sexta-feira, 31 de julho de 2020

INÁCIO DE LOYOLA, um Santo para Nosso Tempo

Compartilhamos um texto de reflexão do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI) para ajudar a "fazer memória" de Santo Inácio de Loyola, cuja festa é celebrada no dia 31 de julho.
Celebramos no dia 31 de julho, a festa de Santo Inácio de Loyola. No período 31-julho de 2020 a 31 de junho de 2021, a Companhia de Jesus nos convida a viver o “ano inaciano”, ou seja, “fazer memória” dos quinhentos anos da conversão de S. Inácio.
Depois de cinco séculos, S. Inácio continua sendo uma figura única e paradigmática. O marcante nele está no fato de ter sido capaz de situar-se, de maneira original e através do ritmo de decisões pessoais aprofundadas, no contexto de mudanças de seu mundo e de seu tempo. Ele é considerado o santo dos “tempos novos” que despontavam perante seus olhos deslumbrados. Novos valores emergiam, novos modos de pensar, de sentir, de viver, novas descobertas, novas terras...
Inácio é o homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes mudanças que colocavam em questão tudo o que até então era recebido.
Depois de ter posto seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a “terra de Cristo” era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho.
A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.
Mas, seu itinerário não é unicamente geográfico. A grande originalidade da história e da vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da Igreja e da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu “mundo interior” e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.

Tudo começou em 20 de março de 1521: A “bala” que feriu Inácio na batalha de Pamplona não transpassou tão somente sua perna; atravessou também, de modo igualmente profundo e traumático, todo o mundo de ambições e sonhos de glória que ele havia buscado e fantasiado até esse momento. Todo um sistema de ideais se vê deste modo derrubado.
Foi forçado a um confinamento, de uns nove meses. Nas primeiras semanas debateu-se com a dor e com a morte, mas logo começou a abrir-se, para ele, algo diferente, e desse tempo nasceu um homem novo.
Um castelo interior (um tipo ideal de homem) se desmoronou, ao mesmo tempo que começou a surgir outro edifício humano, não mais centrado na busca de poder e prestígio, mas na força dos grandes desejos e na sedução pela pessoa de Jesus Cristo, que, desde então, ocupará a tela inteira de sua vida.
A partir deste momento, toma como ponto de partida o protagonismo ativo e criativo de Deus em sua história pessoal; Inácio é movido a fazer uma leitura de sua própria história com a chave do protagonismo de Deus. A leitura de alguns livros -  “Vita Christi” e “Legenda Áurea” foi, para ele, a primeira porta de acesso ao Mistério.
Da “leitura de textos” à “leitura de si mesmo”: este é o deslocamento que Inácio experimenta em seu interior. Inicia-se uma travessia do “texto escrito” ao “texto da vida”. Leitura provocativa e questionado-ra, pois ela desmonta uma estrutura fincada em falsos fundamentos e desperta o desejo de construir a vida sobre uma nova base. Uma leitura conflituosa, marcada por resistências e medos…, mas, ao mesmo tempo, uma leitura atenta e centrada, com pausas para reflexão sobre as reações que ela despertava. Leitura que o compromete com outra escrita, carregada de sentido, valor e utopia. Leitura que o ajuda a “ordenar” seu mundo interior. Descobre, então, ser possuidor de uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Aí se pode encontrar o sentido de tudo “aquilo que se é, daquilo que se faz, se espera, busca e deseja”.

A situação pandêmica, na qual estamos vivendo, pode nos oferecer uma outra perspectiva, se cairmos na conta que talvez estejamos vivendo, de um modo coletivo, o que aconteceu com Inácio de Loyola: não é um tiro de canhão que está detendo nossa correria maluca; rapidamente fomos imobilizados por um pequeno vírus, que nem sequer vemos, derrubando-nos do pedestal da autossuficiência, da soberba, do falso sentimento de que não éramos vulneráveis.
A pandemia está “des-velando” (tirando o véu) como são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde, muitas vezes, não há lugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para uma vida interior, não há lugar para a oração...
Confusos e aturdidos, com dor e também com temor, estamos prostrados na cama, cada qual na sua (porque cada um precisa fazer seu próprio processo), mas todos no mesmo quarto, porque esta prostração nos afeta e nos diz respeito a todos.

