazaré, que Jesus foi se humanizando: “Ele crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52)

Nazaré é, em certo sentido, a apologética do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida tranquila, provinciana, não-escrita, de uma família simples e iluminada.

Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galileia, à mensagem que Deus esconde nos corações das pessoas, nas coisas, nas horas…, é uma constante na vida e na família de José. Nazaré é o sinal da epifania de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em todas as casas.

Custa-nos muito descobrir a “espiritualidade da vida cotidiana”, a vida de cada dia nos parece sem sentido, sem muito destaque e sem muitos fatos extraordinários; temos ainda muito que aprender da vida cotidiana do artesão de Nazaré.

Precisamente a vida cotidiana é o lugar privilegiado para descobrir Deus (“por onde passa meu Senhor?”), sentir o sabor da Sua presença que permanece. Os lugares cotidianos são “lugares sagrados” de encontro com o Senhor da Vida.

Encontrar a Deus no cotidiano significa que é preciso viver em um contexto vital no qual cada um se sinta estimulado a tomar decisões, a assumir responsabilidades, grandes e pequenas, a cuidar pessoalmente dos processos concretos da vida de cada dia.

É vital descobrir se nossa vida cotidiana é egocêntrica ou excêntrica, se tem a marca da “cultura do encontro” ou da “cultura da indiferença”, se a missão de nossa vida nos projeta para o compromisso com o outro, se temos paixão pelo Evangelho encarnado nos ambientes onde nos fazemos presentes cotidianamente.

O ritmo da sociedade atual e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, ao consumismo, pede de nós recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida cotidiana.

Estamos mergulhados numa cultura onde, normalmente, o cotidiano é rotineiro, convencional, repetitivo, e, não raro, carregado de desencanto. Fechado em si mesmo o cotidiano torna-se pesado, desinteressado e frustrado. Geralmente não nos damos conta de que estamos envolvidos pelo cotidiano.

Na maioria das vezes, o cotidiano resume-se num fazer tão “normal” que, por causa dele, fazemos coisas que não faríamos se pudéssemos tomar distância e refletir a respeito do que estamos fazendo. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação... e vamos perdendo, pouco a pouco, a história pessoal e comunitária.

A existência inteira faz-se maquinal e rotineira: é a soma das horas, dos dias, dos anos...

Na vida cotidiana, as pessoas correm o risco de serem apenas imitadoras ou repetidoras, pois temem se perderem na busca do novo; as respostas são confirmadas, mesmo que estas estejam velhas e desfocadas e as perguntas são silenciadas. A maioria das pessoas vive restrita ao cotidiano com o anonimato que ele envolve.

No entanto, as grandes histórias são tecidas na trama do cotidiano; os “tempos” de Deus não são os da eficácia, da produção, do ritmo estressante... Também são os tempos do silêncio, da rotina inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo crescimento pessoal demanda previamente tempo, ritmo, reconhecimento e aceitação da própria verdade, sólidos fundamentos sobre os quais podemos construir nossa pessoa.

É a “mística” que nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos, descobriremos que o cotidiano guarda segredos, novidades, energias ocultas, forças criativas... que sempre podem sempre conferir novo sentido e brilho à vida. O Reino também se revela no pequeno, no anônimo, no despojamento.

É o cotidiano que nos prepara para as grandes decisões. É a fidelidade ao cotidiano que possibilita a transformação da realidade; é o cotidiano que abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda, nos alargue e nos impulsione em direção a uma nova vida.

A realidade cotidiana da nossa Nazaré é o lugar onde somos chamados a viver a espiritualidade cristã e a deixar-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou a família de Nazaré e a levou a inserir-se na trama humana e a assumir o risco da história. Inspirados na pessoa de São José, inseridos no mundo, em meio às agitações cotidianas, somos chamados a prolongar em nós os atributos josefinos: escuta, silêncio, trabalho, cuidado, acolhida, sensibilidade, bondade, vivência da fé, paternidade, sintonia com o Deus Providente...

