segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Santos(as) sem altares, nem devotos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade de Todos os Santos e Santas.

“Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-se… e começou a ensiná-los” (Mt 5,1-2) 

No próximo domingo (06/11/2022) celebraremos a festa de Todos os Santos e Santas, ou seja, todos aqueles(as) que, sem exceção, estão na Memória, na Entranha, no Consolo de Deus, na eterna Compaixão que regenera, na Grande Comunhão que é o coração do próprio Deus.

Ela nos recorda ainda que esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. A santidade de Deus é a vocação universal de todos, cada um à sua maneira.

Todos os santos e santas estão no coração do mundo pois são plenamente em Deus. Todos são santos(as), porque já vivem a Vida Eterna e dão alento ao coração do nosso tempo e do nosso mundo.

Nossa vocação é a santidade da Vida para além de todo sistema moral, para além de toda crença, para além de toda religião, porque fora da Igreja há salvação ou santidade.

Mais ainda. A santidade é nossa verdade mais íntima e universal.

Somos santos(as). Não somos santos(as) porque somos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medíocres e inclusive fracassados(as). Ainda não temos encontrado nossa plenitude, não temos realizado nosso ser verdadeiro, mas para esse horizonte caminhamos na santa comunhão de tudo quanto é. Somos um tesouro em vasos de argila em formação, e Deus é o paciente oleiro na sombra mais profunda de nosso barro.

O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra-chave: “Felizes”.

A felicidade, proclamada por Ele no evangelho deste domingo, é já uma realidade presente na Sua pessoa e na Sua missão. Todas e cada uma das bem-aventuranças são autobiográficas. Elas são, portanto, a expressão do que constitui o centro mesmo da pessoa de Jesus e da sua vida, dos seus sentimentos, atitudes; numa palavra, do seu mistério.

Poderíamos dizer que as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus. Elas são o compêndio do seu ministério. Não é lei que se impõe por si mesma; é confissão: “o Reino chegou”.

A primeira “canonização”, pois, teve lugar quando Jesus, num determinado dia, subiu à montanha e com grande solenidade declarou felizes os pobres, os aflitos por causa do Reino, os mansos que não recorrem à violência, os que tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, os que não tem segundas-intenções no coração, os que trabalham em favor da paz, os perseguidos por causa da justiça. Todos eles(as) são declarados felizes porque são os que mais se parecem com Deus, ou seja, deixam transparecer em suas vidas a santidade d’Ele. E a felicidade está justamente na vivência do chamado universal à santidade.

As Bem-aventuranças não, portanto, são uma doutrina, mas um estilo de vida, um modo de proceder. Jesus não prega diretamente uma moral. Proclama a “irrupção” da graça, do amor, da misericórdia, da santidade de Deus na história da humanidade.

Porque tem a certeza de que chegou a “hora” de Deus intervir na história, Jesus fica feliz e proclama fe-lizes” os até agora indefesos, oprimidos e marginalizados, mas que mantiveram viva a confiança em Deus.

Jesus fala da felicidade não no singular, mas no plural. Em outras palavras, o que Ele afirma é que a felicidade de cada um está em íntima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.

As bem-aventuranças compartilham uma mesma visão “macro-ecumêmica”: valem para todos os seres humanos. O Deus que nelas aparece não é “confessional”, não é “patrimônio” de uma religião específica; não exige nenhum ritual de nenhuma religião, senão o “rito” da simples religião humana: a pobreza, a opção pelos pobres, a transparência de coração, a fome e sede de justiça, a luta pela paz, a perseguição como consequência do empenho em favor da Causa do Reino... Essa “religião humana básica fundamental” é a que Jesus proclama como “código de santidade universal”, para todos os santos e santas, os de casa e os de fora, os do mundo “católico” e os de outras expressões religiosas...

Nesse sentido, a liturgia da festa de Todos os Santos e Santas vem nos indicar este caminho, ao apresentar o texto das Bem-aventuranças como um programa para viver a felicidade; e o motivo primeiro é porque todas elas são, na verdade, o caminho da santidade universal (acima e além de toda religião, pois elas são simples e profundamente humanas). As Bem-aventuranças são como o mapa de navegação para nossa vida; são o horizonte de sentido e o ambiente favorável para nossa santificação, entendida como empenho para viver com mais plenitude, segundo o querer de Deus.

