sexta-feira, 27 de agosto de 2021

O peso de uma “religiosidade estéril”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 22º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7,6) 

O evangelho deste domingo seleciona só alguns versículos do cap. 7 de Marcos, carta magna da liberdade cristã, no plano da refeição e do amor (relações humanas). Que todos tenham direito à alimentação e se amem, com todo o coração. Trata-se, pois, de educar e sanar o coração, não através de mais leis, mas através de mais liberdade e verdade de amor.

Neste sentido, o relato de hoje nos situa no centro da dinâmica cristã, no lugar onde o(a) seguidor(a) de Jesus, muitas vezes centrado(a) na lei, a partir de seu interior se abre (por impulso da memória de Jesus) à grande liberdade cristã na refeição e no amor.

De fato, para muitos, sua relação com Deus se reduz ao cumprimento de algumas práticas religiosas, à participação em alguns ritos e festas, segundo as normas e tradições estabelecidas por sua própria religião. O ensinamento de Jesus liberta de muitas obrigações e orienta ao culto verdadeiro.

É uma mensagem que nos livra de tantas ataduras e ritualismos, da repetição mecânica de tradições e normas do passado, e orienta à novidade de um culto verdadeiro, a partir do coração.

Marcos ressalta que os fariseus e alguns mestres da lei “se reuniram em torno de Jesus”. Não são pessoas interessadas em conhecê-lo. Como fiéis cumpridores da lei, já haviam percebido o perigo que Jesus representava por suas transgressões em relação ao sistema religioso. Vieram de Jerusalém, o centro do poder religioso, para investigar a conduta do Mestre de Nazaré. Tinham reconhecido as coisas extraordinárias que Ele fazia, e tinham tentado desacreditá-lo frente ao povo, atribuindo seus poderes ao “chefe dos demônios”. Querem criar ao redor de Jesus um cerco de suspeitas e rejeição.

Agora, escribas e fariseus unidos encontram outra transgressão da lei nos discípulos de Jesus: eles comem sem lavar as mãos. Convivendo com Jesus, eles tinham assimilado sua liberdade. Na multiplicação dos pães (relato anterior), Jesus ofereceu pão para a vida de todos, sem exigir purificações prévias, porque a pureza e a cura vêm d’Ele. Mas, para a comissão investigadora vinda de Jerusalém, comer sem lavar as mãos não era uma falta menor. Estava em jogo todo um sistema de separação entre o que é puro e o que é impuro.

Há alimentos puros que todos podem comer, e outros impuros, que são proibidos. E as pessoas precisam se purificar antes de comer. Assim ensinaram os antepassados e assim manda a lei. Segundo os encarregados da religião, não se pode relativizar a autoridade sagrada da tradição.

A reação de Jesus é muito dura, e põe em evidência que a relação com Deus não passa através do uso de alimentos puros ou ritos de purificação, de culto formal e vazio. Os escribas e fariseus são a encarnação dos destinatários da denúncia profética de Isaías: “este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. Os responsáveis da instituição criaram, em nome de Deus, um sistema de poder, com ritos que os privilegiavam, obrigações que discriminavam e separavam, e um controle social intolerável. Os pobres não podiam cumprir com todas as normas, e por isso eram considerados “povo maldito”.

Uma consequência muito clara que aparece aqui consiste em que, com muita frequência, na conduta de muitas pessoas há uma enorme distância entre a observância dos ritos sagrados, por uma parte, e a fidelidade à honestidade, à bondade, à justiça... por outra parte.

E aqui nos deparamos com tantas pessoas que são fielmente observantes das leis e ritos religiosos, mas, ao mesmo tempo, são pessoas que são profundamente desumanas na relação com os outros; deixam muito a desejar em sua conduta ética.