A espiritualidade cristã é a espiritualidade do cotidiano, que conserva sua força transformadora, que é capaz de despertar o espanto e a admiração, apontando sempre para um horizonte mais amplo e mais rico;

é a espiritualidade que reacende desejos e sonhos novos, que suscita energias em direção ao mais; é a espiritualidade que faz descobrir, escondida no cotidiano, uma Presença absoluta que nos envolve; é a espiritualidade que faz saborear o eterno e o Absoluto no ritmo doméstico e cotidiano da vida...; é a espiritualidade que projeta a vida a cada instante.

Textos bíblicos: Lc 2,41-52; Ex 3,1-10; Lc 10,38-42

Na oração:

A vida cotidiana exige não apenas fidelidade, mas também amor, gratuidade. É o lugar que inspira a viver encontros com a marca da surpresa, da acolhida do diferente, do respeito ao outro...

- Como é o seu cotidiano? rotina e repetição ou desafio e criação? Espaço de encontros inspiradores ou alimentador da indiferença? Nele há lugar para a esperança e o novo?

- Suas atividades diárias formam parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um  “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?


José de Nazaré, o homem de ternura e do cuidado amoroso

Texto 5 da série elaborada pelo pe. Adroaldo Palaoro, sj sobre a vida e missão de São José que poderá ser usada como subsídio para melhor viver o ano de São José (2021) decretado pelo Papa Francisco na Carta Apostólica "Patris Corde".

“Jesus viu a ternura de Deus em José: «Como um pai se compadece dos filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem» (Sal 103, 13).Com certeza, José terá ouvido ressoar na sinagoga, durante a oração dos Salmos, que o Deus de Israel é um Deus de ternura, que é bom para com todos e «a sua ternura repassa todas as suas obras» (Sal 145, 9)” (Papa Franciscon – Patris Corde)

 

Com a carta apostólica “Patris Corde” (com coração de pai), o Papa Francisco lança uma nova luz sobre São José, revelando-o inspirador de muitas pessoas que, trabalhando no silêncio, longe dos focos e câmeras, estão escrevendo os acontecimentos decisivos da história. Como S. José, o Papa define estas pessoas como aparentemente ocultas ou na “segunda fila” no cenário da história, mas são presenças que fazem a diferença, pois assumem a fragilidade dos outros, curando as feridas existenciais, com atitudes acolhedores sobre as pessoas, deixando transparecer em seu olhar a ternura e o cuidado de Deus, Pai-Mãe providente.

Ao falar de S. José, o Papa nos desperta para que estejamos conscientes de que nossa vida está tecida e sustentada por pessoas normalmente esquecidas, ocultas e que, a partir de posições aparentemente de segunda linha, manifestam um protagonismo sem igual na história da salvação, através de gestos que sabem dizer aos cansados, aos humilhados e excluídos, aos sem voz: “estou contigo, acolho seu sofrimento, tua solidão, tua busca da vida; sou sensível às tuas lágrimas e à tua fragilidade; não há nada em ti que me deixe indiferente”. São pessoas que, através do cuidado compassivo, se fazem próximas e solidárias da condição humana de cada um de nós.

Recuperar o sentido da ternura exige de nós contemplar a vivência da ternura de José de Nazaré, e não só como um mero modelo ético de atuação, senão em sua profunda intimidade e filiação referida a um Deus materno cujas entranhas se estremecem e sente ternura por seus filhos e filhas.

A ternura emerge assim como algo que é, antes de mais nada, próprio de Deus, e Deus, como Aquele que instaura o primeiro movimento de ternura para com a realidade, como a relação que une Àquele que dá o ser com aquele que o recebe (Criador e criatura).

O coração de Deus é o de um Deus com “entranhas de ternura”, entranhas que se comovem e que o fazem sair e transbordar-se como amor terno sobre a história e sobre a humanidade.

Ou seja, antes de mais nada, há uma ternura divina que se adentra como Amor absoluto de Deus nas fibras do ser humano. À imagem desse Deus de ternura fomos criados como seres capazes e necessitados de ternura. Uma ternura que não será senão um pálido reflexo dessa “forma suprema de ternura” que é o Amor de Deus, que se aproxima da realidade humana como Ternura amorosa.

Contemplando a pessoa de São José, podemos também descobrir que nosso Deus é um Deus de ternura.

