sábado, 29 de fevereiro de 2020

Deserto, Lugar do Discernimento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 1º Domingo do Tempo da Quaresma. Uma santa Travessia Quaresmal a todos(as).


“O Espírito conduziu Jesus ao deserto...” (Mt 4,1)

Na experiência do batismo, Jesus escutou a voz do Pai. Trata-se do principal momento teofânico de sua vida, juntamente com a transfiguração. Mateus se serve deles para proclamar que a identidade de Jesus consiste em ser o Filho amado do Pai. Essa é sua identidade e nela se revela que seu “código genético” consiste em ser o Filho, o Amado, o Predileto..., sobre quem se visibiliza a complacência do Pai.
Agora podemos compreender sua ida ao deserto, movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar”, no silêncio e na solidão, essa revelação, de alargar espaço, em sua interioridade, para o deslumbramento e o assombro.
O significado do deserto não é prioritariamente o penitencial. “Levá-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração”, tinha dito Oséias (2,16), convertendo o deserto em um lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra. Jesus é conduzido ao deserto para acolher a Palavra escutada em seu coração no momento de seu batismo. Ele precisava de tempo para assentar no mais profundo de seu ser uma Palavra que o descentrasse para sempre de si mesmo e o situasse à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.

O evangelista Mateus apresenta a estadia de Jesus no deserto como um tempo de lucidez, fazendo-nos perceber que a relação filial da qual Ele tinha tomado consciência, iluminou de tal maneira sua visão, que se tornara impossível confundir a Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um deus em busca de um mágico e não de um Filho; um “deus” contaminado das vazias pretensões do pior da condição humana: ter, brilhar, ostentar poder, exercer domínio...
O que parece claro é que Jesus buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração e em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho; Ele teve de refletir e discernir sobre o modo como assumiria sua missão em sua vida pública.
Ora, essa missão comportava, de fato, não só um fim que havia de realizar (a salvação e a libertação total da humanidade) senão, também, um meio, ou seja, um caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim. E esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por eles.
Não podemos esquecer que o tentador não propõe a Jesus que se afastasse de seu fim, ou seja, de seu projeto messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...”), senão que, na realidade, o que ele faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados para realizar a implantação do Reino do Pai.
Como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra do Pai? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade com os mais excluídos?

Na cena das tentações, vemos Jesus reagindo do mesmo modo como fez ao longo de toda sua vida: centrado e em sintonia afetiva com tudo aquilo que Ele vai descobrindo como o querer de seu Pai: a vida abundante daqueles que veio buscar e salvar. Ele não veio para preocupar-se de seu próprio pão, mas de preparar uma mesa na qual todos pudessem se sentar para comer; Ele não veio para que os anjos o carregassem sobre as asas, para angariar fama e “ter um nome”, mas para dar a conhecer o nome do Pai e carregar sobre seus ombros todos os perdidos, como um pastor carrega a ovelha extraviada. Não veio para possuir, dominar ou ser o centro, mas para servir e dar a vida.
O que livra Jesus de cair nos enganos do tentador é sua ex-centricidade, sua referência ao Pai e à sua Palavra, e, a partir desse Centro, receberá o impulso para abandonar o deserto e se deixar conduzir pela corrente de Vida, alimentada pelo Espírito. A partir desse momento, vê-lo-emos caminhando pela Galileia, entrando em relação com o mundo dos pobres e excluídos, anunciando o Reino, criando uma nova comunidade de vida, buscando colaboradores, aproximando-se das pessoas, entrando nas casas, acolhendo, curando, ensinando, abrindo um horizonte de sentido para a vida das pessoas...

A passagem evangélica das tentações também nos inspira a encontrar com o mesmo Deus a quem Jesus conheceu no deserto: um Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente alimentar nossa confiança n’Ele e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige sua Palavra, não para nos impor obrigações ou para apontar nossas fragilidades, mas para nos alimentar e nos fazer crescer; um Deus que não é encontrado nos lugares carregados de prepotência, de poder, de vaidade e consumismo, mas nos lugares do despojamento e da simplicidade de vida, nos lugares dos “descartados” e excluídos.
Muitas vezes pensamos que Deus é um “estraga-prazeres”, ou um Deus triste que não quer que vivamos prazerosamente. E, então, temos a sensação que as tentações são essas coisas fascinantes que nos seduzem, mas que temos de renunciá-las em nome de uma suposta “perfeição”. Porém, Deus não é Aquele que complica nossa vida com leis, sacrifícios, renúncias... Ele quer que vivamos e, de maneira intensa.
Para cruzar os desertos da vida é preciso ativar uma atitude de esvaziamento de tudo aquilo que é “peso morto” para chegar ao mais profundo e verdadeiro de nosso ser. O deserto nos revela de onde viemos e para onde vamos; ele nos remete inteiramente ao Doador da vida e desperta outros recursos vitais, aninhados em nosso interior.
Tudo o mais é pouco para a sede do coração. “Só Deus basta”, nos sussurra o deserto.

Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito permanente que pode travar nossa existência por dentro.
Por um lado, sentimos o apelo e o impulso para o bem, para a liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por outro, sentimos também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
As tentações sempre estão diante de nós, como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro.  São dinamismos que bloqueiam o fluxo da vida, impedindo-a de se expandir e de se colocar a serviço de outras vidas.
Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode também ser encontrado em nosso interior.
Quem é conduzido pelo Espírito, é capaz de acessar à própria interioridade e não se deixa enredar pelos estímulos externos nem pelos impulsos egóicos.

Diante das tentações do poder, do ter e do prestígio, o(a) seguidor(a) de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo. E a Campanha da Fraternidade nos motiva a fazer da vida um grande dom e um profundo compromisso.
Só quem se deixa conduzir pelo Espírito, como Jesus, consegue romper com tudo aquilo que atrofia a vida; só assim consegue fazer o salto libertador
Trata-se de ser dócil para deixar-se conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entende e não sabe. É Ele que ativa o que há de melhor em si mesmo, expandindo sua vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Na realidade, só existe uma “grande tentação” para os cristãos: a tentação radical da infidelidade a Cristo e a seu Reino. É a tentação de traçar para si mesmo um caminho, isto é, de projetar uma vida para si, dando uma direção diferente daquela que lhe deu o próprio Deus. Esta é a maneira de trair o melhor de si mesmo, de renunciar ao que há de melhor em si mesmo. Tentação essa que significa o fracasso da própria vida.


Texto bíblico: Mt 4,1-11

Na oração:
Diante de “Jesus tentado”, recorde experiências pessoais de tentação: quais são aquelas que mais lhe afetam e lhe seduzem? Como você procede para não se deixar conduzir e nem se determinar por elas?
- Recorde dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da experiência do deserto. 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

QUARESMA: Cinzas que dão vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Quarta-feira de Cinzas, que inicia o Tempo Litúrgico da Quaresma.


“E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (Mt 6,4)

Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2020, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar.
Quaresma pode ser escola de vida para o restante do ano; é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”... O dinamismo do seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração. O seguimento proporciona vigor inesgotável, a vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão....
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré.
Distanciar-se da vida superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida: aqui está o sentido do “percurso quaresmal”

Em sintonia com toda as comunidades cristãs somos chamados a viver o “tempo quaresmal” sempre de maneira nova e inspiradora. O centro de nossa vida é Jesus Cristo, sua pessoa, sua mensagem, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu seguimento é sempre rico e surpreendente. Muitas vezes, corremos o risco de viver o tempo litúrgico da Quaresma como uma celebração rotineira, algo já conhecido.
Contemplando Jesus Cristo, descobrimos também quem somos nós. Ele nos interpela: que queremos fazer de nossa vida? Como queremos viver? Para quê e para quem vivemos?...
Nesse sentido, através da Campanha da Fraternidade, a Igreja no Brasil nos motiva a viver a Quaresma como um tempo privilegiado para dar um novo sentido à nossa vida. Através do tema “Vida, dom e Missão” e do lema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”, somos movidos a desatar todas as ricas possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
A imagem de Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida. A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de re-construção de nós mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais partilha, mais solidariedade...).

