domingo, 30 de setembro de 2018

As nefastas armadilhas do preconceito, da intolerância e do fanatismo

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Mas nós lhe proibimos, porque ele não é dos nossos” (Mc 9,38)

Cresce hoje a consciência sobre a diferença do ser humano como atração, e não como rejeição. A humanidade pós-moderna exige a diversidade na convivência sociocultural e religiosa. Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências. O mundo globalizado não pode ser apenas econômico. É chamado também a respeitar e a cultivar as diferenças entre as pessoas, as raças, as religiões, as sociedades e as nações.
No entanto, corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.

Marcos, no evangelho deste domingo, recolhe vários ditos de Jesus a partir de uma reação tipicamente preconceituosa do grupo dos discípulos: a de impedir um desconhecido utilizar o nome de Jesus, por uma única razão: “não era dos nossos”.
Frente à reação excludente dos discípulos, Jesus propõe a tolerância que nasce de uma atitude aberta e inclusiva. Ao longo da história humana, a etiqueta “dos nossos” gerou desprezo, ódio, preconceito, enfrentamento e morte, numa sequência desumana de sofrimento inútil.
A ironia é que se trata justamente disso, de uma mera etiqueta, completamente superficial e enganosa, que nasce do próprio medo e insegurança, que leva a nos “proteger” do diferente, buscando refúgio naquilo que nos é conhecido.
O diferente não pode ser uma ameaça; no entanto, na vida nos defendemos e, às vezes, questionamos e atacamos posturas, visões políticas, teológicas, espiritualidades, modos de viver uma religião..., culminando em rupturas e, em alguns casos, em conflitos ou ódios.
Aos poucos, nos recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação, ao fanatismo...

Pode, a identidade cristã co-existir criativamente, e de quê maneira, em meio a uma cultura plural e de identidades múltiplas como a nossa?
O que está em jogo reveste tal gravidade que exige modificar radicalmente nosso modo de ver e de agir: cortar a mão (modificar as ações), cortar o (mudar o rumo) ou arrancar o olho (transformar a visão). Trata-se de um processo que nos impulsiona a crescer em humanidade, esvaziando nosso “ego” de suas inseguranças, medos e preconceitos.
Tal transformação radical pede olhos capazes de olhar o mundo em sua complexidade e em suas feridas; mãos prontas para acariciar, construir, e abertas para o encontro e o abraço; pede pés para encurtar distâncias e criar proximidade acolhedora; pede boca disposta a falar com palavras de verdade e de benção; pede coração disposto a implicar-se, vibrar... às vezes, romper-se. Membros que se gastam no serviço. Enfim, sempre amar, com o fascinante que é viver como cristãos de carne e osso.

Sabemos que do ponto de vista psicológico, a questão da intolerância, do preconceito e do fanatismo se acha vinculada à segurança. A segurança constitui uma necessidade básica do ser humano.
Enquanto a pessoa não faz a experiência de uma segurança firme e interna que a sustente, ela buscará fora de si – projetando-a em um líder, em um grupo ou em uma instituição -, ou se fixará em suas ideias, crenças e convicções. Quando isso acontece, a pessoa insegura não poderá tolerar que seu líder, seu grupo, sua instituição, sua religião, sejam questionados; assim como tampouco poderá permitir que suas ideias, crenças ou convicções sejam criticadas. Isso tirará o tapete de sua própria estabilidade.
Para uma pessoa fechada em seu fanatismo, preconceito e intolerância, “os outros” são percebidos como ameaça; porque, quem pensa diferente ou adota um comportamento diferente, lhe faz ver que o seu pensamento ou comportamento não são o valor “absoluto”, senão mais um ao lado de tantos outros.

E isto é o que uma personalidade insegura se vê incapaz de tolerar, pela angústia que lhe gera a falta de seguranças “absolutas”. Por isso mesmo, sentir-se-á incapaz de tolerar a divergência, e tenderá a desqualificar, julgar, condenar (ou empenhar-se em “converter”) a quem não pense como ela. Porque percebe toda diferença como ameaça.

A “saída” do fanatismo requer experimentar uma fonte de segurança que se encontra mais além da mente (de suas ideias ou crenças). Uma experiência que confere à pessoa uma sensação interna de consistência e de autonomia. Quem é capaz de ter acesso ao seu “eu” mais profundo, relativiza também o caráter absoluto que tinha atribuído às ideias e crenças e, ao mesmo tempo, permite aos outros serem diferentes, sem que a diferença seja vista como perigo.
Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.