Só quem experimentou a ternura de Deus se sabe possuidor de uma “segunda pele” que certamente o faz mais vulnerável, mas ao mesmo tempo mais humano, ou ao menos, mais apto para penetrar no secreto de uma humanidade capaz de sentimento e estremecimento até os limites não imaginados. Nele pulsa o coração de Deus que se sintoniza com a pulsação do coração do mundo.

Com razão afirmava Abrahán Heschel, que “o grau de sensibilidade diante do sofrimento humano indica o grau de humanidade que temos atingido”. E é a ternura aquela que desperta em nós essa sensibilidade e mede, por isso, o grau de humanidade alcançado.

A ternura é o afeto que devotamos às pessoas e o cuidado que aplicamos às situações existenciais marcadas pela fragilidade. É uma proximidade que se revela como intuição, vê fundo e estabelece comunhão.

A ternura brota quando a pessoa se descentra de si mesma, sai na direção do outro, sente o outro como outro, participa da sua existência, deixa-se tocar pela sua história de vida.

Esse sentimento é um modo de ser existencial que afeta todas as dimensões da pessoa.

A expressão por excelência da ternura é o carinho, onde se acentua a proximidade física e o respeito ao outro. O carinho em certas situações é a melhor forma de comunicação não-verbal.

Ele revela cuidado solícito, manifesta sensibilidade através do contato físico, expressa-se como gesto sensível que quer acolher a pessoa como tal.

A ternura é impulso íntimo e comunicacional, é forma de viver e de conviver, circula entre as pessoas, sustenta novas relações, é valor original que se irradia como verdade. A ternura se expressa como acolhida de quem é frágil e não se cansa de amar.

 

Forte é a ternura que permanece resistente.

A ternura revela lucidez, firmeza e tenacidade. Não se deve confundir ternura com emocionalismo.

A ternura possui fibra e sustenta causas justas. A ternura mantém fidelidade às pessoas e assume posições sérias. A verdadeira ternura é destemida, não se amedronta e sustenta a verdade, é corajosa, não compactua com a violência, a crueldade, a exclusão. A ternura pode e deve conviver com o extremo empenho por uma causa: “hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás” (Che Guevara).

A ternura emerge do próprio ato de existir no mundo com os outros

A ternura mantém a reciprocidade com o diálogo, a afetividade, a compreensão, a amizade, o respeito, o direito, a solidariedade; ela é aberta, não se fecha, ajuda o mundo a ser humano e não selvagem, é alegre e não triste, pacífica e não belicosa, justa e não legalista, limpa e não contaminada. Assim, a ternura ética preserva a humanidade, ventilada pelo sopro da dignidade. A ternura leva a pessoa a sentir-se gente.

A ternura vital é sinônimo de cuidado essencial. O exercício da ternura é fundamental para desenvolver atos de cuidado. O cuidado faz o ser humano aberto, sensível, solidário, cordial e conectado com tudo e com todos no universo. Sem o cuidado o humano se faria inumano.

O cuidado vive do amor primordial, pois o amor é a expressão mais alta do cuidado; tudo o que amamos também cuidamos e tudo o que cuidamos é um sinal de que também amamos.

O cuidado abre-nos caminho para viver, com mais intensidade, nossa humanidade. E viver “humanamente” significa viver em vulnerabilidade.

A arte do cuidado confere a cada um a capacidade de exercer a paternidade-maternidade espiritual; cuidar é sentir o outro, é verdadeiramente escutar, é ter um olhar desarmado, eliminando todo preconceito. Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrar-se de si mesmo e sair em direção do outro, participando de sua existência; é esvaziamento de si mesmo para deixar o mistério da fragilidade do outro, que também traz em si, encontrar abrigo no coração.

Cuidar é entrar em sintonia com... Disso emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade...

Quem não aceita a própria vulnerabilidade e inter-dependência não desenvolve atitudes de cuidado. Quem não aceita ser cuidado, também não está disposto a cuidar dos outros. Somos educados para sermos “super-homens” ou “super-mulheres”; aprendemos a não admitir e a não aceitar o limite, a vulnerabilidade, o fracasso... O ser humano é finito, portanto vulnerável. Ele não se basta a si mesmo; necessita de relações com o seu meio, com os seus semelhantes e com o Transcendente, dando sentido à sua existência.