O Evangelho da 4ª. feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de viver e de proceder de Jesus.
São três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã e apresentam-se como uma alternativa privilegiada para viver com mais intensidade.
A vida é um abrir-se aos demais (esmola), sintonizar-se com o coração de Deus (oração) e colocar ordem na própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam.
Sintonizados com o lema da CF – “viu, sentiu compaixão e cuidou dele”a Quaresma é também um tempo privilegiado para re-educar a olhar: superar o olhar possessivo, interesseiro, frio... e entrar em sintonia com o modo de olhar de Jesus, ou seja, olhar carregado de admiração, compaixão, calor humano... Este tempo litúrgico nos move a fixar o olhar naquilo que vivemos, a contemplar tudo o que compõe nossa existência, para dar um novo sentido e significado.
Como o bom samaritano, precisamos re-aprender a olhar, para nos deixar impactar pela situação dos outros, sobretudo dos mais carentes e excluídos. Nesse sentido, as três práticas quaresmais – “jejum, oração e esmola” – implicam também uma conversão do olhar, para captar o mistério da vida que nos envolve e nos aproximar d’Aquele que é Fonte da Vida.

A liturgia quaresmal nos propõe o jejum; aqui, a novidade não está tanto em reduzir o que comemos, o que ingerimos de uma maneira quase mecânica. O jejum também tem a ver com o sentido da visão: olhar a nós mesmos, fixar a atenção naquilo que nos alimenta, ativar a prática de nos olharmos com mais compaixão; talvez, afastar de nós aquele olhar que nos destrói por dentro, que nos causa dano, que bloqueia a expressão de nossa verdadeira identidade.
O olhar é o reflexo de nossa interioridade; ele tem um grande poder porque deixa transparecer o que acontece e o que sentimos por dentro.

A outra prática quaresmal proposta é a esmola; dar o que temos, não o que nos sobra; aqui significa compartilhar um olhar novo, que eleva o outro, que consegue perceber nele um tesouro escondido, olhar humanizante e humanizador; tem a ver com o presentear ao outro um olhar de consolo, de acolhida, de cui-dado, de sorriso...; acostumamos a “ver” as coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai se estreitando e tudo se torna rotina.
É salvífico ativar o olhar mais expansivo e contemplativo, um olhar que nos faz sair de nós mesmos, conduzindo-nos à admiração e ao encantamento diante do dom maravilhoso da vida, em suas múltiplas expressões. Olhar que desperta a gratidão e o louvor. Um olhar que deixa transparecer, neste tempo propício, que a Vida com maiúscula é possível.

E, finalmente, a prática quaresmal por excelência: a oração. Deixemos retumbar dentro de nós a pergunta: “a partir de onde você olha?” A liturgia nos pede, neste tempo litúrgico, que sejamos capazes de olhar a partir de Deus; que fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capazes de olhar-nos com mais bondade, de olhar os outros com mais carinho, de olhar a criação com mais admiração. Só assim teremos olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
Quaresma é um tempo para nos deixar olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão e aprender a olhar como Deus olha, porque um olhar Seu, bastará para nos fazer “converter e crer no evangelho”.
“Um olhar contemplativo percebe sinais de evangelho nos acontecimentos mais simples” (Ir. Roger).

Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e a nos deslocar em outra direção. Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...


Texto bíblico:  Mt 6,1-6.16-18

Na oração:
- Torne o seu coração vulnerável ao olhar do Pai, receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
- Evangelizar o olhar: aprender a olhar como Jesus, ultrapassando as aparências.
- Como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O Labirinto do Perfeccionismo

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 7º Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48)

O evangelho deste domingo é continuação do discurso de Jesus sobre o Monte, onde apresenta o modo original de ser e de viver dos seus seguidores; trata-se da nova justiça do Reino, onde Jesus vai até às raízes mais profundas de nosso ser para ativar o amor ali presente; este amor, aberto, oblativo, gratuito..., é capaz de uma nova relação até com os inimigos, em profunda sintonia com o modo de agir do Pai, que ama a todos, bons e maus, pois todos são seus filhos e filhas.
Mas, quando Jesus fala em amar os inimigos, não se refere somente àqueles inimigos externos.
Suas palavras se referem também a um acontecimento interior. Quando o inimigo é uma força externa nem sempre há motivos para assumirmos a culpa. Mas quando o inimigo se encontra no nosso interior e nós não conseguimos entrar em acordo com ele, os responsáveis somos nós mesmos; precisamos saber lidar com nossas sombras e fragilidades e, assim, reconciliar-nos com o inimigo interno que rejeitamos.