E, retomando a queixa de João no Evangelho de hoje, podemos perguntar: “quem são os nossos”?
Grupos, tribos, nacionalismos, partidos políticos, religiões e ideologias de todo tipo tendem a definir com claridade os limites que marcam o próprio “território”, impedindo que “os outros” tenham acesso a ele.
A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência. Nada mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida.
Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e violência.
“Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e dos diversos fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos sites católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; e, inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6).”
(Papa Francisco, Gaudete et Exsultate, 115)

Texto bíblicoMc 9,38-43.45.47-48

Na oração:  
O que é o específico de uma vida cristã? Buscar, no seguimento, fazer e viver o que fez e viveu Jesus. Para isso, adotar as atitudes, o olhar e a capacidade de contemplação da realidade que o mesmo Jesus adotou. Ele abraçou diferenças e novos horizontes. O Seu ministério ultrapassou as fronteiras. Ele rompeu com os muros do preconceito social, racial, religioso...
- Deixar a luz do Evangelho des-velar (tirar o véu) possíveis atitudes intolerantes e preconceituosas diante dos “outros diferentes”.

sábado, 22 de setembro de 2018

Uma Criança no Centro

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 25º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


“Jesus tomou uma criança, colocou-a no meio deles e, abraçando-a...” (Mc 9,36)

No evangelho de Marcos, o “caminho” representa o itinerário de formação do discipulado. Jesus não quer um grupo de fanático que lhe entoem vivas a seu nome, mas um grupo de pessoas responsáveis que sejam capazes de assumir Seu projeto, em favor da vida, ou seja, o Reino de Deus. Por esta razão, seus esforços se concentram no ensinamento de seus seguidores. Mas, a instrução parte dos desacertos e das incompreensões que eles vão revelando ao longo do trajeto para Jerusalém.
No evangelho deste domingo, Jesus utiliza uma estratégia pedagógica muito criativa: retoma a discussão dos discípulos que, no caminho, estavam concentrados não em Seu ensinamento, mas na partilha dos cargos burocráticos de um hipotético governo. Jesus reconduz a discussão mediante um exemplo tomado da vida diária: coloca uma criança no meio deles. Tal gesto revela como o presente e o futuro da comunidade dos seus seguidores(as) está em colocar no centro não as próprias ambições, mas as pessoas mais simples e excluídas. Só assim se reverte o sistema social de valores; e só assim, a comunidade torna-se uma alternativa inspirada frente ao mundo, que só sabe colocar no centro as pessoas ricas e poderosas. A novidade de Jesus consiste em tornar grande quem é pequeno, despojado de poder e prestígio.

Os discípulos queriam construir a Nova Comunidade em bases de poder, a partir do maior e do primeiro. Mas Jesus não precisa de maiores nem primeiros, busca os últimos e servidores; quer pessoas que saibam se colocar no final, para ajudar os outros a partir desse espaço, superando a lógica do mando. Ao falar assim, não combateu um simples vício de egoísmo, mas inverteu as estruturas mesmas da velha sociedade, edificada a partir dos poderosos.
Ninguém briga para disputar o último lugar. Todos discutimos e buscamos o primeiro lugar. Essa foi também a conversação dos discípulos pelo caminho.
Ninguém estava disposto a ser o último; todos queriam ser os primeiros. E isso porque Jesus acabara de anunciar, de novo, a entrega de sua vida em favor dos outros, em serviço de amor.
Por isso, quando, em casa, lhes pergunta - “O que discutíeis pelo caminho?” -, todos ficaram mudos. Agora ninguém quer dar a cara; todos são inocentes. Com sua pergunta, Jesus quer que tragam à luz seus íntimos e perversos sentimentos, mas guardam silêncio porque sabem que não estão de acordo com o que Ele vinha lhes ensinando. Entre eles, continuam na dinâmica da busca do domínio e do poder.