Inácio precisou de tempo para compreender tudo o que se passava com ele. No começo, teve de lutar contra a febre e a dor de suas feridas; quando elas começaram a diminuir, buscou primeiro entreter-se com leituras amenas e finalmente foi encontrado por Aquele que o buscava, através dessa ferida. Aquilo que no início foi vivido como uma derrota e um fracasso, foi seu segundo nascimento.
Como Inácio, talvez busquemos, num primeiro momento, nos entreter lendo “livros de cavalarias” que nos fazem fugir e esquecer a angustiante situação que estamos vivendo; ou talvez, já tenhamos começado a ler textos verdadeiros, textos reveladores e instigantes que nos devolvem a nós mesmos para dispor-nos a uma outra escuta, agora interna.
O novo de tudo isto é que não se trata de uma situação individual, mas coletiva. É agora que nos é dada a oportunidade de nos colocar realmente a escutar e a discernir os sinais. Mas, não sozinhos, e sim, juntos. Talvez seja esta a diferença fundamental com respeito a Inácio de Loyola. Como aconteceu com ele, o desafio está em passar de um confinamento forçado a um distanciamento, livremente acolhido e carregado de presenças.
Dispomos de muitas ferramentas, entre elas, aquelas que o mesmo Inácio nos deixou, para converter este confinamento coletivo em um retiro partilhado, em Exercícios coletivos de discernimento e re-conversão. São muitos os apelos, as inspirações, os movimentos internos, as reações e os impulsos que estão em jogo. S. Inácio, em seu leito de convalescente em Loyola, começou a dar nomes a tudo isso. Ali aprendeu a discernir e a decidir; ao sair de seu confinamento, não voltou à “normalidade” da vida, mas abriu-se ao novo, sonhando grande, ensaiando outros caminhos, indo ao encontro de um mundo em efervescência.

Também para nós, este é um tempo de kénosis, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo para despertar uma outra sensibilidade e entrar em sintonia com o Deus presente e atuante em tudo; em qualquer situação que nos encontremos, estamos envolvidos por suas mãos providentes. Aos poucos vamos descobrindo que este tempo é de uma grande intensidade espiritual.
Bendito confinamento se nos serve para receber uma luz e um conhecimento que não teríamos e bendita prova quando ajuda a nos tornar mais humanos e compassivos! Mais do que nunca, precisamos uns dos outros. A luz de um é luz para todos.

Que Santo Inácio nos inspire a viver este tempo de distanciamento social como momento privilegiado para uma intensificação nas relações, para dar passos novos, para reinventar a vida e carregá-la de sentido.


sábado, 25 de julho de 2020

Quando o tesouro e a pérola nos encontram

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 17º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).


 “Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13,44)

As parábolas são uma expressão de surpresa diante da vida, que nos ultrapassa sempre, fazendo-nos capazes de pensar de um modo diferente, captar o outro lado da realidade concreta e abrir-nos à dimensão da transcendência. Dessa forma, elas recolhem e des-velam a vida real dos homens e mulheres de cada tempo, movendo-os a assumir uma atitude mais aberta e mais comprometida com a situação onde estão envolvidos. Isso significa acolher o dom e a missão do Reino.
Em geral, as parábolas evocam experiências desconcertantes e em quase todas elas se revela um dinamismo que rompe os esquemas “normais” da vida, conduzindo o ouvinte (ou leitor) a um outro patamar, mais inspirador e desafiante. Elas removem a vida, arrancando-a da “normose” (normalidade doentia) e despertando outros recursos internos, que não foram ainda mobilizados. Assim, esta mesma vida, começa a adquirir um outro sabor e um outro sentido.
O Evangelho deste domingo recolhe duas pequenas parábolas fulgurantes de Jesus: uma do tesouro e outra da pérola. São relatos de uma enorme eficácia. Elas nos situam frente a uma experiência desencadeante de vida, frente à surpresa de Deus, e assim expõem e põem em marcha o caminho do Reino. Elas também nos situam diante da máxima riqueza e exigem, ao mesmo tempo, o maior desprendimento.
São imagens que pedem radicalidade, ou seja, “vender tudo” para adquirir o tesouro ou a pérola.
Mas, quase não percebemos que há um passo prévio: a descoberta, a iluminação interior, o ver claramente. Tanto o caminhante pelos campos como o comerciante de pérolas, vendem tudo porque se convenceram de que o investimento valia a pena.