Segundo os relatos evangélicos, é visível que Jesus não teve enfrentamentos nem com os romanos, nem com os pecadores, os samaritanos, os estrangeiros, etc... Os conflitos de Jesus surgiram precisamente com os mais fiéis cumpridores da religião: sacerdotes, mestres da lei e fariseus.

Jesus não rejeitou o culto religioso. O que Jesus fez foi deslocar o centro da religião e esse centro não está nem no templo e nem nas suas cerimônias, nem no sagrado e nem em seus rituais.

O centro da experiência religiosa, para Jesus, está em fazer o que fez o mesmo Deus, que sempre “desce” e se aproxima de todos os seus filhos e filhas. Deus está presente em cada ser humano, seja quem for, pense como pense, viva como viva. Só reconhecendo esta realidade surpreendente e vivendo-a, como viveu o próprio Jesus, estaremos no caminho que nos leva ao centro do verdadeiro culto a Deus.

Os líderes religiosos apresentam “mãos limpas” porque não as usam para o serviço aos outros; são “mãos assépticas” porque não se “contaminam” no contato com as pessoas. Eles se mostram incapazes de ver as mãos como mediação para uma nova humanização, reduzindo-as e atrofiando-as devido a seus esquemas

 

religiosos e morais. Suas mãos carregam censuras, traficam destruição, encarnam a falsidade... Suas mãos são temidas porque fecham o futuro, excluem e espalham o medo, pesam porque julgam...

Aqui, no embate com Jesus, eles não fazem nenhuma referência ao anterior evento da “multiplicação dos pães” e nada dizem sobre a refeição de Jesus com a multidão; eles não se preocupam com aqueles que não comem, mas observam a compostura daqueles que comem. Sua visão míope foge do essencial para permanecer no periférico. Desviam a atenção para o terreno de seus domínios, uma moral superficial, descompromissada. Assim, pois, centram sua atenção em alguns dos discípulos para captar uma irregularidade em sua forma de comer, pois eles comem com “mãos impuras”.

Jesus nos coloca a todos diante deste dilema: o que vem em primeiro lugar, os ritos religiosos ou o compromisso com a vida dos mais vulneráveis e excluídos? O mais importante é o ritual religioso ou a experiência humana de encontro, convivência, serviço...?

Para Jesus, o culto verdadeiro a Deus não passa pelas cerimônias pomposas, centradas na exterioridade e aparência, mas pelo coração e pela vida. É uma mensagem que Marcos envia também à sua comunidade.

Jesus insiste, com uma indicação que quer ser universal: “Escutai todos e compreendei”. Todas as coisas são puras. A impureza, o que separa de Deus e dos outros, não vem dos alimentos que são comidos, daquilo que vem de fora e vai ao estômago.

A impureza pode sair só de dentro, do centro da pessoa, do coração do ser humano. Isso impede a relação sadia com Deus, ferindo as relações humanas. O coração do ser humano é capaz do melhor (compaixão, solidariedade, bondade, serviço, amor...) mas, quando petrificado e fechado, é capaz do pior (más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, devassidão, inveja, calúnia, orgulho...). São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações... que impedem a energia vital, a misericórdia de Deus, fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados por nós mesmos e que interceptam a relação com Deus, com os outros e com as criaturas, portanto, com a plenitude da vida, e cortam nossas próprias potencialidades de vida.

Quando falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma conversão radical.

Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23

Na oração:

- Deixe-se conduzir pelo Espírito; graças à sua presença, o caos interior se transformará em cosmos (beleza e harmonia) que se expressará em compaixão, perdão, tolerância, acolhida...

- Seus pensamentos são poluídos? Suas palavras são ácidas? Seus gestos são agressivos? Os entulhos – ódios, julgamentos, inveja, intolerância... – se amontoam em seu interior?

- Permita que o Espírito transite livremente pelos espaços mais sombrios do seu eu profundo, realizando uma verdadeira “ecologia interior”.