Os discípulos haviam discutido sobre quem é (ou deve ser) o maior. Como todo grupo humano, também no grupo de Jesus surgiram invejas, desejos de liderança, disputas sobre privilégios. Mas Jesus não é um ditador, não impõe seu domínio pela força; Ele sabe que seu grupo de seguidores tenderá a dividir-se em grupinhos de influência ou prestígio; Ele tem consciência que onde predomina o poder, a vaidade, a força... Ali não há possibilidade de uma verdadeira comunidade.
Só superando a lógica do desejo de poder é que se pode edificar o reino da nova humanidade, um mundo onde os mais fracos e vulneráveis possam viver em amor e crescer em vida.
Jesus já tinha apresentado seu projeto em chave de ruptura social e religiosa, investindo toda sua vida em favor dos outros. Ele desencadeou um “movimento humanizador”, onde não há lugar para o domínio, a imposição, mas espaços de gratuidade e de ajuda mútua, abertos aos mais necessitados, a partir de uma perspectiva de entrega da vida. Seu projeto revelou-se luminoso, mas, humanamente falando, parecia inviável, pois todo grupo humano busca organizar-se numa estrutura de poder, e os discípulos de Jesus pretendiam fazer isso, de maneira que alguns pudessem ocupar os lugares-chave da comunidade.

Por isso, para inverter esse modelo e criar uma comunidade diferente, Jesus toma uma criança e realiza um gesto provocativo: coloca-a no centro e a abraça.
Os discípulos conspiram, buscando poder e prestígio; no entanto, Jesus descobre e desmascara tal conspiração, oferecendo amor (abraçando) a uma criança. Dessa forma, a autoridade (colocá-la no meio) se torna ternura: a criança é importante porque está à mercê dos demais e necessita carinho.
Jesus põe a criança no centro de todos. Os discípulos buscam o centro, mas o verdadeiro centro da Vida de Deus está já ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de pé, em sinal de autoridade, no meio do círculo onde Ele mesmo havia se situado, convertendo-a em autoridade máxima.
Aqui aparece um Jesus escandaloso, messias de ternura que não só abraça as crianças, senão que propõe esse gesto como sinal de identidade de seu discipulado e reino.
A mesma criança aparece assim como autoridade, sinal do messias (“quem a recebe, a mim me recebe”).

No espaço central da Igreja, abraçada a Jesus, encontramos uma criança; a nova comunidade passa a ser lugar para o abraço. Ambos, Jesus e a criança, formam a verdade messiânica. Com esta imagem desaparecem os modelos de domínio e prestígio (ser maior, ser primeiro, ter mais poder). A criança é a maior e a primeira, não é preciso buscar mais. A partir daí se pode falar de igreja: quem acolhe a criança, oferecendo-lhe espaço para o abraço no centro da casa, esse, sim faz parte da comunidade cristã.

Frente aos discípulos patriarcalistas que buscavam o domínio e o poder (ser grandes, conquistar com risco os primeiros lugares) Jesus elevou aqui o modelo de uma Igreja que é família, lar materno a serviço dos pequenos, lugar da acolhida e do crescimento das crianças.
O Jesus de Marcos superou um modelo de família patriarcalista, entendida como hierarquia de poder; ao iniciar um movimento de vida nas casas, Jesus insiste na necessidade de que toda a comunidade de seus seguidores atue de um modo materno-paterno, acolhendo os mais necessitados, e de um modo especial as crianças, com um gesto de autoridade (a criança é o centro da comunidade) e de ternura (à criança oferece-se o calor da vida e o abraço).

Frente uma sociedade do “descarte”, onde as crianças são as primeiras vítimas da violência, o evangelho de hoje torna-se ocasião privilegiada para repensar a atitude dos cristãos frente à infância desamparada. Também a Igreja, quando está só focada no poder, no ritualismo, na doutrina, no legalismo, no moralismo, no dogmatismo..., deixa de ser mãe terna e carinhosa para com os mais frágeis, para deixar-se contaminar pela “mosca azul” do poder e prestígio.
O que importa para a igreja é oferecer espaço humano à criança que já existe e que ocupa o seu centro. Não é questão de dogmas mais ou menos racionalizados, nem tampouco das grandes estruturas. A igreja deve fazer-se lugar de vida para as crianças!
A comunidade cristã não é (não deveria ser) um grupo dominado por sábios anciãos (uma gerontocracia), não é sociedade de sacerdotes poderosos ou influentes, um sindicado de burocratas do sagrado, funcionários que escalam passo a passo os degraus de sua grande pirâmide de influências, poderes, competências (e também incompetências). De acordo com o evangelho deste domingo, a Igreja é, antes de tudo, lar para as crianças, espaço onde encontram acolhida e ajuda para seu crescimento, humano e espiritual.