Reconciliar-nos com nossas fraquezas e nossos lados sombrios é um processo doloroso, mas, quando tentamos evitar essa dor e ignoramos o nosso adversário interior, acabamos gastando muita energia na ilusão de mantê-lo afastado.
Se não chegarmos a um acordo com o inimigo em nosso interior, ele se transformará em um tirano que nos dominará; aquilo que rejeitamos em nós se transforma em juiz interior e esse nos manterá confinados na prisão do nosso próprio medo e da auto-rejeição.
A cura significa também reconciliação; nosso inimigo interior só se transformará em nosso amigo e ajudante no nosso caminho de vida se nos reconciliarmos com ele.
Ao oferecer-nos um gesto de perdão em vez de um gesto de repulsão ou de condenação, tornamo-nos mais humanos.  Demonstramo-nos humanos com quem mais precisa de humanidade: nós mesmos.
É o momento da compaixão para conosco mesmo.

Diante da necessidade de reconciliação com nossas sombras, limites, fragilidades e fracassos..., pode parecer estranho a afirmação final, no evangelho de hoje: “Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.
Lucas, no entanto, modifica as palavras de Jesus para escrever: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso”. Sem dúvida, esta expressão parece mais ajustada, inclusive por todo o contexto. E tem razão, porque não se pode exigir que o ser humano seja “perfeito”; não só não está ao seu alcance, mas essa demanda pode conduzi-lo a um perfeccionismo estéril e esgotador.
Foi assim que, ao longo da história, surgiu uma cultura da perfeição; por séculos, a perfeição seduziu, modelou, dominou e controlou a existência de comunidades e sociedades inteiras.
A nossa cultura é controlada pela ideia de que o ser humano pode e deve ser “perfeito”.
Desde a nossa infância fomos impelidos a procurar a perfeição.
Anos e anos, essa ideia de “perfeição” foi modelando nossa mente e petrificando nosso coração.
Também na vida cristã, inúmeras pessoas e grupos religiosos nasceram e cresceram seguindo as pautas de formação do chamado “ideal de perfeição”, gerando muita rigidez, moralismos, culpabilidades, escrúpulos... e farisaísmo. O seguimento da pessoa de Jesus foi se esvaziando, dando lugar a um voluntarismo centrado na prática minuciosa de leis e normas (legalismo).

Esse conceito assumiu um valor central na compreensão e na orientação da nossa vida espiritual, reforçando-se a ideia de que tudo aquilo que diz respeito a Deus deve ser perfeito.

E a santidade passou a ser considerada como sinônimo de perfeição.

No entanto, transitar pelo labirinto da perfeição é desumano. Caminhar por ele é uma luta árdua e solitária, pois torna-se difícil pedir ajuda e arriscar-se a que as próprias imperfeições sejam expostas aos outros.
A expressão “atingir a perfeição” revela-se uma imprudência. A procura da perfeição não ajuda a pessoa a viver, a amar, a sonhar, a sorrir, a perdoar, a ser feliz...
Nas suas formas mais graves, a busca da perfeição é estressante, conduz ao desprezo de si mesmo, torna insuportável a relação com os outros e pode conduzir à auto-mutilação.
Quem tem sua vida centrada na busca da perfeição, aceitar o erro é uma tarefa muito humilhante e dificultosa. Longe de ser uma oportunidade, o fato de equivocar-se representa uma ameaça à sua dignidade. Para ele não basta ser bom, é preciso ser perfeito. E, embora, no segredo mais íntimo aceita que jamais será perfeito, pelo menos tenta aparentar isso diante dos outros. Este modo de proceder tem um nome – perfeccionismo – e são muitos os que caminham por seu labirinto.
Isso não é vida. Queremos habitar e transitar por lugares onde a compaixão e o cuidado possam abraçar nossas fragilidades e limites. Devemos passar de um humanismo da “auto-exaltação” para um humanismo da “auto-acolhida”.
A compaixão afirma o “eu real” contra as pretensões do “eu ideal”.
A compaixão orienta-nos para a realidade profunda da nossa fragilidade; na compaixão alcançamos a nós mesmos; a compaixão nos leva de volta à casa, revestindo-nos de uma atitude amorosa para conosco.
O tecido da vida cotidiana nos oferece muitas ocasiões para esta prática de bondade para conosco.
E a compaixão faz parte da essência de nosso ser. É a mais humana de todas as virtudes humanas. É ela que nos oferece inúmeras ocasiões para tratar-nos como amigos, em vez de nos tratar como estranhos.
Graças à compaixão, podemos nos levantar depois de cada queda, abrir-nos novamente à presença da Graça de Deus, continuar a amar tudo aquilo que dentro e fora do nosso ser se apresenta sob as vestes do humano. Deste modo, realizamos uma orientação sadia no fundo do nosso ser.
Assim, o discípulo de Jesus deve ser perfeito no Amor como o Pai celestial é perfeito no Amor. Ele ama a todos sem distinção, “fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre maus e bons, justos e injustos”.