 

Isto significa que o cuidado faz parte da constituição do ser humano. É um “modo-de-ser” singular do homem e da mulher. Fomos criados à imagem e semelhança do “Deus cuidador e providente”.

Cuidar é mais que um ato; é uma atitude “kenótica”, porque exige o esvaziamento de nós mesmos para deixar o mistério do outro encontrar abrigo em nosso coração.

O cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, é um “modo-de-ser essencial” de cada pessoa.

É uma dimensão fontal, originária, primeira, impossível de ser totalmente esvaziada.

Por isso, para além do “ter cuidado”, “somos cuidado”; é da nossa essência, ou seja, no cuidado vamos construindo nosso próprio ser, nossa autocons-ciência e nossa própria identidade.

Textos bíblicos:

Is 49,8-26; Os 11; Mt 6,25-34; Mt 5,43-48

Na oração:  

Quem já foi afetado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si: a ternura é despertada e o cuidado é mobilizado.

O modo-de-ser-ternura e cuidado de São José se prolonga em nós, no encontro com as pessoas.

- Pedir a graça de sentir a ternura, o carinho, a proteção das mãos benditas e providentes de São José.

Alargar o coração, para que aí a ternura de Deus possa fazer morada.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

PENTECOSTES: livres como o vento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho da festa de Pentecostes. Que o "Sopro divino" fortaleça seu interior e desperte os dinamismos vitais para uma presença inspiradora e criativa neste mundo tão sufocante.

“Soprou sobre eles e disse: ‘recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)

 

Corre pela rede este relato: uma pessoa idosa e com recursos econômicos contraiu o Covid; os médicos, temendo por sua vida, aconselharam a colocar-lhe um respirador; e ele começou a chorar. A enfermeira que o cuidava lhe perguntou: “O senhor está chorando porque não tem dinheiro para pagar o respirador?”. “Não – respondeu o ancião – choro porque estive respirando gratuitamente toda a minha vida e só agora me dou conta do valor desse grande presente”.

As circunstâncias desse enfermo e a dos apóstolos fechados são semelhantes, pois eles se encontram confinados, um com a Covid e os outros estão fechados no Cenáculo. Em ambos os casos está presente o medo da morte: um, por um vírus maligno e outro, pelas autoridades romanas, que querem acabar com o movimento de vida iniciado por Jesus. Também coincide o método curativo: para o ancião infectado, um respirador que lhe injeta oxigênio nos pulmões; para os discípulos de Jesus, a chegada do sopro divino que fortalece seu espírito. A grande diferença é que o hospital cobra enquanto que o Espírito é gratuito.

O relato nos ajuda a tomar consciência da presença do Espírito em nossas vidas pois Ele, como o oxigênio, sempre esteve ao nosso lado, mas nos acomodamos no habitual e esquecemos desse “ar vital” que nos mantém sempre criativos, inspirados e sonhadores. O Espírito é nosso “respirador” existencial. Por isso, é preciso, de tempos em tempos, uma sacudida – interna e externa – para que nos recordemos dessa presença, muitas vezes silenciosa como uma brisa, outra vezes como um vento impetuoso.

A liturgia cristã é muito sábia dividindo o ano com festas que indicam os marcos mais importantes de nossa fé: a encarnação, ressurreição e agora Pentecostes, que são como “toques” para despertar nossa atenção.

O Espírito Santo é o “oxigênio” que nos faz respirar.

Descobrir, no dia-a-dia, que o Espírito é essa Presença forte e terna ao mesmo tempo, e que, como o oxigênio para respirar, nos envolve, nos habita e nos constitui; despertar-nos para essa realidade é muito libertador. Mesmo estando em confinamento, essa Presença percebida como silêncio, como proximidade, como força, como alegria..., se converte em caminho, em Vida amassada com nossa vida, e nos “levanta-ressuscita” do sonho quase apagado para conectar-nos com o Sonho de Deus, seu Reinado.