Texto bíblicoMc 9,30-37

Na oração:
Há gestos cotidianos que nos ajudam a descobrir em profundidade quem somos realmente. Um abraço, um beijo, uma mão estendida, um olhar sereno..., são gestos que quebram toda pretensão de poder e desmascaram o impulso de querer colocar-se acima dos outros. São gestos que nos recordam que somos seres amados.
Sem dúvida esta é a linguagem de Deus: Ele se des-vela mais nos gestos, que dão conteúdo a tantas palavras já desgastadas.
- Prolongar, no seu cotidiano, o modo terno e carinhoso de ser e de agir de Jesus, sobretudo com os mais frágeis.

sábado, 15 de setembro de 2018

Quando Perder é Ganhar...

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8,35)

O Seguimento é tema central em todos os evangelhos, ou seja, “fazer o caminho” com Jesus, identificando-se com Ele na entrega aos outros, sem buscar para si poder ou glória.
Ao longo de todo seu escrito, Marcos manifesta uma prevenção especial frente a qualquer ideia de um messianismo triunfalista, centrado no poder e na glória. O caminho do Messias – repetirá diversas vezes – passa pela entrega e pela cruz. Os discípulos, pelo contrário, aparecem obcecados, “surdos e cegos”, discutindo habitualmente por questões de poder, de importância e de privilégio, enquanto que Jesus lhes fala de serviço e doação.
Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: nos três anúncios da paixão, quando Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o caminho serviço X o caminho da ambição.
Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”.
A vontade do Pai nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço.

No evangelho deste domingo, a divergência entre ambos caminhos fica explicitada tanto na reação de Pedro como na resposta dura de Jesus. O caminho dos discípulos reflete os mecanismos próprios do ego, que não busca outra coisa a não ser a auto-afirmação a qualquer preço, apegando-se ao ter, ao poder e ao aparentar, ao mesmo tempo que foge de tudo o que soa a desapego e entrega.
Para o ego, a entrega desinteressada é uma loucura, que é preciso evitar a todo custo. Para Jesus, pelo contrário, o impulso do ego se opõe frontalmente a Deus.
A resposta de Jesus a Pedro é a mesma que Ele deu ao diabo nas tentações; nem aos fariseus, nem aos letrados, nem aos sacerdotes dirige Jesus palavras tão duras. Quer com isso indicar que a proposta de Pedro era a grande tentação, também para Jesus. A verdadeira tentação não vem de fora, mas de dentro. O difícil não é vencê-la, mas desmascará-la e tomar consciência de que ela é a que pode arruinar a Vida.
Pedro é “Satanás” na medida em que espera que Jesus siga o caminho do messianismo convencional, glorioso, vencedor dos inimigos do povo, que estabelece seu próprio reinado, e não aceita o caminho que Jesus começa a propor, o do serviço que acaba na cruz.
Mas Jesus não rejeita Pedro e nem pede a ele simplesmente que se vá ou se afaste (costuma-se traduzir por “aparta-te de mim...”). Diz-lhe “põe-te detrás de mim”; a mesma expressão que utiliza no versículo seguinte: “se alguém quiser vir atrás de mim...”. Ou seja, Jesus está repropondo a Pedro e aos discípulos o seguimento e que se ponham atrás d’Ele, agora que o caminho vai passar pela cruz.

E aquí vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”.
Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade.
Jesus vive na sabedoria de onde brota a fidelidade. Não vive para o ego, que busca sempre seu interesse e comodidade, mas está ancorado naquela identidade profunda, na qual permite que a Vida flua, numa atitude de serviço ou de entrega sábia.
Aquele que quer salvar seu ego, perde a Vida, porque se fecha numa jaula estreita e se introduz em um labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o ego, não pode evitar uma sensação de profunda insatisfação.
Todos os caminhos autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia de si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo contrário, para crescer ao recuperar sua verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, então me encontro; quando meu ego diminui, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus. A “renúncia a si mesmo”, que Jesus propõe, não é um exercício de masoquismo, mas uma maneira mais profunda de realização humana.

Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso “eu” é imprescindível para poder entrar no caminho de vida que Jesus propõe.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos.

 Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em todos os seus seguidores(as).
O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e nem da centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado e oblativo”, vivendo em favor dos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana.
Precisamos reconhecer que, aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação.

“Renunciar a nós mesmos” não é cair em um auto-menosprezo, nem anulação daquilo que somos, mas descobrir que há valores que estão mais além de nós mesmos. É tomar consciência que há recursos e capacidades superiores pelos quais vale a pena investir a vida, assumindo as consequências.
“Tome sua cruz e me siga”: tampouco Jesus quer apresentar-nos um cristianismo e um seguimento doloroso. A verdadeira cruz do cristão não está no sofrimento, não está na dor de privar-nos de tudo, não está nas penitências e sacrifícios... A verdadeira cruz do seguimento de Jesus é a da fidelidade ao evangelho, ao amor, ao compromisso, à própria vocação de serviço.
A cruz do cristão não pode ser outra que a Cruz do mesmo Jesus. Ele nunca amou a cruz como cruz. Mas tampouco fugiu dela por manter-se fiel ao Reino e ao Evangelho que anunciou. Ele nunca amou a dor pela dor, ao contrário, sempre buscou aliviar a dor dos outros. Mas tampouco fugiu, negando sua própria verdade, sua própria missão e sua própria identidade.
A cruz para todo(a) seguidor(a) nunca pode ser uma meta; ela é sempre uma consequência. A cruz para o cristão não é algo que se busca, mas uma realidade que chega a partir de fora, como consequência da verdade e da autenticidade evangélica.



Texto bíblicoMc 8,27-35

Na oração:
Nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação de Jesus é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do meu eu profundo, onde descubro os traços de minha própria fisionomia.
Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim”se não me pergunto ao mesmo tempo: Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
- Sua vida cotidiana é:
Descentrada? Oblativa? Aberta ao diferente?...

Ou: auto-centrada, “buscando o próprio amor, querer e interesse”?

sábado, 8 de setembro de 2018

Abrir os Sentidos para o Encontro

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galiléia...(Mc 7,31)

Uma imagem constante no evangelho de Marcos: Jesus, portador da Vida, é um itinerante; rompe os espaços geográficos-culturais-religiosos e transita com muita liberdade pelo território pagão. Ali também encontravam-se os excluídos, aspirando viver relações mais humanizadoras.
Nesse deslocamento, algumas pessoas trazem um surdo-mudo a Jesus e pedem que lhe imponha a mão. O surdo-mudo poderia ir ao encontro d’Ele, mas não teria como expressar seu pedido.
Portanto, parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravilhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é somente o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.
O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato. O caminho do contato é o da mais profunda comunhão.
A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.

O Mestre separa o surdo-mudo da multidão e lhe confere uma atenção especial, em um espaço protegido, onde pode estar a sós com o doente. É apenas nesse encontro entre os dois que a confiança necessária pode crescer para que aquele, cuja boca e ouvidos estão fechados, se abram.
O processo da cura do surdo-mudo é descrito aqui em cinco passos, onde Jesus abre a possibilidade para o encontro deste homem com os outros e para o encontro com o Pai: coloca os dedos nos ouvidos do surdo, toca a língua do mudo, eleva os olhos ao céu, suspira e ordena:  “Efatá” – “abre-te”.
Palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! Destrava teu interior!” Depois de tantos passos através do não-verbal, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar.
Contrariamente aos outros milagres, Jesus realiza uma série de gestos que demonstravam proximidade e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou para o céu, exprimindo sua comunhão com o Pai, e suspirou como sinal de participação profunda no acontecimento. A cura deixa de ser um ritual puramente exterior, mas brota de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre o doente e Jesus.
Jesus, com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipou, recuperou sua autonomia e agora pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.
Com todos os órgão e sentidos do seu corpo mobilizados, ele insere-se na comunidade que ouve a Deus e proclama que Ele é o único Senhor. Desaparecem as causas que lhe impediam optar com liberdade; a possibilidade de uma nova vida se abriu para ele.

