“Quando encontra uma pérola de grande
valor, ele vai, vende todos os seus bens e a compra”
As parábolas do evangelho de hoje nos colocam
diante de um fenômeno humano conhecido como serendipitia, serendipidade ou serendipismo: termos que expressam o
sentimento de alegria quando encontramos alguma coisa surpreendentemente boa
sem que, necessariamente, estejamos procurando por ela; referem-se às
descobertas afortunadas feitas por acaso; trata-se de uma forma especial de
criatividade, na qual saímos em busca de uma coisa e acabamos encontrando
outras muito mais importantes e valiosas.
Estes termos se originam da palavra
inglesa “serendipity”, criada pelo
escritor britânico Horace Walpole em 1754, a partir do conto persa infantil “os
três príncipes de Serendip”. O conto revela as aventuras de três príncipes do
Ceilão, hoje Sri Lanka, que viviam fazendo descobertas inesperadas durante o
seu caminho. Graças à capacidade deles que aliava perseverança, sagacidade,
inteligência e senso de observação, os príncipes acabavam encontrando “acidentalmente”
soluções para seus dilemas. Isso revelava uma mente aberta para as múltiplas
possibilidades.
A ciência está repleta de casos famosos que podem
ser classificados como serendipismo, mas estes só ocorreram porque as pessoas
estavam “abertas” a estas descobertas, preparadas e com o senso de observação
apurado. A descoberta ocasional dos manuscritos de Qumram, a fotografia, o raio
x, a penicilina, a lei da gravidade, a descoberta de Colombo... tem em comum
que não foram diretamente buscados, mas, por serem descobertas afortunadas e
inesperadas, abriram novos horizontes e tornaram a vida mais bonita e mais agradável.
O serendipismo
é a pitada que falta no nosso espírito inovador e criativo, que é estar
sempre aberto ao inesperado.
O conceito de “serendipidade” é
aplicado em muitos setores da vida humana, inclusive no campo da
espiritualidade. Serendipidade se refere às descobertas ou encontros
afortunados feitos aparentemente por acaso, que muitas vezes possibilitam
transformações radicais e positivas em nossas vidas.
Na vida
espiritual, o estilo serendipitico ativa em nós o olhar atento, para dentro
e para fora, fomenta o assombro e a admiração diante da nossa realidade
cotidiana, nos mantém em atitude de abertura para o gratuito e nos faz abertos
à Graça e à sua surpreendente novidade.
O verdadeiro segredo está em
abrir-nos às oportunidades que a vida nos oferece; é viver a arte de uma
apurada sensibilidade e atenção a tudo o que acontece ao nosso redor; trata-se
de reconhecer e aproveitar as descobertas inesperadas. Reconhecer, receber,
viver e agradecer.
A vida é uma busca incessante por
aquilo que consideramos essencial e as descobertas surpreendentes só acontecem
quando nos deixamos mover por esse espírito de busca; ser buscador significa
ter olhar contemplativo, ou seja, transformar simples observações do nosso
dia-a-dia em grandes descobertas.
Por isso, é nas entranhas do cotidiano que brotam as grandes
intuições, as experiências místicas, a criatividade artística, os sonhos
ousados...; pois é no cotidiano que
irrompe o novo e o revolucionário.
É a atitude contemplativa que nos desperta da letargia do cotidiano. E
despertos descobriremos que o cotidiano
guarda segredos, novidades, energias ocultas que
sempre podem acordar e conferir novo sentido e brilho à vida.
A vida espiritual está cheia de “momentos
serendipiticos”, ou seja, encontros
reveladores e inesperados com Aquele que
se revela sempre de maneira surpreendente, através das surpresas da vida. Só
aquele que segue as intuições do coração, estando aberto às infinitas
possibilidades, pode entrar em sintonia com Aquele que “trabalha em tudo e em todos”. Ao confiar na sua
orientação interior, a pessoa vive a sua vida com discernimento, carregando-a
de amor e paixão.
Deus constantemente nos surpreende
no singelo, nas coisas simples da vida. Muitas vezes nós perdemos a capacidade
de ver a sua ação nas pequenas coisas e ficamos esperando grandes sinais. Cada
instante é uma chance para perceber esse amor que Ele tem por nós. Se vivemos
cada momento ordinário de forma extraordinária, certamente perceberemos a sua
ação e seremos surpreendidos por Ele - um encontro com alguém, um gesto de bondade,
uma palavra que alguém nos dá, uma paisagem que vemos, enfim, infinitos momentos
em que Deus nos fala e nos busca surpreender. Mas, por não prestarmos atenção,
por estarmos dispersos em tantas preocupações, por não fazer silêncio em nosso
interior, acabamos não percebendo.
O Evangelho também está cheio desses momentos
serendípiticos: uma multidão faminta em busca por alimento e aparece um
menino com apenas cinco pães e dois peixes; uma mulher samaritana em busca de água
e inesperadamente encontra-se com o autor da água viva; o baixinho Zaqueu que
desejava apenas matar a curiosidade, é surpreendido por Jesus que deseja ser
hóspede em sua casa; as parábolas da descoberta inesperada do tesouro e da
pérola...
O papa Francisco, em uma Homilia
proferida no Santuário Nacional de Aparecida, convidou-nos a constantemente "deixar-nos surpreender por Deus".
Deus espera que nos deixemos “surpreender
por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”
O papa nos mostrou como modelo a
história do Santuário: três pescadores depois de um dia inteiro sem apanhar
peixe encontram, nas águas do Rio Paraíba, a imagem da Senhora Aparecida.
Sabemos que os pescadores, após encontrarem a imagem milagrosamente, têm uma
pesca abundante e conseguem o que precisavam para atender ao conde de Assumar.
O Papa Francisco vai além, vai ao essencial desse episódio para entendermos
melhor como Deus atua: “Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera,
torna-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma
mesma Mãe? Deus sempre surpreende, sempre nos reserva o melhor”.
O evangelho deste domingo nos motiva a “des-velar”
nosso “eu profundo”, o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa
personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais,
as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as
ideias-força, os dinamismos da vida... Ao transitar, de maneira atenta e
contemplativa pelos espaços interiores, seremos surpreendidos por descobertas
inesperadas que farão toda a diferença em nossas vidas.
O “tesouro do ser”
(certezas, intuições, projetos, valores...) ainda que pareça esquecido, permanece
armazenado em sua mensagem essencial, e pode tornar-se a força que orienta toda
a vida, a sabedoria da própria vida, um lugar de fecundidade, de criatividade,
fonte de renovação...
Dentro de nós temos forças
construtivas que podem mudar-nos eficazmente. E é preciso dar-lhes curso, não as
ocultando e nem as desprezando, mas deixando-as aflorar espontaneamente.
“Que eu me
conheça e que te conheça, Senhor! Quantas riquezas entesoura o homem em seu
interior!
Mas de que lhe servem, se não se sondam e investigam” (S. Agostinho)
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa
história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências...
Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode
enriquecer-nos...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas;
inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em
nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições
que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 13,44-52
Na
oração:
A
oração ajuda a liberar o “olhar”
para contemplar a realidade de outra maneira. Com isso, cada um pode descobrir
melhor no seu cotidiano o que há de novidade
positiva e salvadora.
-- Contemplar é ter uma sensibilidade para
deixar-se surpreender por Deus hoje, ou seja, re-educar o olhar para deixar-se
impactar pelo novo, pelo inesperado...
-- Na sua vivência cristã,
identifique algumas ocasiões em que você não estava esperando e descobriu algo
que se revelou importante para sua vida.
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