A festa de Pentecostes vem acompanhada de muitos símbolos. Um vento que levanta e dispersa o pó que estava sedimentado em nossas vidas, um fogo que aviva as brasas que estavam apagadas em nosso interior; uma luz benfazeja que nos possibilita ver com claridade o caminho que se abre diante de nós: a senda que Jesus indicou para seus seguidores(as); uma força que afasta nossos medos e derruba as paredes que dão a falsa sensação de segurança; o Espírito é a Vida mesma de Deus: na bíblia, é sinônimo de vitalidade, de dinamismo e novidade. Vento, fogo, luz, força, vida... tudo grátis, ao alcance de nossa mão; basta abrir-nos à presença inspiradora e mobilizadora do Espírito.

É o Espírito dos mil nomes..., nas religiões, na arte, nas grandes descobertas, nos momentos de inspiração, nas experiências fundantes de nossa vida. “A minha direção é a pessoa do Vento” (M. Barros).

Foi o Espírito que impulsionou a missão de Jesus e que agora se encontra também na raiz da missão da grande comunidade de seus seguidores e seguidoras.

A imagem do Ressuscitado “soprando” sobre os discípulos contém uma riqueza instigante: significa partilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo...

Na sua conversa noturna com Nicodemos Jesus tinha dito que “o vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,8). O vento é livre; e tem tanta liberdade que ninguém pode segurá-lo. O que Jesus destaca é a “liberdade” do vento, que não se deixa escravizar, submeter ou dominar. É o símbolo perfeito da liberdade indomável; uma liberdade que está ali onde está o Espírito.

O evento de Pentecostes nos remonta ao coração mesmo da experiência cristã e eclesial: uma experiência de vida nova com dimensões universais.

O dia da festa de Pentecoste é, de verdade, a festa dos homens e mulheres livres como vento, festa do novo nascimento. E, neste mundo, começará a ser possível a harmonia da liberdade com a igualdade, a comunhão com o respeito à diversidade, a verdade com a acolhida do novo...

Viver uma “vida segundo o Espírito”  é deixar-nos recriar, deixar-nos mover, transformar, alargar.

Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença.

De imediato, nos sentiremos livres do peso que fomos arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver como filhos e filhas do Vento”.

O Santo Espírito é o sopro que vivifica, anima, restaura e congrega. Pela linguagem do amor, Ele acende a luz da paixão e permite desenvolver os dons da alegria, do entusiasmo, da compaixão, do cuidado, da esperança e da fé inabalável. Tais atitudes construtivas não são obra nossa, mas dom e fruto do Espírito, que se revela como algo agradável, fascinante, belo, alegre, espontâneo, saboroso como um fruto.

Nós as vivemos, sim, mas é a “Ruah” que as desperta em nós, pois elas estão presentes como “reservas de humanidade” em nosso interior.

Somos “filhos e filhas do Vento”, a Ruah de Deus.

Homens e mulheres do vento somos todos nós, quando nos deixamos mover de acordo com os movimentos do coração de Deus e da paixão pela humanidade. Movidos pelo Espírito de Deus, acreditamos e construímos mediações libertadoras que promovem, incentivam e enobrecem o espírito humano. Passamos a preferir a proximidade à distância, o dinamismo à inércia, a criatividade à normose...

Nosso tempo pede que sejamos homens e mulheres do Vento, que ajudam o mundo a respirar e sentir a vida palpitar; que buscam, na terra, viver o sonho do Reino; que alimentam as chamas da esperança nos corações sonhadores; que se reconhecem humildes ante a misericórdia e o infinito de Deus; que acreditam na força dos pequenos e dos gestos simples; que vibram com as conquistas justas e que se compadecem da miséria do humano; que cuidam de tudo e de todos com ternura e carinho.

Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver, escutar o Sopro daquela voz que habita a dimensão mais profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa existência. É o Sopro que nos faz viver, e viver em plenitude.

Texto bíblico: Jo 20,19-23

Na oração:

Precisamos do Sopro que verdadeiramente nos agite, nos empurre, nos arranque de nossa vida estreita e estéril.

O Espírito é um dom para os fundamentos, não para a maquiagem.