Nessa nobre missão de ajudar os outros a “dar à luz” o melhor deles mesmos, Jesus foi um sábio “parteiro”: n’Ele podemos contemplar em quê consiste o saber servir de ajuda para que a vida possa emergir como dom.
Jesus se dedica ao surdo-mudo de forma carinhosa, como uma mãe. Ele toca a língua do mudo com sua saliva. Este é um gesto maternal. O surdo-mudo só consegue abrir seus ouvidos e sua língua, num ambiente marcado pela confiança e pelo amor maternal.
É sugestiva a imagem de ser “parteiro da vida”, ou seja, saber favorecer o nascimento de cada um, em sua verdade mais profunda, em todas as suas possibilidades. É colaborar com o Deus Pai/Mãe nessa bela missão, ajudando cada pessoa a ser o que pode e está chamada a ser.
“Ativar e expandir vida” foi a paixão que mobilizou todo o ministério de Jesus: seu desejo de que todos tivessem vida e vida em plenitude, sua capacidade de fazer emergir a vida atrofiada, centrou-se de um modo especial nos excluídos, marginalizados, enfermos, pessoas “oficialmente pecadoras”...; pois, assim Deus o havia revelado, assim sentia Ele seu coração entrar em sintonia com o coração do Pai, que põe mais amor onde há mais necessidade.
Poder “dar vida”, capacitar para que cada pessoa pudesse viver sua vida e sua verdadeira identidade foi, para Jesus, uma fonte profunda de fecundidade e de felicidade.

Assim como o surdo-mudo, também nós podemos viver dentro de bolhas, que nos atrofiam e impedem que cheguem até nós o rumor da vida dos demais, com seus problemas e suas alegrias; ou permanecer fe-

chados dentro de nossas pequenas fronteiras, com dificuldades para expressar o que sentimos e vivemos.
Enquanto permanecemos fechados, reduzidos a falsas identidades, geramos confusão e sofrimento. Acreditamos naquilo que não somos e esquecemos quem realmente somos. Tal fechamento evoca a imagem de uma jaula, feita à medida dos limites que nossa própria mente estabelece. Condenar-nos-emos a um sofrimento estéril e insolúvel, por um único motivo: confundimo-nos com algo que não somos.
“Efatá”: “abre-te”. O ser humano, mesmo sendo pura abertura e amplitude sem limites, tende a fechar-se. Talvez, porque isso lhe traz uma sensação de segurança, ao crer que mantém o controle sobre o pequeno espaço ao qual se reduziu.
Para começar, ele se fecha em seu próprio corpo, como se as fronteiras físicas do mesmo delimitassem também sua identidade; fecha-se em suas ideias atrofiadas, em sua religião burguesa, em seu legalismo e moralismo doentios, em suas intolerâncias e preconceitos...
Nesse contexto, a palavra de Jesus aparece como um convite firme a sair de qualquer identificação redutora: “abre-te”, “não te mantenhas fechado na crença de uma identidade isolada, que não pode ouvir nem contar a Beleza que realmente és”.
“Abre-te”, “não te feches em nada, não te reduzas a nenhum objeto, não te deixes aprisionar em nenhuma jaula, reconheça a abertura sem limites do “oceano” que constitui tua verdadeira natureza”. “Abre-te”…, “A que? À tua verdadeira identidade!”

O surdo-mudo necessitava abrir os ouvidos e a língua, mas todos nós temos necessidade de abrir alguma dimensão de nossa pessoa, ou talvez alguma capacidade adormecida ou bloqueada.
É provável que, normalmente, a abertura seja progressiva: à medida que consentimos abrir algo em nós, ser-nos-á mostrado o próximo passo a ser dado. Como nas “sete moradas” de S. Teresa D’Ávila, diferentes portas se sucedem, uma depois de outra; assim se revela ser nosso mundo interior. Cada porta aberta nos coloca diante de outra nova “porta”, que clama para ser também aberta.
E, no percurso interior, vamos tendo acesso a espaços cada vez mais originais e inspiradores, até chegar finalmente a nos reconhecer na Divina Morada, nossa verdadeira identidade, nosso “eu profundo”. Daí nasce a sabedoria, unindo corpo-mente-afetividade, coração.
Esse caminho conduz à descoberta de que somos Um com Aquele que nos habita e nos conecta com o universo, forjando nossa identidade de filhos(as), irmão e irmã de todos. Quando conectamos com esta realidade, toda nossa vida se equilibra e adquire sentido; esbarramos na Fonte.


