sexta-feira, 10 de maio de 2024

Ascensão: amplitude de visão e de ação

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Ascensão do Senhor.

 “Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa-Nova a toda criatura” (Mc 16,15)

Ressurreição, Ascensão, sentar-se à direita de Deus, envio do Espírito Santo, são “mistérios” pascais.

O Mistério Pascal é tão rico e tão denso que não podemos abarcá-lo somente com uma imagem; por isso precisamos desdobrá-lo para poder experiênciá-lo de uma maneira mais profunda.

Celebrar a Ascensão de Jesus não significa, para os cristãos, algo diferente que celebrar sua Ressurreição. São só diferentes nomes para referir-se à mesma realidade: que, ao morrer, tanto Jesus como nós, mergulhamos na Vida de Deus.

Lucas, em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).

A fé na Ascensão não é aceitar que uma pessoa “subiu” aos céus. É aceitar que Jesus é o sentido de tudo, a revelação de Deus e do sentido da existência: Ele é o Senhor.

Nos relatos da Ascensão, normalmente nos preocupa muito saber o lugar de onde Jesus subiu aos céus e para onde Ele foi; mas o que importa é que nosso destino é o coração de Deus e Jesus revela a grandeza do ser humano capaz de alcançar a divindade.

Pela sua Ascensão, Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu.

Descobri-lo dentro de nós e nos outros é muito exigente e comprometedor. É muito mais cômodo continuar “olhando para o céu” e não sentirmos implicados com aquilo que está acontecendo ao nosso redor. Por isso, Ascensão é missão; é “descer” da montanha para as periferias da nossa Galileia (periferias existenciais, sociais, religiosas...) e ali prolongar a atividade libertadora de Jesus.

A Ascensão ocorre toda vez que, vivendo o Presente, transcendemos os limites temporais e nos experimentamos “ser em Deus”. Nestes momentos, nos alcança a Plenitude e saboreamos a Alegria.

Ao mergulhar na realidade, interna e externa, nos esbarramos n’Ele, o Ressuscitado.

A Ascensão do Ressuscitado, portanto, nos torna encarregados da missão de “fazer discípulos” à qual Ele, em sua glória, preside. Nós é que devemos reinventá-la a cada momento.

Celebrando a glorificação de Cristo, tomamos consciência de nossa própria vocação à glória.

A Ascensão é o lugar onde vai acontecer uma mudança profunda na vida de cada seguidor de Jesus: parti-mos para a missão; deixamos a Terra Santa, como os Apóstolos e, até o fim da vida, seremos os peregrinos de Cristo. Somos arrancados de tal experiência para adentrar-nos em um caminho de seguimento de horizontes desconhecidos, mas centrados no compromisso apostólico da missão na e da Igreja. “Passa-mos” da particularidade de um lugar para a universalidade da missão. A Ascensão pede de todos nós uma “amplitude de visão”, rompendo com tudo aquilo que atrofia e limita, nas diferentes dimensões da vida.

Saber-se continuadora da missão de Jesus, sustentada na bondade e na misericórdia do Abba e impulsionada pela força da Ruah: esta foi a experiência central da primitiva comunidade cristã em seu novo caminho, depois da Páscoa. Talvez por isto a pergunta dirigida aos discípulos no momento da Ascensão de Jesus: “por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” (At 1,10). A pergunta tira-os da imobilidade e os leva de volta a Jerusalém, ao lugar onde começarão a construir a grande comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. A pergunta os situa no lugar onde encontrarão, nesta vida, o “céu” que Deus quer presenteá-los.

Infelizmente, esta foi a eterna tentação: muitas igrejas e inúmeros cristãos, plantados, quietos, imóveis, ficaram olhando o “céu” durante séculos, com os braços cruzados. Pouco tinham a fazer neste mundo, além de resignar-se e esperar; seu campo de atuação não era o aqui e agora, senão o mais além. O mundo era “um vale de lágrimas” e a vida se definia como situação de passagem, espera de amanheceres que não dependiam deles, vale de sofrimentos sem consolo, morada do desencanto...