- Abra seus pulmões e deixe o “oxigênio” da Vida chegar até às dimensões mais profundas de sua vida, talvez ainda não bem integradas; deixe que Vento levante a poeira da acomodação, do medo, da insegurança... para o despertar de um novo impulso vital., criativo e aberto.

José de Nazaré: pai na acolhida

Texto 4 da série elaborada pelo pe. Adroaldo Palaoro, sj sobre a vida e missão de São José que poderá ser usada como subsídio para melhor viver o ano de São José (2021) decretado pelo Papa Francisco na Carta Apostólica "Patris Corde". 

“O acolhimento de José convida-nos a receber os outros, sem exclusões, tal como são, reservando uma predileção especial pelos mais frágeis, porque Deus escolhe o que é frágil (1 Cor 1, 27), é «pai dos órfãos e defensor das viúvas» (Sal 68, 6) e manda amar o forasteiro. Posso imaginar ter sido do procedimento de José que Jesus tirou inspiração para a parábola do filho pródigo e do pai misericordioso (Lc 15, 11-32). (Papa Francisco – “Patris Corde”)


Se existe uma atitude de vida que pede o resgate de sua profundidade e seu poder evocativo original é a da acolhida. É um dos termos bíblicos mais ricos, que nos ajuda a aprofundar e aumentar a compreensão sobre a relação com nossos semelhantes. Por isso, buscamos inspiração no modo original e criativo de ser presença acolhedora na pessoa de São José.

Na parábola citada pelo Papa Francisco, fica claro que o conceito de acolhida implica necessariamente a atitude de “ter coração”, expresso nos gestos de escuta, paciência, dom e paz. Portanto, um modelo de espiritualidade que se converte numa disposição interior para perceber, a partir de dentro, as angústias das pessoas. O sentimento que inspira e ilumina a acolhida é o da compaixão, pois não se trata de “dar coisas” mas deixar-se “afetar cordialmente” pela situação do outro.

Tudo isto vem a dizer a todos nós que não é suficiente encontrar com os outros só para um serviço útil e parcial, mas é preciso investir a nossa própria vida na proximidade viva, no compromisso solidário, em colocar-nos à disposição para ajudá-los a ser o que verdadeiramente são, o único caminho para a humanização.

Trata-se, pois, de nos perguntar o que significa hoje ser e trabalhar no Reino, partindo do fato de que no coração do seguimento de Jesus não há – e não pode haver – só um serviço, mas um encontro, rico em assombro e fascinação.

O contexto social pós-moderno nos coloca numa situação que acaba atrofiando este impulso tão humano da acolhida; aqui podemos indicar algumas características próprias de nosso tempo que complicam de modo peculiar a vivência desta virtude: as dificuldades que o ser humano atual tem para abrir-se e escutar uma voz diferente da própria, bem como uma disfarçada resistência para acolher a grandeza do mistério do outro que vem ao seu encontro; há um medo generalizado do outro, do diferente... e as casas se tornaram verdadeiras fortalezas, cercadas de parafernália eletrônica de segurança.

No entanto, a virtude da acolhida é um modo de proceder característico do seguidor de Jesus: “quem acolhe a um destes pequeninos é a mim que acolhe”; implica a capacidade de abertura e acolhida daquele que vem de “fora”, o estranho, o diferente...

A acolhida é uma das múltiplas manifestações da capacidade de amar. O amor verdadeiro se exprime, sobretudo, através de uma relação em que o outro é acolhido como próximo.

A acolhida se apresenta como um valor humano e espiritualmente vital, conectado, ao mesmo tempo, com a vulnerabilidade de cada um que sempre requer ser acolhido e aceito, que sempre precisa encontrar espaços humanizadores de convivência e comunhão.

Essa relação de acolhida supõe abrir-nos de verdade à realidade do outro, sem reduzi-lo às nossas projeções, nem submetê-lo às nossas categorias mentais, sem anular seu mistério e contando com o imprevisível, com o inesperado, com o radicalmente novo; em definitiva, com o que supera o plano das nossas expectativas. Receber as pessoas com atenção, escutá-la, pode ser uma ocasião para receber a única coisa verdadeiramente necessária. A acolhida implica uma integração entre escuta e serviço.