Nestas duas pequenas parábolas, são apresentadas duas opções para que cada qual possa identificar-se: ou é aquele que encontra inesperadamente o tesouro e compra o campo, ou é aquele que tem a vocação de comerciante e percorre o mundo procurando pérolas preciosas.
Uns serão aqueles que vão passear, deixando-se surpreender pela vida e pelos acontecimentos, sem perder a capacidade de assombro, de entusiasmo, de admiração. A pessoa de nossa parábola, ao ser encontrada pelo tesouro, “sai” de si para vender quanto tem, procura o proprietário e compra aquele campo. Mas também percebemos que faz tudo isso a partir de dentro, como se houvesse conectado com algo pessoal e íntimo, que lhe permite “sair” do mais profundo de si mesmo. E esse duplo movimento é carregado de uma plenificante alegria.
Outros serão de mentalidade “comercial”: encantam-lhes a aventura, a busca, a estratégia. Não nasceram para estar quietos, nem para se conformar com boas e bonitas pérolas. O específico seu é continuar viajando e buscando sempre a pérola maior até encontrá-la. E quando a encontram, compram-na, e continuam buscando sempre. Porque isso é próprio de um comerciante: apostar, comprar, vender, às vezes ganhar, outras vezes perder... A pérola também sai ao encontro daquele que busca.
A decisão e o risco que assumiram, tanto o comerciante de pérolas quanto o nosso caminhante pelos campos, mudaram suas vidas. O tesouro e a pérola continuarão sendo valiosos, quer eles vivam com fidelidade e paixão ou não. O que os transforma não é o tesouro ou a pérola em si, mas a atitude e a decisão que tomam, atraídos por eles. É um tesouro e uma pérola que exigem uma transformação do antigo e conhecido passado para um novo e desconhecido futuro.
Quando a pessoa se fecha às surpresas da vida, ou quando deixa de esperar algo bom e precioso, ela se invalida para ser descobridora de tesouros ou buscadora de pérolas.

Para deixar-nos encontrar pelo tesouro e pela pérola é preciso deslumbrar-nos, fascinar-nos, encantar-nos, apaixonar-nos. Parece simples, mas é muito aberto e evocador. “Aquilo pelo qual nos encantamos mobiliza nossa imaginação e acaba por deixar sua marca em tudo”, dizia Pe. Pedro Arrupe.
E como encantar-nos? Não é só questão de vontade, mas de viver com os olhos abertos, atento à realidade, externa e interna, ser poroso para que nos deixemos encontrar pela pérola preciosa e pelo tesouro escondido; diante desta surpresa, não poderemos deixar de ficar fascinados.
E então, sim, estaremos dispostos a queimar barcos, vender tudo, dar o salto. Talvez nosso maior problema é que, na realidade, o que nos interessa são nossas posses, poder, objetos, apegos à auto-imagem e não descobrimos ainda o tesouro escondido e a pérola fina, que não estão distantes de nós; pelo contrário, encontram-se no mais profundo de nós mesmos.
“Descer” ao chão de nossa interioridade é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos horizontes, para conhecer o reino interior, para encontrar a riqueza interior e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pela “descida” aos campos de nosso coração.
Isso requer coragem para passar por todas as regiões, mesmo as sombrias, e chegar ao mais profundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos levar conosco, que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente originais e criativos.

É preciso “descer” até o fundo para descobrirmos uma nova riqueza para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Trata-se de despertarmos, de escavarmos, de avançarmos em direção ao “veio de ouro” e de sabermos que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido como dom. Não basta falar de “pedra preciosa”, é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, alargar nosso coração, garimpar em direção às riquezas que estão no eu mais profundo, assim como o “fio de ouro” no meio dos cascalhos.
Cada um de nós possui uma fonte inesgotável de qualidades-habilidades; podemos dizer: “somos um presente”, um valor para os outros. A vida sempre está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com suas ideias, coisas... A pessoa do “eu profundo” é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...
É no coração que existem, em abundância, os aspectos positivos de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas tendências. Aí se aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira diferente, dando a cada um, uma fisionomia própria, um caráter único.
Esta região profunda coincide com o mundo das certezas, dos valores, das ideias-força... que formam o eixo da nossa existência, o melhor de nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa realização, o positivo que nos solicita continuamente a nos tornar o que devemos ser.

A força da transformação, portanto, nós não a encontramos na superfície ou distante de nós, mas sim, nas profundezas. Para ter acesso à riqueza no interior de nós mesmos, podemos imitar, simbolicamente, os hábitos dos pescadores de certo atol do Pacífico. Eles vivem pauperrimamente sobre uma terra desprovida de vegetação e açoitada pelos ventos; mas o fundo do seu mar é muito rico em pérolas.
Desenvolveram aí aptidões excepcionais para o mergulho; descem sem qualquer aparelho, ao fundo do mar, localizam as pérolas, arrancam-nas, trazem-nas para a superfície, atiram-nas no barco, para depois mergulharem de novo.
Este é o caminho da verdadeira espiritualidade: “descer até o fundo, mergulhar no oceano interior onde estão escondidas as pérolas que dão significado e sentido às nossas vidas.
Encantados com a descoberta, trazê-las à tona e colocá-las a serviço dos outros, multiplicando-as.
Textos bíblicos: Mt 13,44-52  

Na oração: 
Para realizar-te e desenvolver toda a tua potencialidade, busca, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de teu ser, o núcleo original de tua personalidade.
- Olha no profundo de teu coração, olha no íntimo de ti mesmo, e pergunta: “tenho um coração que deseja o maior (“magis”) ou um coração adormecido pelas coisas? Meu coração conserva a inquietude da busca ou deixa-se sufocar pelos apegos, que acabam por atrofiar-me?”