Ao contemplar a Ascensão de Jesus, muitos cristãos sentiam uma grande vontade de “subir” com Jesus, de fugir, de abandonar o mundo da violência, da injustiça, da desigualdade social, da fome, da violência... Diante da impossibilidade de “subir” com Ele, para além de nosso mundo caótico, eles se retiraram à vida privada, ao individualismo religioso, ao ritualismo, à salvação de sua alma, aos desertos, aos mosteiros, aos templos... para rezar, fazer penitências e mortificações, enquanto aguardavam a “segunda vinda” de Jesus.

Assim nasceu a “teologia do desencanto com o mundo”, como uma falsa leitura da Ascensão de Jesus.

Ainda hoje, são muitos aqueles que continuam olhando o céu, parados, fechados numa prática religiosa alienante, devocional e estéril, vivendo uma espiritualidade tóxica, distantes do compromisso com a transformação deste velho mundo. Também eles e elas merecem a reprimenda dos Atos dos Apóstolos: “Galileus, por que estais aí plantados, olhando o céu” (At 1,11).

A Ascensão de Jesus, curiosamente, é o contrário do movimento de “subida” ao céu; é um apelo a “descer”, a retornar à cidade, a deixar as alturas, os montes e as nuvens. É preciso olhar a terra, é preciso mobilizar as mãos em favor da mesma obra de Jesus, verdadeira sinfonia incompleta.

O cristão que tem os olhos fixos em Jesus também saberá olhar o chão, fazendo-se presente, de maneira cristificada, na realidade cotidiana. Esta é a desafiante missão de todo(a) seguidor(a) de Jesus: submergir-se na realidade, fazer-se cidadão(ã), “mundanizar-se”, unir-se a outros, lançar-se a gritar pelas ruas e praças que Jesus tinha razão e que seu projeto de humanização ainda é realizável, que ainda é possível recompor este velho quebra-cabeças da família humana, verdadeira Babel de egoísmo e falta de solidariedade, e acabar com esta onda de desigualdade, violência e miséria.

Construir um mundo de irmãos e não de “soberanos”: este é o desafio e a missão de todo cristão; o movimento despertado pela Ascensão significa um verdadeiro apelo a olhar o chão da vida e descer à realidade até transformá-la por dentro. Assim fez Jesus que, na sua encarnação, vida e morte, desceu, misturou-se com o mundo, fez-se solidário com todos os sofredores da história.

Uma igreja fechada, entrincheirada sobre si mesma, é uma igreja assustada que continua vivendo no cenáculo. Jesus tirou seus seguidores do templo, dos cenáculos e das estruturas eclesiásticas petrificadas: “ide por todo o mundo”. Tal apelo não faz referência somente a uma questão geográfica, mas humana: ide por todas as culturas, raças, crenças, trabalhe pelo diálogo ciência e fé, situações políticas e compromisso evangélico, anúncio da Boa Nova e cultura.

A evangelização implica uma dinâmica missionária de desinstalação, de agilidade e criatividade, de esperança.

A ascensão aos céus passa pela “descida aos infernos” da desumanização. Jesus, na sua encarnação, vida e morte, desceu ao mais profundo da condição humana, da miséria e da dor, da injustiça e da violência...

Nossa Ascensão passa pela descida ao baixo mundo dos empobrecidos, deprimidos, pisoteados, violentados, marginalizados; também é preciso descer às nossas próprias profundezas, marcadas, muitas vezes, por pesadas culpas, angústias, traumas e feridas. É preciso, em primeiro lugar, levar a boa-notícia do evangelho às dimensões esquecidas e excluídas de nossa vida interior.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 16,15-20

Na oração:

Para entrar no fluxo da Ascensão de Jesus é preciso, antes, “descer” até às profundezas de seu ser, até sua Galileia interior, abrindo espaço para que, também aí, chegue a luz do Evangelho.

Iluminado(a) pela Boa Notícia, “suba” em direção ao serviço e o compromisso com aqueles que estão à margem.