Santos e santas são todos aqueles e aquelas que vivem com sentido e inspiração a vida de cada dia, deixando transparecer a “faísca de santidade” que o Deus Santo colocou no coração de cada um.

 A santidade é, pois, um dom recebido de Deus, que alimenta na pessoa o desejo e a disposição de “sair de si mesma” para viver a experiência do amor na relação com o mesmo Deus, no encontro com os outros e no cuidado e proteção da Criação.

“Viver a partir da santidade de Deus” representa a melhor definição da santidade cristã: reconhecer-nos como quem recebe tudo de Deus, deixar-nos amar e guiar por Ele, assemelhar-nos a Ele para tornar carne viva em nós os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem com as pessoas.

O Evangelho nos propõe um modelo de santidade muito mais dinâmico e próximo da vida cotidiana, com seus altos e baixos, alegrias e dores. Ele revela uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos cotidianos. O(a) santo(a) faz as coisas que todo mundo faz, mas faz de maneira diferente. Há um “mais” qualitativo. Há algo na conduta, no brilho do olhar, na bondade do gesto, na pureza do agir, na liberdade, na gratuidade que o faz ser diferente. Isso é ser santo(a).

É na vida cotidiana, com seus desafios, onde se tece a santidade e não em outro lugar. Pois a santidade não é uma questão de “separados” e de “segregados”, mas de viver a inserção na realidade até o mais profundo, inspirados na maneira original de Jesus “estar no mundo”. A grande maioria vive a santidade no anonimato ou, quando muito, na memória dos seus mais próximos ou daqueles a quem lhes causaram admiração profunda ou de quem aprenderam que viver de verdade podia ser feito de outra maneira; são tantos e tantas por quem sentimos admiração, respeito e desejo de imitá-los para dar um sentido diferente às nossas existências.

Homens e mulheres que se deixaram e se deixam moldar pelo amor, porque descobriram e descobrem que essa era e é a maior das riquezas, a única que lhes podia e lhes pode fazer felizes de verdade; deram-se conta, ao mesmo tempo, que, comunicando esse amor podiam fazer felizes também a outras pessoas. Um “amor” oblativo, sem credos nem ideologias; um amor que vai além da raça, cultura, condição social. Um amor que procede da intimidade mais profunda de seus corações, lugar exclusivamente reservado para o mais absoluto e infinito dos amores: o Deus de Jesus.

Nenhum desses santos e santas terão seus devotos, nem estão sobre os altares dos templos e ninguém escreverá livros sobre eles e elas; no entanto, são aqueles(as) que viveram e vivem o cotidiano criativo nos altares da vida, do compromisso e do serviço. Para eles e elas o melhor dos altares foi e é sua consciência. E o único e grande devoto é o próprio Deus que acreditou neles(as) desde o princípio e continuará fazendo por toda a eternidade: “Sede santos porque eu Sou Santo”.

Texto bíblico: Mt 5,1-11

Na oração:

A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser. A santidade é luz expansiva do divino que se faz visível no “modo contemplativo” de viver.

- Sua presença junto às pessoas é transparência da santidade de Deus?

Finados: morrer é dizer “sim” à eternidade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de todos os Fiéis Defuntos. 

“Que vossos rins estejam cingidos e as vossas lâmpadas acesas” (Lc 12,35) 

A morte, sempre estranha e, com frequência, incômoda; e no mundo ocidental ela fica escondida em locais funerários, afastada do ambiente familiar. Sem cair em extremismos, este fenômeno diz respeito a um dos problemas que temos como cultura: falar da morte nos dá medo, mesmo sabendo que é uma das poucas certezas que temos. Preferimos ridicularizá-la, negá-la ou silenciar, antes que reconhecer que é uma dimensão de nossa vida que não podemos ignorar. E é questão de tempo, sempre termina por chegar, em ocasiões de uma maneira inesperada: tantas vidas ceifadas, tantas mortes prematuras, tantas histórias truncadas em muitos lugares de nosso mundo.