Por isso os pobres são especialistas em hospitalidade e acolhida.

 

Como homem e como mulher trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar   laços, construir fraternidade, acolher o diferente, fortalecer a comunhão. O olhar do outro é o fato originante da fraternidade. No encontro com o outro temos uma oportunidade única de encontrar-nos a nós mesmos.

O ser humano está comprometido com os outros; por sua própria natureza, ele se torna pessoa humana somente em interação com os outros; ele possui impulsos naturais que o levam em direção ao convívio, à cooperação, à comunhão...; ele é reserva de humanidade e compromete-se com a dignidade humana.

Cada pessoa está sempre em contato com o “outro”. E o outro é pessoa. O outro revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e enigmático. O outro é plural, apresenta múltiplos rostos; é diferente, inédito...

Num mundo em que a competência se degenera em competitividade sem limites, e em que o individualismo e a falta de solidariedade criam novas fronteiras e exclusões, é preciso recuperar o discurso e a prática do “ser-para-os-outros”, o saber e o agir como serviço, a solidariedade, a compaixão, a partilha, o perdão, a gratuidade, a acolhida, o dom de si mesmo, o amor...

A experiência de viver permanentemente sob o olhar compassivo de Deus permite descobrir que “o ser-com” e “o ser-para” é a autêntica condição humana que se desloca em direção ao outro, na arte de deixar e abrir lugar ao excluído, ao estranho, ao “sobrante”...

A acolhida implica também iniciativa de sair do próprio “lugar” e mergulhar no lugar do outro.

Essa “travessia” não é apenas geográfica; trata-se de uma experiência que requer a atitude de abrir-se ao outro como diferente; e isso implica em “passar” para o seu lugar, aprender a ver o mundo a partir de sua perspectiva, deixar-se questionar e desinstalar-se pelo outro, despojado da condição de pessoa.

A acolhida alimenta coragem de romper as fronteiras do preconceito, da indiferença e da intolerância; ela impede que as fronteiras se transformem em frias barreiras, ou seja, distância e negação do outro.

Esta capacidade humana de encontrar o outro, entrar na vida do outro e deixar que a própria vida seja questionada pela presença do outro é a qualidade maior daqueles que alargam sua acolhida e não se deixam dominar pelo medo e pela suspeita.

 

A acolhida também nos leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído, marginalizado...) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação; ela gera protagonismo e nunca dependência; compartilha sem humilhar; cria humanidade em seu entorno, com generosidade, humildade e silêncio; supera todo exibicionismo, sentimentalismo ou instrumentalização do outro.

A diaconia (serviço) da acolhida é um movimento que vem de dentro da pessoa e se estende no vaivém das relações humanas mais distantes e mais próximas. É abertura e disponibilidade àquele que interpela as suas convicções, seu modo rotineiro e estreito de viver.

Só quem tem coração dilatado vive a acolhida como surpresa provocativa.

A acolhida é antes de mais nada uma disposição da alma, aberta e irrestrita. Acolher o outro significa multiplicar a alegria do encontro, da novidade e da partilha... enfim, da vida.

A acolhida vivida por São José nos revela que Deus nos convoca a “fazer estrada” com Ele, a viver um êxodo permanente, gerando-nos continuamen-te para a responsabilidade como pura gratuidade e generosidade.

O “modo de proceder” de S. José nos faz compreender a acolhida como hábito do coração; não é um evento, um ato isolado; ela fermenta, dá calor e sentido ao nosso cotidiano e se encarna nos pequenos gestos de inclusão. Importa “re-inventar” com urgência a acolhida como valor ético e como atitude permanente de vida.

 

Textos bíblicos: Mt 1,18-25; Gen 18,1-15; Lc 15,11-32; Mc 9,33-37; Lc 10,25-42; Jo 12,1-11

Na oração:

Continuamente nos deparamos com um Deus que chega gratuito e imprevisível em nossa vida, suplicando acolhida. Quando Ele é acolhido, nossa cotidianidade se converte em milagre.

- Na relação com os outros, quê lugar ocupa a acolhida em sua espiritualidade e em seu ministério cotidiano?