- Recolha-se no mais íntimo de si mesmo, mergulhe em seu oceano de mistério e descubra, lá no mais profundo, o Ser Vivo que fundamenta a sua identidade e seu ser verdadeiro.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Cristificar Nossas Palavras

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 21º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63) 

Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que vai se estabelecendo em seu grupo: “As palavras que vos falei são espírito e vida”. Jesus desperta um “espírito novo” naqueles que o seguem; suas palavras tem um peso e ativam vida; são palavras inspiradoras porque brotam do mais profundo do seu coração; são palavras provocativas, que colocam em questão o verdadeiro motivo daqueles que o seguem.

Por isso, elas despertam uma ressonância no interior dos ouvintes e desencadeiam um movimento de ruptura com o antigo, movendo-os a um distanciamento das “palavras domesticadas” pela tradição e pela religião. As palavras de vida pronunciadas por Jesus podem gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.

Um dos maiores dramas de nossa atual cultura é que temos esvaziado as palavras de sentido, e, com frequência, as utilizamos para expressar coisas totalmente diferentes e até opostas ao seu significado original. Chamamos liberdade o que na realidade é arbitrariedade e imposição; felicidade passou a significar consumo e vaidade; a qualidade de vida está ligada à quantidade de coisas; negócio passou a ser grosseira especulação e roubo; ordem estabelecida à dominação e à injustiça; diplomacia ao engano e à mentira; sinceridade à falta de respeito; amor à atração física, ou ao desejo de posse... Uma gravíssima desvalorização da palavra acaba se expressando na desvalorização da ética, da política, da vida.

Há palavras que, de repente, se põem de moda entre nós, expressões felizes que por força da repetição acabam se esvaziando.

Os “comerciantes da morte” mataram as palavras, arrancaram dela o coração e as transformaram em meras máscaras ocas, em sons sem alma, com os quais pretendem nos seduzir, nos enganar e nos manipular. Não há pior escravidão que a mentira; ela oprime, tortura, impede sair de si mesmo para viver uma comunicação sadia com quem pensa, sente e ama diferente. Não há nada mais desprezível que a eloquência de uma pessoa que não diz a verdade. É preciso libertar a consciência dizendo sempre a verdade. É preferível perturbar com a verdade que agradar com adulações.

Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.

Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.

Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco.

Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, Whatsapp, internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos de profundidade.

Se, segundo o Gênesis, Deus fala e com sua Palavra cria, as palavras nos fazem sentir como “deuses”: com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, expressar amor ou ódio, elevar o outro ou afundá-lo...

Há palavras que são golpes, bofetadas; e palavras que são carícias, estímulos, abraços. Com as palavras podemos criar ou destruir, dar vida ou matar. A palavra pode se converter em insulto e condenação, mas também em canção ou poema que cultiva a sensibilidade e nos abre à beleza.

“Tomem cuidado contra a murmuração inútil, e da maledicência preservai a língua. Não há palavra oculta que caia no vazio e a boca mentirosa mata a alma” (Sab 1,11).

No momento final do discurso no cap. 6, de João, Jesus busca aclarar as condições de pertença à sua nova comunidade: adesão a Ele e revestir-se de sua proposta de vida; deixar que Sua Palavra desperte palavras mobilizadoras em nosso íntimo, palavras abertas, oblativas e que apontem para o sentido de nossa própria existência.

Mas, não basta estar em seu grupo para garantir a adesão ao modo livre de ser e viver de Jesus; há aqueles que resistem aceitar seu espírito e sua vida. Sua presença em torno a Jesus é fictícia, seu seguimento se restringe a um ritualismo vazio. A verdadeira crise no interior do cristianismo sempre é esta: cremos ou não cremos em Jesus? Somos seguidores (as) de uma Pessoa ou meros cumpridores de alguns ritos, normas, doutrinas… que nos fazem estéreis e esvaziam todo compromisso com os outros?