domingo, 19 de julho de 2020

Aceitar o Joio nos Humaniza

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 16º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“Deixai crescer um e outro até a colheita!” (Mt 13,30)

Jesus costumava contar parábolas com frequência e as pessoas gostavam de ouvi-lo; suas parábolas, brotavam do chão da vida, estavam carregadas de vida e comprometiam as pessoas a viverem de um modo diferente, deixando-se inspirar por Aquele que é Fonte da Vida. Como relatos instigantes, as parábolas faziam emergir uma nova imagem de Deus e uma nova imagem do ser humano.
Sabemos que as imagens, que cada um guarda em seu interior, tem um peso e marcam a vida: elas podem fazer adoecer ou ativar uma vida sadia, podem alimentar medos ou despertar coragem, podem estreitar a vida ou expandi-la.... Todos temos experiências das funestas consequências das falsas imagens de Deus, que acabam alimentando, em cada um, uma auto-imagem atrofiada e paralisante. Jesus, com suas parábolas provocativas, desejava quebrar tais imagens nocivas e substitui-las por outras saudáveis.
Para isso, Ele usa uma pedagogia para nos provocar e dirigir nossa atenção para algo específico, que nos inquieta: quando nos sentimos incomodados com Suas imagens, isso significa que estamos sendo confrontados com imagens falsas de Deus e de nós mesmos, petrificadas em nosso interior. Algum aspecto nosso, que até então havia permanecido na sombra, é iluminado; agora somos capazes de nos ver de modo diferente. Essa transformação interior, de nossa visão e de nossos sentimentos, não pode ser alcançada por meio de meras palavras de ensinamento. Para isso, precisamos da arte das parábolas, pois elas des-velam, põem às claras, situações e modos fechados de viver, visões distorcidas, falsas verdades, ideias atrofiadas, crenças vazias..., que nos dão uma sensação de segurança e temos resistências em abrir mão de tudo isso.

Como muitas outras parábolas, também a do “joio e do trigo” é um relato provocativo. Não só porque parece ir contra o “senso comum”, que aconselha arrancar o joio que impede o crescimento do trigo, mas porque é também uma resposta às críticas que o próprio Jesus recebia por sua atitude com relação àqueles que a religião tinha excluído. Não em vão Ele foi acusado de ser “amigo de publicanos e pecadores”.
Por outro lado, a parábola pode deixar transparecer as inquietações da comunidade de Mateus, preocupada por separar com clareza os “bons discípulos” daqueles que não eram. Como tantos grupos humanos, a tentação é marcar uma linha divisória, entre o “trigo” e o “joio”. Essa separação, no interior da comunidade cristã, acaba se projetando nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais..., criando “muros” e “fronteiras” que esvaziam o processo de humanização.
Pois bem, seja porque se refira à vida histórica de Jesus, seja porque se tenha adaptado para responder a alguma polêmica comunitária posterior, o certo é que a mensagem da parábola não deixa lugar a dúvidas: “deixai crescer um e outro até a colheita!”.

Por isso, a atitude sábia de deixar o “trigo e o joio crescerem juntos”, nos remete precisamente ao que temos de fazer com o nosso próprio “joio”: aceitá-lo, acolhê-lo, integrá-lo, reconhecê-lo como nosso, sem reduzir-nos a ele e sem nos deixar determinar por ele. Tal atitude implica um crescimento em integração e em humildade. Por mais estranho que pareça, a aceitação do “joio” nos humaniza, pois nos faz descer de nosso pedestal egóico – feito de exigência, perfeccionismo e de complexo de superioridade – e aproximar-nos de nosso ser verdadeiro.
Quanto mais nós nos conhecemos e conhecemos o Sol que nos habita (Deus), mais nos integramos e mais nos humanizamos.
Humanizar-se, não no sentido de ser mais virtuoso, brilhante, bem-sucedido, perfeccionista... Humanizar-se é também a capacidade de acolher-se frágil, vulnerável e, ao mesmo tempo, ativar o vigor, ser criativo, resistir, poder traçar caminhos... Fazer a síntese entre ternura e vigor.
Não pretendamos, pois, arrancar o joio; demonstremos com nossa vida que, ser trigo, é mais humano.

Nossa vida está repleta da graça divina. Vivemos mergulhados na Graça que nos santifica.
Ser santo (a) é viver em plenitude nossa humanidade. É aprender a descobrir e a redescobrir a “presença de Deus em tudo e tudo em Deus” (S. Inácio).
Já foi dito que o ser humano nunca é tão grande como quando sabe reconhecer e aceitar sua fragilidade, sua limitação...  Reconhecer e aceitar sua própria “humanidade”, diante de Deus e dos outros, significa percorrer um caminho em direção a uma visão positiva, madura e profunda de si mesmo.
Com isso, já não desperdiçamos as nossas energias para tentar, inutilmente, afastar de nós algo que faz parte de nossa vida e que devemos aprender a integrar, a preencher de sentido, a transformar...
Às vezes, no mal que queremos extirpar, há um bem que não sabemos descobrir.