Neste sentido, o chamado do Evangelho a ser “perfeitos como o Pai” está em um contexto do amor incondicional e envolvente de Deus, um amor que faz com que o sol se levante para as pessoas más e boas, e que permite que a chuva caia sobre justos e pecadores. Em outras palavras, a perfeição cristã é o convite a um amor que nunca se esgota; é o convite para aprender a perdoar como Deus perdoa e a amar como Deus ama.
Alguns exegetas interpretam que, em hebraico, a expressão “perfeito” faz alusão a algo “completo”. Nesse sentido, o apelo a ser “perfeitos” deve ser entendido como um chamado a aceitar-se em toda a sua verdade. Este sentido seria totalmente aceito a partir de uma antropologia humanista, como um princípio básico de unificação e crescimento: “aceita-te com toda tua verdade, com tua luz e tua sombra, teus acertos e erros, tuas qualidades e defeitos...!”
Somos chamados a ser “completos”, aceitando nossa verdade e abrindo-nos à nossa verdadeira identidade que transcende nosso ego; só assim poderemos viver a misericórdia ou compaixão.



Textos bíblicos:   Mt 5,38-48

Na oração:
A aceitação do limite nos ajuda a celebrar a vida em todas as circunstâncias e a saborear a realidade, cheia de riscos, incerta e insegura para todos, mas, ao mesmo tempo, única e irrepetível para sempre.
Longe da tirania do perfeccionismo, saberemos conviver com a rica pobreza de nossa condição humana; é a calma e o silêncio da oração que irão nos libertar da banalidade e do perfeccionismo, fazendo-nos reconciliar com as fragilidades, próprias e alheias.
- Sua vida é regida pela “pauta da perfeição” ou da “misericórdia”?

domingo, 16 de fevereiro de 2020

JUSTIÇA DO REINO: “a mais sublime bondade”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 6º Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus...” (Mt 5,20)

Na Bíblia, a justiça é um dos conceitos centrais, com uma diversidade de sentidos e, por isso mesmo, difícil de ser definido. Em todo caso, trata-se de um conceito que inclui “relação”.
Nas “antíteses” – “ouvistes o que foi dito..., eu, porém, vos digo” – do Sermão da Montanha, somos colocados diante de cinco casos concretos que tem a ver com a vida relacional e comunitária: a reconciliação, o olhar puro que não se apossa de outra pessoa, a veracidade e transparência no falar, a não violência (ou mansidão bíblica) e o amor gratuito que inclui o “inimigo”.
Em todos eles, podemos crescer sempre mais, graças à compreensão de quem somos no nível mais profundo; o “eu, porém, vos digo” de Jesus nos inspira a descer até às raízes de nosso ser, esvaziando-nos progressivamente de nosso ego e ativando todos os recursos humanizadores aí presentes.

Na perspectiva bíblica, “justo” é aquele que, perante Deus e os homens, se “ajusta” ao modo de agir do mesmo Deus, vivendo e agindo com a marca da bondade.
Visto que justiça designa o comportamento do ser humano em conformidade com a Vontade de Deus, pode-se falar de “praticar a justiça”; ou de “cumprir toda a justiça”.
Portanto, a expressão “justiça de Deus” não tem nenhuma relação com o julgamento de Deus; ela é, antes de tudo, misericórdia e fidelidade a uma vontade de salvação. O conceito descreve uma maneira de ser ou de agir de Deus. Deus é justo porque é bondade e misericórdia. Por isso, também do lado humano a justiça deve significar uma maneira de prolongar o ser e o agir de Deus.
O problema da relação entre misericórdia e justiça está em considerar como rivais ou como incompatíveis esses dois atributos de Deus. É preciso afirmar os dois ao mesmo tempo e procurar compreender como ambos estão em Deus, sem que um anule o outro, mas reforçando-se mutuamente. Poderíamos formular assim: Deus é justo em sua misericórdia e misericordioso em sua justiça. Segundo o Papa Francisco, “a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos que dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus”.
Já no Primeiro Testamento encontramos afirmações deste tipo: a justiça de Deus é sua misericórdia. A justiça de Deus coincide com sua misericórdia, sua bondade, sua santidade. São Paulo, em sua carta aos romanos, afirma que a justiça de Deus se manifesta na justificação do pecador, de modo que o Deus justo é justificador. Podemos concluir, pois, que Deus é justo porque quer que todos se salvem. É de esperar, portanto, que esta vontade de Deus se cumpra. É claro que, diante do dom da salvação intervém a liberdade humana, porque salvação é acolhida do Deus que é Amor, e não há amor sem recíproca acolhida.