São muitos os que resistem aceitar o “espírito e vida” de Jesus. O narrador do Evangelho deste domingo nos diz que “muitos discípulos o abandonaram e não mais andavam com Ele”. É na crise que se revela quem de fato são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva é sempre esta: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra Seu projeto em favor da vida?

Para os despreparados (imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo.

A crise provoca uma decisão que abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise, e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar.

Crise é o momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova forma de vida.

Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade o “kairós” (momento de graça), onde o essencial surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, perde sua consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um horizonte mais aberto.

Se compreendermos que a crise é o lugar generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para despertar nossa humanidade; ela nos humaniza.

O grupo que seguia Jesus começa a diminuir, mas Ele não teme o fracasso, não se irrita e não pronuncia nenhum julgamento contra ninguém. Só faz uma pergunta aos que permanecem junto a Ele: “Vós também quereis ir embora?”

Seguimento é questão de decisão pessoal, é exercício da liberdade.

Esta é a pergunta que ressoa no interior de cada um de nós: Quê queremos? Por quê permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto?

A resposta de Pedro é exemplar: Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”.

Os que permanecem o farão por Jesus. Só por Ele; comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.

O messianismo triunfal fica definitivamente excluído. Jesus não busca glória humana ou divina, nem a promete aos que o seguem. Segui-lo significa renunciar toda ambição, e aceitar a entrega total de si mesmo em benefício dos outros.

Texto bíblico: Jo 6,60-69

Na oração:

Fazer memória das crises na vida pessoal: elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou re- traimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?

- Que implicações tem para sua vida o fato de ser seguidor (a) de Jesus? Faz diferença?...

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

ASSUNÇÃO: plenitude da história humana em Deus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Assunção de Nossa Senhora. 

 “...o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49) 

A festa da “assunção” de Maria não é a celebração de um ser divino feminino (eterno, fora do tempo e do espaço), mas a recordação da vida e testemunho de Maria, a Mãe de Jesus, memória viva que foi transmitida pela comunidade judeu-cristã, à qual devemos estar imensamente agradecidos. Em sua realidade história, como mãe de Jesus e membro da comunidade cristã, ela oferece nova identidade ao ser humano, vinculado a Jesus numa história de busca, de encarnação e de fé...

Sem entrar no tema da historicidade dos relatos da infância, Lucas nos apresenta Maria com atitudes e valores diferentes daqueles que tinham suas vizinhas. Com Maria, o destino de uma mulher grávida não se limita a “dar à luz” e criar filhos, mas que deve ampliar muito mais seu horizonte de vida. O horizonte de uma mulher que segue a Jesus Cristo se estende até onde a missão, ativada pela sua fé, pode levá-la.

Ao receber a notícia de que seria a mãe do Salvador, Maria rompe seus espaços estreitos, sai de seu ambiente cotidiano e entra no dinamismo do Espírito, deslocando-se para o serviço gratuito.

Ao encontrar-se com Isabel, ela não pode segurar por mais tempo sua alegria e irrompe em um hino de louvor, o Magnificat, pois a experiência envolvente da grandeza de Deus com a qual se encontrou, instiga-a a exaltá-Lo. É um canto que brota de maneira espontânea e que se centra fundamentalmente na face salvadora de Deus. Um Deus que fixou nela um olhar amoroso, que fez grandes coisas na história do povo de Israel e na vida da própria Maria. Por isso, as gerações futuras a considerarão bendita.

No seu Magnificat Maria canta e faz memória de sua própria história e a de seu povo, à luz da santidade e da misericórdia divinas; no “hoje eterno de Deus” tudo adquire sentido, tudo é relido e ressignificado.

Neste sentido, a proclamadora do Magnificat é verdadeiramente ícone do Povo de Deus que caminha; ela deixa transparecer uma “memória agradecida” diante das ações libertadoras de Deus.