Com efeito, temos sempre a tentação de querer extirpar logo e totalmente o “joio” do nosso coração, arriscando-nos a arrancar com ele, pela raiz, os germes do bem que estão crescendo com dificuldade e que exigem uma atitude muito diferente, isto é, paciência e delicadeza, capacidade de intuição e clarividência, disponibilidade para alimentar uma sadia tolerância para conosco.
Todo este processo de integração interior se faz visível na integração com os outros com quem convivemos.

Parece claro que, nós seres humanos, ficamos incomodados com o “diferente”, com aquele que sente, pensa e crê de outra maneira. Se a isso agregamos a necessidade de “ter razão”, característica do ego, poderíamos explicar a origem de tantas intolerâncias, fanatismos, juízos, processos inquisitoriais e condenações... Tanto as religiões, como os grupos sociais, insistem em ter tudo bem clarificado e estabelecido, para evitar sobressaltos. Detrás de tudo isso, o que se busca é assegurar a sobrevivência e defender-se da ameaça da insegurança ou da necessidade de mudanças. Sair das próprias posições e convicções, no campo religioso, social, político, cultural...é, para muitos, um processo doloroso.
A parábola que estamos comentando (joio e trigo) é um chamado à tolerância e à paciência. A virtude da tolerância não é sinônimo de “bonzinho amorfo”, nem constitui um relativismo suicida. Tolerância é respeito e valorização da pessoa, acima das diferenças, acima das atitudes contrárias e inclusive, segundo Jesus, frente às agressões recebidas: “Amai vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”.

A personalidade fanática tende a ver a realidade dividida completamente em duas: tudo é branco ou preto, verdadeiro ou falso, bom ou mau, “trigo e joio”; para ela, não existem outras tonalidades. Por isso, ela se converte em juiz implacável que “salva” ou “condena”, assume atitudes fascistas ou nazistas, com a ilusão da raça pura, da ideologia pura, da religião pura...
Niels Bohr, um dos grandes iniciadores da física quântica, afirmou que “o oposto de uma verdade profunda pode ser também outra verdade profunda”. E para ele não se tratava de uma crença ou de uma opinião pessoal, mas de uma constatação, fruto de seus experimentos com partículas sub-atômicas.
Há um fato inegável: ninguém é igual a outro, todos temos algo que nos diferencia. Por isso existe a biodiversidade, milhões de formas de vida. O mesmo e mais profundamente vale para o nível humano. Aqui as diferenças mostram a riqueza da única e mesma humanidade. Podemos ser humanos de muitas formas e devemos ser tolerantes, como toda a realidade é tolerante. A intolerância será sempre um desvio e uma patologia e assim deve ser considerada.


Texto bíblico: Mt 13,24-43

Na oração:
O rigorismo não faz parte do caminho da Graça; o caminho da graça se chama compreensão e tolerância. A melhor resposta é dar a oportunidade para que o trigo amadureça; a melhor solução é abrir possibilidade para que o joio seja transformado. É questão de saber esperar. E disso, o amor é especialista.
- Frente ao “joio” presente em seu interior, que atitudes assume: Auto-julgamento? Moralismo? Intransigência?
- E frente ao “outro”, que “pensa, sente e ama de maneira diferente”, como você se situa?

sábado, 11 de julho de 2020

O Ser Humano está “Faminto de Raízes”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 15º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“Mas, quando o sol apareceu as plantas, ficaram queimadas e secaram, porque não, não tinham raiz,” (Mt 13,6)

As parábolas são um relato provocativo e aberto, que envolvem o ouvinte ou o leitor; elas não exigem explicações, mas uma resposta pessoal, vital; move a assumir uma atitude frente a alternativa de vida que propõem. Se não toma uma decisão, é sinal que a pessoa já definiu sua postura: continuar com a própria maneira de ver e viver a realidade.
O objetivo das parábolas é substituir uma maneira de ver o mundo, míope e limitado, por outra, aberta a uma nova realidade, cheia de sentido e de esperança.
As imagens de sementes, árvores, terreno..., dão o que pensar; questionam nossa maneira de ser, nos convidam a descer ao nosso chão existencial, a olhar o mais profundo de nós mesmos e da realidade que nos cerca, e descobrir ali ricas possibilidades.
Cada planta procura seu chão. Não se desenvolve em qualquer lugar. Exige nossa atenção: é preciso conhecer o chão onde ela é plantada, observá-la, cuidá-la...
Cada chão tem uma palavra a nos dizer; o novo vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão.