Texto bíblico: Mc 7,31-37

Na oração:
No evangelho deste domingo, o autor transmite a palavra chave no próprio idioma de Jesus, o aramaico “Efatá”, “abre-te”.
É preciso deixar ressoar no próprio interior esta expressão; enquanto pronuncia, pergunte-se: “A quê ou em quê preciso abrir-me?”

- Quê portas de sua vida é preciso abrir? Capacidades adormecidas (amor, ternura, alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...), defesas protetoras que se converteram em armadura oxidada (medo, indiferença, imagem idealizada, intolerância...), “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a) mantém fecha-do(a) em uma bolha de tolerado conforto...

sábado, 1 de setembro de 2018

Ecologia Interior

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 22º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


“Pois é de dentro, do coração humano, que saem as más intenções...” (Mc 7,21)

Depois de um parêntesis de cinco domingos dedicados ao cap. 6 do evangelho de João, retomamos o percurso de Jesus seguindo o evangelista Marcos. Após a multiplicação dos pães, Jesus se encontra nos arredores do lago de Genesaré, um lugar afastado de Jerusalém, onde era menor a vigilância em relação ao cumprimento das leis e das normas de purificação.
O texto de hoje contrapõe a prática dos discípulos com o ensinamento dos letrados e fariseus. Jesus se coloca a favor dos discípulos, e aproveita a ocasião para nos mover a ir mais além; Ele nos adverte que toda norma religiosa, escrita ou não, tem sempre um valor relativo.
A Lei deve ser cumprida quando nos leva à plenitude humana. Para os fariseus, é preciso cumprir o preceito por ser preceito e não porque ajuda a ser mais humano. Todas as normas que podemos por em conceitos, são preceitos humanos; não podem ter valor absoluto. Um preceito que pode ser adequado para uma época, pode perder seu sentido em outra. Mais ainda, as normas morais estão mudando sempre, porque o ser humano vai conhecendo melhor seu próprio ser e a realidade na qual vive. As normas antigas não servem para as situações novas que vão aparecendo. Algumas coisas que eram importantes para o ser humano no passado, perderam agora sua força quando se trata da plenitude humana.

Em todas as religiões, as normas e preceitos são dadas em “nome” de Deus. Isto pode ter consequências desastrosas, se não é entendido bem. Todas as leis são humanas. Quando essas normas surgem de uma experiência autêntica e profunda do que deve ser um ser humano e o ajudam a atingir sua plenitude, podemos chamá-las divinas.
O preceito de lavar as mãos antes de comer não era nada mais que uma norma elementar de higiene, para que as enfermidades infecciosas não fizessem estragos entre aquela população que vivia em contato com a terra e os animais. No instante em que uma tradição se converta em um entrave que impeça a pessoa ser mais humana, deve-se abandoná-la. É o que quer dizer Jesus: “deixais de lado a vontade de Deus para apegar-se às tradições dos homens”.
O que Jesus critica não é a Lei como tal, mas a interpretação que faziam dela. Em nome dessa Lei oprimiam as pessoas e lhes impunham verdadeiras torturas com a promessa ou a ameaça de que só assim Deus estaria a seu favor. Davam valor absoluto à Lei. Todas as normas tinham a mesma importância, porque seu único valor estava no fato de que eram “dadas” por Deus. Isto é o que Jesus não podia aceitar.
Toda norma, tanto ao ser formulada como ao ser cumprida, deve ter como fim primeiro o bem do ser humano. Nem sequer podemos colocá-la à frente de Deus, porque o único bem de Deus é o ser humano. A base de todo fundamentalismo está em propor o bem de Deus, inclusive contra o bem do ser humano.
Deus é Pai/Mãe de Misericórdia e nunca vem complicar nossa vida com uma carga de preceitos, leis, tradições... O que Ele deseja é que vivamos intensamente; as leis e normas são só uma mediação para possibilitar mais vida. No momento em que elas bloqueiam o fluir da vida com o peso dos sentimentos de culpa, não devem ser cumpridas.