A sua oração é absolutamente original, porque expõe fatos concretos da sua história, mas essa singularidade está inserida numa amplidão comunitária. Isto é, na verdade, o que se espera de toda a oração: a capacidade, por um lado, de ser formulada, como o Magnificat, na primeira pessoa do singular. E, por outro, a capacidade de unir a sua história concreta ao horizonte mais vasto dos planos de Deus e da missão da comunidade que crê.

Aprendemos com Maria a “ler” a História de uma maneira diferente e instigante. A partir da “memória bíblica”, somos convidados a “re-ler” nossa história, pessoal e coletiva, com novos olhos, re-construindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-nos impelir a escrever uma nova história.

Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias.

A História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.

A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada. É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.

Somos “seres históricos”, mas, muitas vezes, carregamos uma história pesada, reprimida, cheia de fracassos e derrotas; isso alimenta culpas, remorsos, sentimentos negativos..., que nos paralisam e travam o fluir da vida. Todos temos experiência que o passado carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises, fracassos, rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam deixar feridas. Tudo isso pesa na memória e continua influenciando negativamente no presente.

Com isso, ao nos fixar no passado, alimentamos uma “memória mórbida, doentia, ferida”: depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades, sentimentos de culpa, desânimo, angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando-nos e não abrindo futuro de sentido.

Sabemos que uma pessoa doente na memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus sentimentos, nas suas relações...

Se a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se não houver mudança e conversão da memória.

Somente através da “memória redentora”, a pessoa é capaz de se colocar diante do passado, de modo livre e aberta, dando-lhe um novo significado.

A memória sadia não muda o passado, mas “re-corda” (visita de novo com o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e possibilita ter acesso às recordações não neutras, mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade para rever a própria história e lê-la como História de Salvação.

A memória revela a verdade de um acontecimento. Uma memória mobilizadora, aberta ao novo e comprometida com o futuro. É através da memória sadia que somos capazes de descobrir a presença Deus na nossa história, tornando-a história da salvação.

A história pessoal e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar” habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome. Só assim a história se converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e permite compreender-nos e aceitar-nos.

Na plenitude final em Deus, toda a história passada será para sempre realizada na eternidade. O céu é apenas esse momento eterno de re-visitar tudo o que fomos, fizemos e sentimos na presença de Deus.

A história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo da vida de cada um. Não é fora da História e de sua história que a pessoa pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo; porque “Deus se fez e se faz História” é que a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido.

Cantar o Magnificat nos possibilita viver o “mistério” da presença e a ação do “Deus na História”. Nesse sentido, assim como Maria, cada pessoa se “contempla a si mesma”, imersa nesse acontecimento de graça que á a história da humanidade, assumindo-a e fazendo-a própria.

A partir do fundamento da História contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgo-tável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.

Texto bíblico: Lc 1,39-56

Na oração:

A História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser re-escrita de uma maneira diferente.

- Diante da história pessoal e social, você se sente desafiado(a)? paralisado(a)? com medo? inquieto(a)...?

- Quanto de esperança você carrega em seu interior frente à nossa história centrada na cultura da morte?

- O que faz abrasar o seu coração diante de uma história que parece um contínuo fracasso?

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Fomes e sedes que plenificam a vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 19º Domingo do Tempo Comum (Ano B). 

“Eu sou o pão da vida” (Jo 6,48)

Continuamos com o tema do domingo passado: Jesus é “pão”, sua vida é alimento, é comunhão que nós partilhamos e oferecemos, uns aos outros, sendo, dessa forma, Eucaristia.

Este evangelho da comunhão, segundo o livro de João, começou em Cafarnaum, onde Jesus se definiu como Eucaristia, pão partido e partilhado, comunicação de Vida, junto ao mar da Galileia.

Como seres humanos somos marcados por profundas carências, fomes e sedes que nos mobilizam a nos deslocar e a ativar o impulso da busca.