Na experiência espiritual, somos motivados a mergulhar no terreno da interioridade, como as raízes na obscuridade da terra, na presença do silêncio.
Aqui o caminho para Deus é “descer” ao nosso próprio chão e viver a comunhão universal. Subimos rumo ao Transcendente quando descemos ao nosso chão da vida. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio.  
Faz-se necessário, portanto, lançar raízes no mais profundo de nós mesmos e despertar todas as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente, toda decisão de assumir como cooperadores e artífices de um novo tempo.
Temos uma identidade que funda suas raízes na família, no povo, na cultura de origem. Outra, que provém das opções de nossa liberdade, de nossas decisões.  E um terceiro nível de identidade que nos vem da fé quando, progressivamente, como uma árvore, vamos “subindo” em direção a um novo sentido para nossa própria existência, deixando-nos conduzir pela força do Espírito presente no chão de nosso eu profundo. Desse enraizamento é que surgem os frutos surpreendentes, “à base de cem, de sessenta e de trinta por semente”.

Somos, portanto, seres de enraizamento e de abertura. “O ser humano é criado para..., afirma S. Inácio. A raiz que nos limita é nossa encarnação na realidade. A abertura que nos faz romper barreiras e ultrapassar os limites, impulsionando-nos à busca permanente por novos mundos, é nossa transcendência. Ninguém segura os pensamentos, ninguém amarra as emoções, ninguém detém os sonhos... O desafio consiste, então, em manter juntos o enraizamento e a abertura. Encarnados, mas abertos à transcendência.
Nesse sentido, transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
A tradição judeu-cristã fala em “trans-descendência”. Somos convidados não apenas a superar e a voar para cima, mas, fundamentalmente, a descer e a buscar o chão. É a experiência da Encarnação: o Deus que envolve toda a realidade, emergiu do chão da realidade e da história. É o Amor que desce.
Ao entrar no “fluxo da descida” de Deus, somos desafiados a deixar a superfície banal e descer às dimensões profundas da nossa existência humana. Nessas águas, não nos afogamos; respiramos fundo e revitalizamo-nos. Por isso, somos chamados a superar ambiguidades, a escolher rumo construtivo, a definir nossa identidade pessoal e a optar por causas humanas que nos fazem transcender.
Somos impulsionados a mergulhar na própria existência humana “misteriosa”, e contar com a inteligência criadora, com a liberdade fecunda, com o coração ardente e com mãos mobilizadas para o serviço.

Na “parábola do semeador”, Jesus compara nosso interior com um campo dotado de diferentes “espécies” de terra, mas habitado por uma semente de vida. A semente é poderosa e eficaz. Mas estão em jogo nossa acolhida e nossa receptividade: podemos permanecer no nível da superfície; podemos nos deixar prender por outros interesses ou prioridades sensíveis; ou podemos nos abrir às dimensões mais profundas de nós mesmos, à nossa “terra boa”, ao nosso “bom lugar”. Lida dessa perspectiva, a parábola não nos deixa indiferentes; motiva a nos questionar sobre a partir de onde nós estamos vivendo e, para chegar à resposta adequada, convida a nos fixar nos frutos que saem de nós.
A experiência espiritual cristã implica, portanto, “mergulhar os pés no chão da vida”.
É na obscuridade da terra que a planta vai buscar a força que a manterá viva, que lhe dará condição de expandir sua copa em direção à imensidão do céu. As raízes mergulham na terra de modo profundo, silencioso e lento. Expressões do nosso cotidiano como “pôr os pés no chão”, “estar com os pés na terra”, significam enraizar-nos e comprometer-nos com a realidade que nos afeta.
No “chão”, à primeira vista, estão todas as sujeiras, os detritos e as coisas em decomposição. Mas, para as raízes, tudo isso significa o alimento da vida.
Um “chão” é sempre mais do que um simples chão: cada “chão” revela lembranças, referências, ansiedades, medos, saudades...; cada “chão” guarda histórias, presenças e tem força de memória. Há vidas, pessoas, caminhos, acontecimentos, experiências...
Chão amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se...; ousar ir além, lançar por terra o modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
“Chão humano e humanizante”, porque carregado da presença divina.
É o ser humano mesmo o verdadeiro chão a partir do qual Deus se deixa encontrar e se dá a conhecer; cada pessoa é o autêntico chão da eterna presença de Deus.