O segundo ensinamento é consequência deste: não há uma esfera sagrada na qual Deus se move e outra profana da qual Deus está ausente. Na realidade criada não existe nada impuro. Tampouco tem sentido a distinção entre o ser humano puro e o ser humano impuro, a partir de situações alheias à sua vontade. Por isso, a pureza nunca pode ser consequência de práticas rituais. A única impureza que existe é quando o ser humano busca seu próprio interesse à custa dos outros.
Todo aquele que pretende nos impor leis em nome de Deus, está nos enganando. A vontade de Deus é encontrada dentro de nós. O que Deus deseja de nós está inscrito em nosso mesmo ser, e nele temos que descobri-la. A prioridade não corresponde, portanto, às doutrinas, mas ao coração. Porque costuma ocorrer algo que é chamativo: quanto maior a insistência nas doutrinas e nas leis, mais frieza e petrificação no coração. Isto parece ser a reprovação que Jesus dirigia aos fariseus, ou seja, às pessoas que tendiam a absolutizar a religião: “honra-se a Deus com os lábios”, mas o coração está apagado.
É o que sai de dentro que determina a qualidade de uma pessoa. O que comemos pode fazer bem ou mal, mas não afeta nossa atitude espiritual A armadilha está em confiar mais na prática externa de uma norma que na atitude interna que depende só de nós. As práticas religiosas, muitas vezes, são um álibi para dispensar-nos da conversão do coração.

A contaminação e a poluição do meio ambiente são realidades por demais conhecida. Nas grandes cidades, o ar está cada vez mais irrespirável. Em algumas delas já se começou a regular o tráfego para diminuir o ni-
vel de poluentes, através da proibição de circulação de automóveis com determinados números de placa. Tal situação, juntamente com a mudança climática e a ecologia, é uma das preocupações dominantes das pessoas que vivem no mundo considerado “desenvolvido”.
Mas, junto à contaminação ambiental, que também afeta os povos em desenvolvimento, transformados em lixões dos países ricos, há outra contaminação mais profunda que temos esquecida. E, no evangelho de hoje, Jesus nos fala da necessidade de cuidar da ecologia interior.
Assim como está sendo proibida, cada vez mais, a circulação de veículos contaminantes, também se deveria impedir a saída às ruas de pessoas com mentes contaminadas, cheias de sentimentos poluídos, palavras ácidas, gestos agressivos, carregada de entulhos – mágoas, ira, inveja – que se acumulam no próprio coração. Seus passos sujam os caminhos de lama, deixando um rastro de tristeza e desalento; seu humor intoxica-se de raiva e arrogância; seu temperamento explode com frequência, expelindo tanta fuligem pelas chaminés da intolerância e do preconceito.

O termo “ecologia” não se refere apenas a uma “ecologia exterior”, ou seja, aos ecossistemas em seu instável equilíbrio. Engloba também toda uma “ecologia interior”, própria do ser humano, ou seja, o “mundo” de sua psique, de seus afetos, de seus dinamismos, de sua espiritualidade, de suas relações básicas, quer consigo e com os outros, quer com o mundo e com Deus.
Para ordenar a fragmentação interna precisamos dialogar com as energias instintivas e que se tornaram energias “dia-bólicas” (que dividem). Cada uma delas representa os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos... que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior.
São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações... que impedem a energia vital, a misericórdia de Deus fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados por nós mesmos e que interceptam a relação com Deus, com os outros e com as criaturas, portanto, com a plenitude da vida, e cortam nossas próprias potencialidades de vida.
Quando falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma conversão radical.
O convite a “ter um coração próximo a Deus” poderia traduzir-se deste modo: viver conscientes de nossa verdadeira identidade, em conexão com o que realmente somos – essa é a dimensão especificamente espiritual – o qual nos abrirá a uma vivência aberta e inclusiva, humilde e tolerante, prazerosa e compas-siva..., a partir da sintonia radical com Aquele em quem nos desvelamos e nos reconhecemos.


Texto bíblicoMc 7,1-8.14-15.21-23

Na oração:
Diante do Evangelho deste domingo, pare por uns instantes, esqueça a poluição do ar e do mar, a química que contamina a terra e envenena os alimentos e medicamentos, e pergunte a si mesmo(a):
- Como anda o meu equilíbrio ecobiológico?
- Tenho dialogado com meus órgãos interiores?
- Acariciado o meu coração? Respeito a delicadeza de meu estômago?
- Acompanho mentalmente meu fluxo sanguíneo?
- Tenho consciência de onde nascem minhas palavras?
- Tenho queimado a minha língua com as nódoas dos comentários maldosos da vida alheia?
- Meus olhos estão sujos pelas ilusões de poder, fama e riqueza? (Frei Betto)