São mães, pais, maridos, mulheres, irmãos, filhos, amigos, avós, vizinhos, companheiros de trabalho, de comunidade...; tantos que faleceram por diferentes causas e que estão presentes em nossa memória, na lista de ausências. A morte traz dor pela ausência, saudades pelos momentos que se foram, desejo por um presente no qual não estão. Na fé, que ajuda a trazer um horizonte de sentido, a memória dos que partiram desperta também uma profunda gratidão pelas vidas daqueles(as) que amamos, pelas “marcas” que deixaram em nossas vidas, pelas presenças inspiradoras que despertam uma serena consolação, pela esperança de que, um dia, de outro modo, voltaremos a nos encontrar e não haverá mais tristeza, nem pranto, nem dor... Eles e elas, na vida foram, aos poucos, nascendo e nascendo até acabar de “nascer” em Deus.

A vida se transforma no coração da Vida, em Deus. Então, vale a pena, no dia de hoje, ativar a “memória agradecida”.

Neste Dia de Finados, passarão por nosso coração e pela nossa memória, de um modo muito especial e íntimo, aquelas pessoas que foram e são parte de nossa vida e que, ao fazerem a “travessia” para outra margem continuam presentes, amando-nos e sendo amadas por nós. Precisamos parar um momento e acender uma vela por dentro, e escutar. Escutar os ecos que suas presenças nos deixaram, suas palavras, seus gestos... Quê palavras, olhares, gestos não quero esquecer das pessoas de minha vida que já não estão mais aqui? Segundo Guimarães Rosa, as pessoas não morrem, ficam encantadas no nosso coração e na nossa memória.

Finados é um “dia memorial”: memória agradecida que não nos fixa na saudade do passado, mas, nos instiga a prolongar na nossa vida o modo original de viver de tantas pessoas que agora estão “no coração de Deus”. Este é o objetivo dos ritos de finados: ajudar-nos a processar a vida, a morte, a dor, a alegria..., carregados de oração e emoção que move nosso interior à contemplação.

Eles e elas continuam estando presentes, não só na esperança de futuro. Continuam estando em nós que os recordamos (visitamos de novo com o coração). Continuam presentes no amor que partilhamos, na memória dos abraços que ninguém pode nos arrancar, nas imagens que cada um registra em nossa memória, nas conversações que nos constroem, nas canções que nos fazem evocá-los, no sorriso com o qual acolhemos uma lembrança, naquilo que deles(as) aprendemos, nos sentimentos mais elevados que os fazem sentir orgulhosos de nós. Continuam estando em nós, porque quando amamos, decidimos que alguém permaneça conosco para sempre. Até mais além da vida; até mais além da morte.

Há tanto que agradecer a estas pessoas que, como silencioso fermento, fizeram história com Deus no interior de nossa pobre humanidade. Foram presenças inspiradoras que melhoraram uma parte do mundo e nossa gratidão as acompanha. Ditosos eles e elas, e ditosos também nós porque, na comunhão com aqueles(as) que já vivem a Páscoa definitiva, somos movidos a seguir seus passos pelo caminho da vida, para sermos dispensadores humildes de felicidade, compaixão, mansidão, famintos e sedentos de justiça, de paz.

Sabemos que dentro de cada pessoa encontra-se o desejo de eternidade gravado no coração. É um desejo instintivo de transcender-se para além dos limites que nos apresentam o cotidiano, a rotina, a evidência de que pouco a pouco nosso corpo se deteriora.

Por isso, costumamos nos referir à vida em termos de caminho, itinerário ou processo no qual o traçado do mesmo são nossos próprios passos, um processo em constante ascendência, inevitavelmente atravessado por dificuldades, sofrimentos e crises. E enquanto caminhamos e ascendemos vamos nos dando conta de que o verdadeiro progresso se dá “para dentro”. E o horizonte de eternidade vai se vislumbrando.

A vida é simplesmente eterna. E ela se aninha em nós e, passado certo lapso temporal, ela segue seu curso pela eternidade afora. Nós não acabamos na morte, pois ela representa a porta de ingresso ao mundo que não conhece a morte, onde não há o tempo, mas só a eternidade.

Com a morte começa a vida para sempre, no coração do Deus amor. E se a morte é capaz de nos privar do dom da vida, o “amor tem poder para nos devolvê-la”, nos afirma o bispo Balduino de Cantebery.

Neste Dia de Finados, fazer memória das pessoas que já fizeram a travessia é despertar a reverência pela vida. A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que desperta o assombro e o encantamento.

Fazer memória daqueles que viveram intensamente (mesmo que por pouco tempo) nos mobiliza e nos compromete a viver mais intensamente. E viver intensamente é viver aqui e agora de “modo eterno”.