Geralmente caímos na armadilha de acreditar que dar fruto é fazer obras grandes. A tarefa fundamental do ser humano não é fazer coisas, mas “fazer-se”. “Dar fruto” seria dar sentido à nossa existência de modo que, ao final dela, a criação inteira possa estar um pouco mais perto da meta, graças à nossa presença nela. Não se trata simplesmente de ativismo, mas de engendrar, de gestar algo novo, viver o Evangelho como novidade. Uma coisa é ter êxito e outra é ser fecundos, gerar vida.
Este é o desafio: gerar o novo a partir de dentro de nós mesmos, como se o sugássemos da terra com nossas raízes, para que nossas palavras e nossas ações sejam originais e criativas, e revelem uma força transformadora, com impacto na realidade onde nos encontramos.
Na fecundidade há espaço para o “mistério”. A fecundidade tem lugar no oculto, nas entranhas da terra. A fecundidade supõe confiança e abandono, uma atitude aberta e serena, sem ansiedade nem tensão, sem deixar-se desanimar pela insignificância dos primeiros resultados.
Viver em chave de fecundidade supõe aceitar ritmos, tempos longos como se dão na natureza. As plantas necessitam tempo para florescer e meses para crescer. Isto supõe excluir toda impaciência.
A fecundidade perdura e aumenta com os anos, embora as forças físicas se debilitem.


Texto bíblico: Mt. 13,1-23

Na oração:  “Pensamos e sentimos a partir do lugar onde nossos pés estão plantados”. Onde seus pés estão plantados? O seu “terreno cotidiano” tem facilitado ou dificultado o surgimento de novos frutos?
- Vivemos em um contexto marcado pela cultura da superficialidade, da aparência... Onde está enraizada sua vida? Ela tem se revelado como “terra boa”, verdadeira e fecunda, de onde brotam novidades surpreendentes?

domingo, 5 de julho de 2020

Um Coração sem Distância

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 14º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“...porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11,29)

Inútil discutir e dar voltas: o distanciamento social veio e começou a fazer parte do nosso ritmo cotidiano; não nos resta outro remédio a não ser tomar medidas para aprender a manejá-lo e a incorporá-lo em nossa vida da maneira menos danosa possível.
De fato, seus perigos são evidentes: o distanciamento físico (“que só se aproximem até um metro”), pode gerar o distanciamento social (“que não me venham com mais problemas, porque já tenho os meus”) e desembocar no distanciamento emocional (“olho ao meu redor e sinto as pessoas como uma ameaça”).
O evangelho deste domingo pode nos oferecer uma inspiração neste momento dramático que vivemos.
Jesus nos revela que toda manifestação de distanciamento (sanitário, físico, social, religioso, cultural, político...) pode ser quebrado a partir do coração. Toda proximidade com o outro começa pelo coração. Nesse sentido, encontramos uma pérola de grande valor naquilo que o evangelista Mateus nos des-vela: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” .
Ao se apresentar como referência para os seus discípulos - “aprendam de mim!”- , Jesus frisou duas atitudes pelas quais pautava a sua vida: a mansidão e a humildade. Elas são o reflexo das bem-aventuranças que Ele sempre deixou transparecer no encontro com os outros.
É do coração que brotam a mansidão e a humildade, únicos remédios que substituem a expressão do afeto e a cordialidade manifestada por via táctil (dar as mãos, abraçar...). Mesmo quando a situação impede que mãos e braços se encontrem, os corações se abraçam.

Este “tempo de confinamento” está nos fazendo tomar consciência de nossas debilidades, quebrando toda pretensão de auto-suficiência e de soberba; ao mesmo tempo, está nos fazendo experimentar que não somos donos de nossos estados de ânimo e que precisamos dedicar tempos ao descanso e à gratuidade.
Vivemos em meio à cultura da produtividade, da competição, da eficiência, e isso nos deixa cansados, raivosos, angustiados e tristes, sem um motivo aparente e sem poder encontrar uma solução para isso.  Constatamos que nossa fragilidade carrega em si a necessidade de sair, de passar tempos distendidos, de reaprender a estar com os outros, de oxigenar nossa vida em meio a tantos venenos que nos asfixiam...
A humildade e a mansidão do coração nos trazem para o chão da vida e nos possibilitam viver com mais humanidade. E estas duas virtudes estão disponíveis, em abundância, no nosso interior. Basta abrir espaços para elas e o nosso cotidiano adquirirá novo sabor e calor.
É suave a condição humana quando, em vez de ocultar nossa debilidade, descobrimos com assombro que é ela que nos conduz pela mão a nos aproximar calorosamente dos demais. Quando vivemos a debilidade de forma agradecida, é mais fácil perdoar que condenar, compreender que murmurar, aceitar que julgar.
A debilidade humana descansa nas mãos de Deus. Talvez seja esta a aprendizagem principal de nossa vida, pois a temos saboreado internamente. Só assim poderemos oferecer, também nós, um lugar acessível de repouso para os cansaços e fragilidades dos outros.