Jesus veio expandir o horizonte do comportamento humano; veio nos libertar dos perigos do moralismo e do legalismo. À luz da justiça de Deus (“força que salva”), Jesus nos apresenta um modo de proceder mais radical, relendo os mandamentos.
A justiça de Deus não é poder que se impõe, mas amor aberto e libertador, a partir dos últimos e dos excluídos da humanidade. A liberdade criadora de Deus, que é amor aos pobres, se torna princípio de justiça, pois o evangelho chama “justos” precisamente aqueles que acolhem os exilados, visitam os encarcerados, dá pão a quem tem fome..., ou seja, àqueles que colocam suas vidas a serviço dos excluídos e vítimas das instituições sociais e econômicas injustas.

O único fundamento de qualquer justiça é Cristo. N’Ele nós nos tornamos justiça de Deus (2Cor 5,21).
A partir desta perspectiva, podemos entender o que Jesus fez em seu tempo com a Lei de Moisés. Disse que não vinha abolir a lei, mas plenificá-la, porque foi acusado pelas autoridades religiosas de ser um transgressor das leis. Jesus não foi contra a Lei, senão que foi mais além da Lei. Quis dizer que toda lei é sempre limitada, que sempre podemos ir mais além da letra da lei, da pura formulação, até descobrir o espírito que a inspira. A vontade de Deus está mais além de qualquer formulação, por isso, não podemos nos limitar ao que está escrito, mas precisamos sempre dar um passo a mais. Na vivência do amor, que emana do nosso eu mais profundo, devemos ser sempre mais radicais, não cedendo diante da mínima manifestação do nosso auto-centramento. Na realidade, quem ama, não precisa de leis. Segundo S. Paulo, “quem ama, cumpre toda lei”.
Jesus passou de um cumprimento externo de leis a uma descoberta das exigências de seu próprio ser. Esta revolução que Ele iniciou, ainda está por ser realizada. Avançamos muito pouco nessa direção. Todas as indicações do evangelho no sentido de viver no espírito e não na letra, parece que estão sendo ignoradas. Caímos facilmente no legalismo, no farisaísmo que se perde em meio a um emaranhado de leis, desviando-se do essencial, que é a vivência do amor oblativo, gratuito, expansivo...

“Ouvistes o que foi dito: não matarás, não cometerás adultério, não jurarás falso; eu, porém, vos digo...” Não fica abolido o mandamento antigo, mas elevado a níveis incrivelmente mais profundos. Jesus nos revela que uma atitude interna negativa é já uma falha contra nosso próprio ser, ainda que não se manifeste numa ação concreta contra o outro.
Por isso, segundo Jesus, não basta cumprir a Lei, que ordena “não matarás”. É necessário, além disso, arrancar de nossa vida a agressividade, o desprezo ao outro, os insultos ou as vinganças. Aquele que não mata cumpre a Lei, mas, se em seu coração há resquícios de violências, ali não reina o Deus que busca construir conosco uma vida mais humana.
Estamos percebendo que está se estendendo cada vez mais, na sociedade atual, uma linguagem que reflete o crescimento da agressividade, do preconceito, da intolerância, do fechamento diante de quem pensa e sente de maneira diferente... Cada vez são mais frequentes os insultos ofensivos, proferidos só para humilhar, desprezar e ferir. Palavras nascida da rejeição, do ressentimento, do ódio ou da vingança...
Por outra parte, as conversações (sobretudo nas redes sociais) estão tecidas de palavras injustas que espalham condenações e semeiam suspeitas (fake-news). Palavras ditas sem amor e sem respeito que envenenam a convivência, causam danos e rompem as relações entre as pessoas.

