Hoje na Galleria degli Uffizi, em Florença, vi o famoso quadro ‘O nascimento de Vênus’, do pintor italiano renascentista Sandro Botticceli. Mas confesso que o quadro que mais me chamou a atenção se encontrava do lado. Chama-se ‘A Calúnia’, também de Sandro Botticceli.
‘A Calúnia’
Esta obra leva a reflexões éticas sérias que são fundamentais, principalmente nesta época em que vivemos. Os personagens do quadro são: ao lado direito o rei, que se prepara para julgar o acusado, está sendo mal aconselhado pela Suspeita e a Ignorância.
Ao centro temos a Calúnia arrastando pelos cabelos o acusado ou caluniado. Ela segura em uma de suas mãos a tocha, como se estivesse mostrando a luz e é conduzida até ao rei pelo Rancor, que está vestido de preto e segura suas mãos. Também a Fraude e a Maldade, belas, adornam o Calúnia.
À esquerda está o Arrependimento (como uma velha) olhando envergonhado para a Verdade que está totalmente nua, assim como o acusado que não tem nada a esconder.
Ora, a verdade é nua, tudo revela e, na composição do quadro com todos estes personagens, provoca logo a pergunta “o que é a verdade de um discurso acusatório?” ou então “onde está a nudez?”.
Considerando a dimensão dual sobre a qual se construiu o mundo ocidental, é válido recordar que cada um destes personagens invoca o seu oposto. Neste sentido, a falta de sabedoria e discernimento leva a acreditar nos conselhos dados pela ignorância, já que em nenhum momento é feita a pergunta “o que é a verdade?”.
A calúnia é guiada pelo rancor e ressentimento que cega todos aqueles que por ela são contaminados, i.e, ofusca a verdade e sua nudez com a tocha que engana. Isso provoca a questão: “que afetos movem o agir verdadeiramente ético”?.
Ressentimentos e rancor conduzem a injustiças e isso fica claro nesta era das redes sociais e da intolerância em que notícias falsas (seja da internet ou algo que alguém simplesmente disse no bar) se espalham, são lidas e escutadas como verdade, provocam o rancor e, por vezes, conduzem a barbáries tal qual linchamento público, como já ocorreu, ou a defesa de posições políticas completamente arbitrárias.
Isso tudo é adornado e enfeitado, assim como ocorre com a cabeça da Calúnia, levando muitos a acreditarem que estão sendo justos, retos e bondosos, enquanto é justamente o contrário.
Todavia, talvez o mais impactante do quadro seja o Arrependimento (ou a penitência, como estava na explicação em italiano da obra) olhando com vergonha para a verdade. Trata-se de uma vergonha não apenas de ter feito uma injustiça, mas também porque a verdade revela a nossa própria nudez.
O rancor encobre aquilo que nós somos, mas que caluniamos no outro: mentirosos, egoístas, fraudadores, em certa medida assassinos (mesmo que seja com a própria língua que, com acusações, é capaz de destruir a vida de alguém), injustos e tantos outros vícios que simplesmente temos vergonha de ver em nós.
A Verdade retratada no quadro de alguma maneira lembra muito ‘O Nascimento de Vênus’ (o que é analisado pelos historiadores da arte), que, na Galleria degli Uffizi, se encontra ao lado da Calúnia.
‘O Nascimento de Vênus’
Isso de certa forma leva também a pensar na relação entre a verdade com a beleza e o amor, o que também conduz à pergunta “o que é a beleza?” e “o que é o amor e amar?”.
Apesar de ter pensado um pouco nestas coisas, reparei muito nos brasileiros em cima do quadro “O Nascimento de Vênus”. Talvez seja isso que esteja faltando nos brasileiros: deixar de ficar tirando selfies com quadros famosos só para ficar mostrando para os outros e começar a valorizar a arte, saboreando quadros como 'A Calúnia' de Botticelli...
A arte também provoca uma educação de si, seja no pensamento teórico ou no agir prático.
Texto de Hugo Estevam, graduado, mestre e doutorando em Filosofia (IFCS/UFRJ)
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