“Descansar” não é a outra face da ação de trabalhar; é participar, ter parte, na vida mesma de Deus, onde ação e repouso coincidem numa única pulsação, num único movimento de segurança e de felicidade, de consentimento e de abandono, nessa Presença Humilde que flui dentro de nós, nos atrai e nos conduz com suavidade. O decisivo é ir ao seu encontro e deixar-nos aliviar, para aprender d’Ele a sermos mais humanos.
Se vivemos só em chave de mandamentos, de doutrinas, de normas..., comeremos pão de fadigas e sentimentos de culpa; se vivemos em chave de bem-aventuranças, certamente poderemos caminhar aliviados, porque o peso e a fecundidade da vida estão apoiados em Outro e não dependem só de nós.
Nesse sentido, as bem-aventuranças da humildade e a mansidão são o terreno sólido sobre o qual podemos assentar nossa vida e ativar todas as potencialidades humanas que nos habitam.
“Humildade” vem de húmus, chão, barro. Ela está vinculada ao amor à verdade e a ele se submete.  Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo. Humildade é andar na verdade” (S. Teresa).
“Onde está a humildade, está também a caridade” (S. Agostinho). É que a humildade leva ao amor, e todo amor verdadeiro a supõe; sem a humildade, o ego ocupa o espaço disponível, e só vê o outro como objeto ou como inimigo. A humildade nos conduz à pura gratuidade do amor desinteressado.

Por outro lado, aqueles que vivem sob o impulso da mansidão, não rejeitam nada, não exigem nada. Estão abertos às surpresas da vida, vão interiorizando as contrariedades de cada dia e ampliando um espaço no próprio interior, onde acolher a realidade e reafirmá-la; revelam um coração que cria e alimenta proximidades
com todos, porque pulsa no ritmo do coração do outro, fisicamente presente ou distante.
A mansidão se assemelha a um sentimento de não-violência ativa, a “essa capacidade passiva de recepção que se encontra no fundo da estrutura da pessoa” (Edith Stein).
Mansidão não é debilidade, mas força suavizada; ela não é a atitude medíocre daqueles que se sentem anulados pela presença violenta do outro. É força que não provém da violência externa, mas de uma transformação interna. Por isso, o manso pode realizar ações impossíveis a quem é violento e sentir-se bem-aventurado e feliz, uma vez que tem esperança de conquistar o coração dos outros e se encontra entre os que herdarão a “terra prometida” do coração de Deus.
A mansidão cristã, reflexo daquela de Jesus, é plena de força. Suavidade e força que recorda o modo “suave-forte” divino de agir. Trata-se daquela harmonia conquistada pelo ser humano que alcançou seu centro mais profundo e ali encontra o dom da liberdade. A mansidão é o estado interior a ser alcançado pelos corações dos homens e mulheres livres.
Nessa ótica, de fato, quando perdemos a mansidão, vemos nossa liberdade diminuída. Entramos na lógica do revide e a emoção indomada preside nossas ações.

Vivemos em um mundo onde imperam a prepotência, a agressividade, a vingança, o ataque e o desafio preventivo, o amedrontamento, a extorsão e a imposição violenta como meios habituais para conseguir os fins que se pretendem. Esta mesma estratégia de morte é utilizada em diferentes ambientes, tanto civis como religiosos, políticos como econômicos, entre pessoas e entre grupos ou nações.
Com isso, a vida e as relações se convertem num campo de batalha contínua, como se fosse uma manada de lobos disputando o cordeiro.
Como seguidores (as) d’Aquele que é o humilde artífice da paz, testemunhamos e profetizamos que a mansidão é o verdadeiro rosto da Igreja.
Não é por acaso que muitas pessoas que lutaram em favor da justiça, pagando com a própria vida, tenham essa característica comum: a mansidão (Gandhi, Luther King, Dom Romero...). São descritos como indivíduos mansos e humildes, amáveis e de agir discreto, abertos ao diálogo e à acolhida do outro, pacientes e simples. E, exatamente por isso, dotados de uma força diferente e, sobretudo, muito eficaz.
Bem-aventurados os humildes e os mansos! Graças a eles o mal, na terra, pode se transformar em bem!.


Texto bíblico:  Mt 11,25-30

Na oração:
De onde brotam a mansidão e a humildade? Como ativá-las e fazê-las crescer? Ninguém pode improvisá-las. A raiz última da mansidão-humildade é contemplativa. Nasce em um clima de oração, numa proximidade íntima que faz o nosso coração pulsar no mesmo movimento do Coração compassivo de Deus. Desse encontro, de coração a Coração, emergem das profundezas de nosso ser estes dinamismos mais humanos e mais divinos. A partir da fonte original, a mansidão e a humildade vão se expandindo na direção dos outros, alimentando novas relações, acolhendo o diferente, vibrando com o bem presente no outro...
- No ritmo de sua vida, o que mais se faz visível: mansidão e humildade? Ego inflado e soberba? Agradecimento assombrado ou ingratidão venenosa? Suavidade divina ou prepotência que petrifica?...