É preciso construir o “céu” neste chão da vida; sobre esta terra, no menor de nossos atos de amor, no menor de nossos gestos de gratuidade, a eternidade já está presente. Que esta eternidade seja saboreada desde agora.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Amizade Cristificada

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 6º Domingo da Páscoa (2024).

 

“Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo 15,15) 

Continuamos vivendo o percurso pascal; no relato do evangelho deste domingo, a Páscoa se expressa como o tempo dos três “as”: Amor, Amizade e Alegria.

O evangelista João põe na boca de Jesus um longo discurso de despedida, no qual recolhe aquilo que será a marca distintiva dos seus seguidores, para serem fiéis à Sua pessoa e ao Seu projeto. E a identidade original de quem O segue será a vivência do amor. Fomos criados à imagem do Deus que é amor; por isso, trazemos, no mais profundo do nosso ser, a “chama do amor divino”.

O amor que Jesus nos pede tem de surgir a partir de dentro; trata-se de manifestar o que é Deus no mais profundo de nosso ser. Quando amamos não é preciso dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu amor. Encontramo-nos, assim, envolvidos pelo amor de Deus.

Indecifrável como a obra de arte, o Amor nem se define nem se enquadra: é cada vez outro, novo, surpreendente, desconcertante..., embora tão antigo.

São João nos diz que “Deus é Amor (Ágape) e aquele que habita no Amor, habita em Deus e Deus habita nele” (1Jo 4,16). Portanto, é proposto ao ser humano uma experiência. Ele é chamado para exercitar sua capacidade de gratuidade e graça. Em um mundo onde tudo se paga, onde nada é gratuito, ele é chamado a ser presença gratuita, a viver a graça e a gratidão.

O amor que Deus tem por nós é absolutamente desinteressado, ativo e criativo, gratuito e livre. Ama aqueles que não são valorizados, aqueles que são desprezados e excluídos. O seu Amor é que valoriza o outro. A criatura não é amada porque tem valor por si mesma, mas tem valor porque é amada por Deus, que lhe comunica generosamente a sua própria riqueza. Nisso consiste a Criação: Deus, num transbordamento do seu amor intra-trinitário, deu o ser ao que não era nada.

Criados à imagem e semelhança do Deus Amor, somos capazes de Amor-Ágape, de amar aquele que não nos ama e não devemos nos privar dessa liberdade.

Não é porque as pessoas são amáveis que devemos amá-las; é na medida em que as amamos que são (para nós) amáveis.  A caridade é esse amor que não espera ser merecido, esse amor primeiro, gratuito, espontâneo e que, de fato, é a verdade do amor. Uma liberdade de amar o outro em sua diferença, de amar o divino no outro, de amar o outro como a nós mesmos, reconhecendo-nos nele.

Para aprender a amar é preciso sair de nossos hábitos, sair do conhecido; aprender a amar é sempre uma aventura. Se entrarmos nessa aventura, nossa vida será virada pelo avesso e completamente questionada.

Esse amor, ativo e primeiro, suscita em nós a gratidão que nos leva a corresponder com um amor-serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”. Por isso, esse amor é fonte de alegria, ou seja, um estado permanente de plenitude e bem-estar. Sem amor não é possível dar passos em direção a um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus.

Da mensagem de Jesus ressoa a surpreendente frase de sua despedida: “Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”.

Quem vive o mandamento do amor é, por isso mesmo, “amigo de Jesus”; e a amizade se mostra em ser introduzidos na intimidade de Jesus com seu Abbá, em ser confidente de Jesus. Jesus não pede a seus discípulos que sejam perfeitos em tudo: só no amor e na misericórdia.

“...se fizerdes o que vos mando”; tradução empobrecida, pois entre amigos não há quem manda, mas acolhida mútua. É como se Jesus dissesse: “sereis meus amigos se entrardes no circuito do amor que flui do Pai, passa por mim e circula entre vocês”; “sereis meus amigos se entrardes em sintonia com o amor ágape que brota do meu coração”. O amor é movimento, circula reforçando os laços, acolhendo... O amor é expansivo e contagiante. O amor une corações.