Portanto, os mandamentos continuam tendo sentido. São um mapa de rota, uma proposta, um chamado para entender a vida. A chave é compreendê-los e vivê-los, não a partir do medo ao fracasso e ao castigo, mas a partir da disposição de crescer humanamente na relação com os outros. Quê nos ensinam eles sobre o ser humano, sobre as relações sociais e sobre nós mesmos? Quê caminho nos propõem para a vida? Quê horizonte nos mostram?
É necessário dirigir nosso olhar a Jesus para que, na comunidade cristã, a instituição não seja mais importante que o Evangelho, nem que a Lei seja mais importante que a misericórdia. O Plano de Deus e a fé cristã são muito mais que uma adesão doutrinal, é humanizar-se para amar. “O cristianismo não é uma ética de mínimos de justiça, mas uma religião de máximos de felicidade. Os mínimos de justiça lhe parecem irrenunciáveis, mas tais mínimos não esgotam o conteúdo da religião cristã. Suas propostas não competem com a ética cívica, senão que a complementam. Enquanto que a universalidade dos mínimos de justiça é uma universalidade exigível, a dos máximos de felicidade é uma universalidade ofertável” (Adelia Cortina). A justiça do Evangelho, centrado no amor, é um plus sobre a justiça humana, centrada na lei.

Texto bíblico: Mt 5,17-37

Na oração:  O empenho em favor da justiça não terá fim. Numa releitura da 4ª bem-aventurança podemos afirmar:
“Felizes os famintos de justiça, que nunca serão saciados”.
- Frente às pessoas que pensam e sentem de maneira diferente, o que prevalece em você, o peso da lei ou a força da misericórdia?
- Como você vive o quinto mandamento -“não matar” - no uso das redes sociais?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Ilumina teu andar com a LUZ que há em ti mesmo

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 5º Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14)

O evangelho deste domingo é continuação das bem-aventuranças; estamos no início do primeiro discurso de Jesus, conhecido como “Sermão da Montanha”. É, portanto, um texto ao qual Mateus quer dar suma importância. As duas imagens, luz e sal, tem forte impacto na vida do(a) seguidor(a) de Jesus, pois sua presença no mundo deveria fazer a diferença: iluminar e dar sabor.
A mensagem de hoje é muito simples e de grande valor; efetivamente, todo(a) aquele(a) que alcançou a iluminação, ilumina. Se uma vela está acesa, necessariamente tem de iluminar. Se colocamos sal no alimento, este necessariamente ficará temperado. O encontro com Aquele que é a Luz ativa a luz, talvez atrofiada, em nosso interior.
Quanto mais luz emergir de dentro, mais brilhante será o mundo em que vivemos.
Sabemos que a luz, por si mesma, é contagiosa e expansiva; em oposição às trevas, a luz exalta o que belo e bom, na realidade e nas pessoas. Pelo fato de ser benfazeja e criadora, ela nos permite dizer com o poeta Thiago de Mello, no meio de impasses, ameaças e conflitos que pesam sobre nossa vida: “Faz escuro, mas eu canto”.

Mas, quê queremos dizer quando aplicamos a uma pessoa humana o conceito de iluminada?
Todos os grandes líderes espirituais falam de iluminação. Não é fácil entender o que isso significa. Na realidade, só pode compreender isso quem faz a experiência de estar iluminado.
Quando as tradições religiosas falam de iluminação, elas se referem a uma pessoa que despertou, ou seja, que ativou todas as suas possibilidades de ser humano. Estamos, então, falando de uma pessoa plenamente humana: aquela que vive uma interioridade iluminada.
Isto é precisamente o que está nos dizendo o evangelho de hoje. Dá por suposto que o caminho do seguimento de Jesus é um “caminho de humanização”, é uma experiência de iluminação; os discípulos, na convivência com o Iluminado, são despertados, mobilizam seus recursos iluminantes e tornam-se também iluminados; como consequência, são capazes de expandir suas luzes e mobilizar a luz escondida nos outros. É inútil tentar iluminar os outros, estando apagados, adormecidos, paralisados em sua obscura vida.