O decisivo é ter fome de Vida que Jesus nos oferece: buscar, a partir do mais profundo, encontrar-nos com Ele, abrir-nos à sua verdade para que nos marque com seu Espírito e potencie o melhor que há em nós. Deixar que Ele ilumine e transforme as dimensões de nossa vida que ainda estão sem evangelizar.

Então, alimentar-nos de Jesus é voltar ao mais genuíno, ao mais simples e mais autêntico de seu Evangelho; interiorizar suas atitudes mais básicas e essenciais; acender em nós o impulso por viver como Ele; despertar nossa consciência de discípulos (as) e seguidores (as) para fazer d’Ele o centro de nossa vida.

Sem cristãos que se alimentem da Vida de Jesus, a Igreja se definha sem remédio.

Com isto, Jesus está dizendo que o procedimento para dar vida em plenitude, o que se costuma dizer “vida eterna”, é o caminho da “descida”, do despojamento de toda grandeza e privilégio, o caminho trilhado e vulgar dos mortais, onde se perde o poder e se ganha credibilidade, não pela condição social a que pertence, mas pela autenticidade de sua vida.

O comer e o beber são símbolos incrivelmente profundos daquilo que devemos fazer com a pessoa de Jesus. É preciso nos identificar com Ele, temos de fazer nossa sua própria Vida, temos de “mastigá-lo”, digeri-lo, assimilá-lo, apropriar-nos de sua substância. Esta é a raiz da mensagem do evangelho. Sua Vida passa a ser nossa própria Vida. Só desta forma faremos nossa a mesma Vida de Deus. Se comungamos e não nos identificamos com o que é Cristo, produzirá indigestão.

Partir, repartir e compartilhar são três verbos relacionados com a palavra “parte”. O termo “parte” indica que o todo não está concentrado em um só lugar, em uma só mão. A palavra “parte” orienta para a pluralidade. Os três verbos supõem uma ação que uma mesma pessoa pode realizar, mas com matizes diferentes. Partir é tomar um todo e fazê-lo em pedaços. Repartir é tomar os pedaços e distribuí-los aos outros, sem maiores implicações no ato de distribuir. Compartilhar, no entanto, supõe que a pessoa que parte e reparte, desfruta conjuntamente com as outras pessoas do bem repartido.

Se a primeira ação, partir, pode tornar-se um gesto egoísta, o momento do repartir pode ser um gesto indiferente ou generoso. O que está claro é que o terceiro momento, o compartilhar, é um gesto de fraternidade, de respeito para com os outros, um gesto de amor e proximidade. Compartilhar é algo mais que estar juntos, pois se pode estar juntos sem estar unidos ou com sentimentos opostos. Compartilhar é ter uma só alma e um só coração e, como consequência, viver na alegria de ter tudo em comum, de forma que a ninguém lhe falte o necessário. Quando o pão se reparte, todos comem E quando o pão é compartilhado, além de todos comerem, vive-se na alegria, ativada pela mesa onde é ativada este gesto oblativo.

Este tríplice gesto foi realizado por Jesus na cena da multiplicação dos pães e peixes; Ele tomou os pães, deu graças, partiu-os, repartiu-os e compartilhou-os com todos. Juntos comeram festivamente os mesmos pães e os mesmos peixes. Neste gesto de partir, repartir e compartilhar o pão, Jesus estava apontando para uma realidade muito mais profunda e vital, pois no pão era o mesmo Jesus que se partia, se repartia e finalmente se entregava aos seus, compartilhando sua própria vida e unindo sua vida com a de seus seguidores (as). Jesus não compartilha só o que tem, não compartilha só pão; Jesus se entrega a si mesmo, compartilhando sua vida para ativar a vida atrofiada em muitas pessoas. Aqui revela-se o pleno sentido desta forte expressão de Jesus: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente”.