Quando falamos de amizade estamos falando de gratuidade, de lealdade, de igualdade, de não pedir nada em troca, de partilhar sem passar recibo... A amizade seja talvez a melhor relação humana que existe; é gratuita, livre, simbiótica. Dizer de alguém amigo é um tesouro. Os amigos se conhecem bem, há sinceridade entre eles, desejam sempre o bem do outro, sabem acompanhar as diversas situações da vida, aprendem a escutar e a dizer livremente para o bem do outro. A amizade é um lugar de acolhida contínua, de sentido do humor e de ajuda mútua.

Por isso, um(a) amigo(a) é um tesouro, e aquele(a) que tem um(a) amigo(a) tem uma conexão direta com as mais autênticas essências da vida.

A amizade é caminho compartilhado. Ninguém faz caminho sozinho, fazem juntos, e assim são amigos. A amizade implica neste plano com-corrência (correr juntos, para assim ajudar-se uns aos outros). Amizade é co-laboração (trabalho compartilhado). Frente àqueles que entendem a vida como luta ou competição, frente àqueles que procuram combater ou silenciar-se no processo da vida, frente àqueles que oprimem e dominam os outros, os amigos cooperam, se respeitam e trabalham juntos. Os amigos verdadeiros deixam de lado as opções partidaristas, os egoísmos particulares, e integram-se na busca comum, com a alegria de entar unidos, compartilhando os desafios e as perdas. Quem não sabe ou não quer colaborar na obra comum nunca será verdadeiro amigo.

Amigos são aqueles que se querem por querer-se, sem buscar a amizade por outros interesses. Mas a mesma amizade faz com que eles se ajudem em gesto de benevolência ativa: acolhem-se, perdoam-se, potenciam-se uns aos outros.

Desprovida de interesses mesquinhos, a amizade vale por si mesma, não pelo que faz. Mesmo assim, a autêntica amizade é a mais eficaz, pois sempre se expressa em gestos concretos de ajuda mútua. O que importa mais é uma existência compartilhada: ideais e busca, êxitos, fracassos, vida. 

Por isso, a amizade com a marca cristã se inspira n’Aquele que se revelou Amigo de todos, sobretudo dos mais pobres e excluídos

 

De uma comunidade cristã que deixa transparecer o Amor e prolonga a Amizade de Jesus, nasce a alegria. Só o amor profundo e a amizade sincera é fonte de alegria, de prazer completo. Assim desejava Jesus para sua comunidade: alegre, mensageira, aberta ao diferente... O amor e a amizade fazem de cada cristão um(a) irmão(ã) universal.

Alegria que brota do interior e é um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz filhos(as) de Deus, capazes de viver e saborear sua bondade e misericórdia.

O vocábulo “alegria” está carregado de emoções, sentimentos e aspirações nobres. Vincula-se ao estado de plenitude humana, à criatividade, ao entusiasmo, ao prazer, ao contentamento, à satisfação, ao regozijo, à felicidade. “Bem-aventurados os que sabem rir de si mesmos: nunca cessarão de se divertir”.

Ao nosso cristianismo lhes falta, com frequência, a alegria daquilo que se faz e se vive com amor. Ao nosso seguimento de Jesus Cristo nos falta o entusiasmo da inovação e nos sobra a tristeza daquilo que se repete sem a convicção de estar prolongando o que Jesus queria de nós; predomina, muitas vezes, uma vivência cristã marcada pelo medo, pelo legalismo, pelo ritualismo... e não pelo entusiasmo de sentir-nos colaboradores do Mestre da Galileia.

Não é correto que os cristãos associem com tanta frequência a fé à dor, à renúncia, à mortificação, mas à alegria, à vida em plenitude.

A “perfeita alegria”, como dizia S. Francisco de Assis, é o horizonte da Páscoa que, desde agora, dá sentido e plenifica nossa existência cotidiana. Não fomos destinados a viver em “vale de lágrimas”.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 15,9-17

Na oração:

Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.

- Faça memória dos(as) amigos(as) que foram ou são verdadeiros tesouros para você.

- Sua amizade com os outros está iluminada pela amizade de Jesus: gratuita, com-passiva, aberta, acolhedora...?