Devemos ter cuidado de iluminar, não deslumbrar. Como é sedutor estar no candeeiro! Há muitos que anseiam estar no candeeiro, mas não tem luz. Não se trata de “subir” ao candeeiro, mas possibilitar que a luz interior ilumine a partir dele.
O candeeiro não é para que os outros nos vejam; é para que a luz de nossas vidas ilumine melhor. O candeeiro não é para que estejamos mais alto, e sim, para que a luz interior se espalhe mais e desperte a “faísca de luz”, presente no coração dos outros. “Estar no candeeiro” significa estar a serviço do outro, pensando no bem dele e não em nossa vaidade; devemos oferecer o que o outro espera e necessita, não o que nós queremos lhe oferecer.
Muitas vezes, nós cristãos somos mais afeiçoados a deslumbrar que a iluminar; temos a tendência a ser presença iluminante desde que com isso se potencie nosso “ego”. Porque o ego necessita fazer-se notar e brilhar; não está disposto a consumir-se nem a passar desapercebido.
Cegamos as pessoas com imposições excessivas e tornamos inútil a mensagem de Jesus para iluminar a vida real de cada dia. Quando tiramos alguém de sua obscuridade, devemos dosificar a luz para não causar dano a seus olhos.

O sal é um dos minerais mais simples (cloreto de sódio), mas também é um dos mais imprescindíveis para nossa alimentação. Mas tem muitas outras virtudes que podem nos ajudar a entender o relato deste domingo. No tempo de Jesus, eram usados blocos de sal para revestir por dentro os fornos de pão. Com isso, conseguia-se conservar o calor para o cozimento do pão. Este sal, com o tempo, perdia sua capacidade térmica e devia ser substituído. Os restos das placas retiradas eram utilizadas para compactar a terra dos caminhos.
Agora podemos compreender a frase do evangelho: “se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens”.
O sal não se torna insosso; o sal dos fornos sim, pode perder a qualidade de conservar o calor.
A expressão latina “evanuerit” significa desvirtuar-se, desvanecer-se. A tradução melhor seria assim: se o sal perde sua qualidade, como poderá recuperar-se. Esse sal “queimado” só serve para ser jogado nos caminhos e ser pisado pelas pessoas.

Há um aspecto no qual sal e luz coincidem: não tem utilidade por si mesmos. Se o sal permanece isolado em um recipiente, não serve para nada; só quando entra em contato e se dissolve nos alimentos pode dar sabor ao que comemos; para salgar, o sal precisa desfazer-se, deixar de ser o que era.
Segundo os entendidos na arte culinária, não é o sal de “dá sabor”; ele realça o sabor de cada alimento. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos.
O mesmo acontece com a luz; se ela permanece fechada e oculta, não pode iluminar ninguém. Só quando está em meio às trevas pode iluminar e orientar. A luz não é para ser vista, caso contrário, cega. A lâmpada ou a vela produz luz, mas o azeite ou a cera se consomem. Imagens que revelam que nossa existência só terá sentido na medido em que nos consumimos em benefício dos outros. Uma comunidade cristã isolada do mundo não pode ser sal e nem luz.
Ser sal e luz do mundo nos move a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar outros relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar a partir de um horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e deixar-nos impactar pelos valores presentes no outro. Escutar de tal maneira que o que ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos e diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração.

Ser sal e luz é dizer sim à vida. Experimentamos isso quando nos submergimos na vida, quando crescemos nela, buscando, saboreando até o final o que ela nos oferece em cada circunstância. Nunca alheios à vida, nada desprezando, nada lamentando.
Ser sal e luz não é um programa. É uma experiência de vida, um modo de estar no mundo a partir da confiança numa promessa. Enraizados na pessoa e promessa de Jesus, o chamado a ser sal e luz nos propõe um estilo próprio de vida aberto e expansivo: uma maneira alegre, pacífica, compassiva, responsável e generosa de se fazer presente neste mundo onde são centrais o cuidado de todo o vivente e o trabalho em favor da justiça.
O apelo de Jesus nos move a transformar o que, com frequência, é terra insípida ou deserto inóspito em um mundo mais humano, com sabor de lar humanizador.


Texto bíblico:  Mt 5,13-16

Na oração:
“Deus é Luz, e n’Ele não há treva alguma” (1Jo 1,5).
É preciso buscar esta faísca de luz dentro de nós, no nosso eu mais profundo. Talvez por isto alguém escreveu: no ser humano há mais coisas dignas de admiração que de desprezo.
- Sua relação com os outros: deixa transparecer a luz da compaixão, da acolhida ao diferente, do cuidado...?
- Qual é o sabor que sua presença revela na realidade onde você vive? Faz diferença? Inspira?...