Só vidas compartilhadas são capazes de despertar um movimento vital, onde aquilo que é mais nobre e humano, que está escondido no mais profundo de cada um, se visibiliza em gestos de proximidade, acolhida, serviço..., reforçando os vínculos e a comum união entre todos, independentes de pertencer ou não a uma determinada expressão religiosa. Vidas compartilhadas que conectam vidas diferentes, possibilitam a realização do sonho do Pai: a unidade na diversidade.

Aqui está o gesto que revela a verdadeira identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus; é impossível ir mais além do compartilhar.

Temos esvaziado o sentido profundo da Eucaristia, esquecendo-nos de que é, sobretudo, sacramento (sinal) do amor e da entrega aos outros, compartilhando os próprios dons, recursos internos, sonhos... A finalidade da eucaristia não é tanto consagrar um pedaço de pão e um pouco de vinho, mas de tornar sagrado (consagrar) todo ser humano, identificando-o com o mesmo Jesus, para que se parta, se reparta e se entregue no serviço e no compromisso em favor da vida. Sem compromisso com a vida, a Eucaristia torna-se estéril, um gesto piedoso desencarnado, longe d’Aquele que partiu, repartiu e compartilhou sua Vida em favor de todos. “E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51).

Esta é a verdade radical do Evangelho: lendo e aplicando aos cristãos aquilo que Jesus diz de si mesmo, porque Ele é Eucaristia e porque compartilhamos sua vida, somos mobilizados a fazer-nos comunhão de vida, pois todos somos “pão de eucaristia”. Eucaristia que desperta outras fomes e outras sedes.

Que um homem como Jesus se faça “eucaristia” (e mobilize a todos para ser eucaristia, pão compartilhado): essa é a revelação central do evangelho de João. Em sua dimensão humana, cada ser humano que se entrega a outro ser humano como “pão”, é princípio de vida eterna.

 

Dessa forma, a mensagem de Jesus (discurso do Pão da Vida) apresenta-se como o programa mais completo de vida. Frente à economia neo-liberal do livre mercado e do triunfo dos interesses egoístas, à custa dos demais, Jesus revela o programa da vida que se faz “pão” para ser compartilhado.

Aplicando aos cristãos aquilo que Ele diz de si mesmo, Jesus insiste na exigência de “fazer-se pão”, isto é, de converter não só as riquezas, mas a vida mesma, em alimento (capital) para os pobres.

O verdadeiro “capital” não é o “dinheiro externo” (manipulado pelos grandes bancos). O verdadeiro capital é o ser humano que se faz pão-capital para os outros.

O grande pecado é o “deus Mamon” (capital divinizado). Frente a esse pecado está a revelação da verdade de Deus: que homens e mulheres sejam (se façam) pão, uns para os outros, na doação e na partilha.

Sem um novo Capital Humano (sem a conversão do ser humano em pão para os outros), esta humanidade não terá saída. Só podem ser cristãos de verdade aqueles que acolhem e seguem as palavras e gestos de Jesus neste evangelho: que se façam pães uns para os outros.

O único pão que sacia a um ser humano e lhe dá vida (palavra, amor, esperança) é outro ser humano, seja na expressão de pai ou de filho, de filha ou de mãe, de irmão ou irmã, de esposo ou de esposa, de amigo ou de amiga... Em suas diversas formas de expressão de encontro, acolhida, fraternidade, diálogo..., um ser humano é “pão” para outro ser humano.

Texto bíblico: Jo 6,41-51

Na oração:. É no mais íntimo que experienciamos o verdadeiro encontro com Aquele que se fez pão de vida e vinho de salvação. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos ressoar sua voz, nos inspirando a ser pão para os outros.

- Eucaristia e compromisso com os últimos e excluídos: você consegue fazer esta conexão, toda vez que se aproxima do altar?

- A Eucaristia tem sido momento privilegiado para despertar em você outras fomes e sedes? De quê você tem fome e sede?

- O que é que nutre sua verdadeira identidade de filho(a) de Deus e irmão(ã) de Jesus?