A vida é dom que não pode ser desperdiçado. Para quê viver? Tem sentido? Quê marcas quero deixar?...

Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia a dia, carregá-la de sentido.

“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).

Quem viveu intensamente deixa “marcas”; fazemos, então, memória dessas marcas. “Aquilo que a memória amou fica eterno” (Adélia Prado). A memória é a presença da eternidade em nós. Tudo o que recordamos da pessoa que “já partiu” é semente de eternidade. Sua passagem entre nós não foi em vão.

A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas. De travessias. Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada. Nesse caminho em direção à plenitude, um dia, todos nós partiremos como seres imortais que somos ao encontro d’Aquele que nos criou.

Portanto, como seguidores de Jesus, no Dia de Finados vamos celebrar a vida, a vida verdadeira, a plenitude dos irmãos que já vivem para sempre, que estão no coração de Deus. Porque a vida, como um rio, tem duas margens; a ponte para cruzar de uma margem à outra é construída diariamente com o amor, a fraternidade, a solidariedade, a esperança..., que ao longo da vida vamos semeando em nós, nos outros e na criação, dando a esta vida uma dimensão celestial.

A vida se expande quando compartilhada e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. E a morte é o instante da expansão plena para aquele que soube dar um sentido inspirador à sua existência. Podemos afirmar, então, com muita propriedade, que todos morremos para o interior da Vida.

Texto bíblico: Lc 12,35-40

Na oração:

Para viver despertos é importante viver com mais calma, cuidar do silêncio e estar mais atentos aos chamados do coração. Só quem ama e serve, vive intensamente, com alegria e vitalidade, despertado para o essencial. Uma certeza podemos ter: o Espírito está sempre pronto a criar, recriar, a transformar, a renovar e “fazer novas todas as coisas”, abrindo-nos a um novo tempo com a feliz esperança de “novos céus e nova terra”, num mundo outro e pleno de vida.

- No “silêncio memorial” cala a palavra, mas o coração sente a voz daqueles(as) que já estão no silêncio pleno de Deus. Deixe vir à tona a presença de pessoas que fizeram “diferença” na sua vida. Alimente gratidão.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Zaqueu, “o homem que transitava pelos galhos”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 31º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“Então, ele correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus, que devia passar por ali” (Lc 19,4)

O Evangelho revela um mundo povoado por encontros e desencontros, numa rica variedade. Jesus se encontra com amigos e opositores, ricos e pobres, homens e mulheres, indivíduos, grupos e multidões, Deus, seu Pai. Algumas vezes é Ele quem toma a iniciativa para o encontro, e outras vezes são os outros que o encontram, pois já o estavam buscando ou se cruzam com ele casualmente.

Seus encontros e desencontros tem lugar no interior das casas, nas sinagogas e inclusive no templo, mas também no caminho e ao ar livre, no campo e à beira-mar, andando, sentado, de pé, numa barca ou num monte. O lugar de encontros e desencontros acaba sendo a vida, e nenhum de seus espaços fica à margem. Jesus se encontra e se deixa encontrar a partir de carências humanas, necessidades e desejos, insatisfações, marginalizações e irregularidades.

Jesus, com sua presença inspiradora e provocativa, transforma os espaços de encontro, mudando seu sentido, de forma que qualquer lugar é lugar adequado para estar com Ele, ao seu lado ou à sua frente.

Os encontros, além disso, são progressivamente inclusivos e reveladores do ser humano: quem se encontra com Jesus ou é encontrado por Ele fica a descoberto, desvela seu interior e mostra quem é no fundo de si mesmo. Por outro lado, os encontros contribuem também para clarificar a identidade de Jesus. Revelam quem e como é Jesus. E desvelam quem é e como é cada um.

Essa é a nossa vocação enquanto seguidores(as) de Jesus: converter a “indiferença” em “encontro”, o diferente em convidado, o estranho em amigo, e criar o espaço livre e sem medo, no qual a fraternidade pode ser experimentada em plenitude.

Na realidade, aqui se trata de um movimento expansivo onde se dá a travessia da indiferença ao encontro. Tal passagem é repleta de dificuldades: nossa sociedade é marcada pela presença de pessoas temerosas, defensivas e agressivas, agarrando-se ansiosamente ao seu modo fechado de viver, inclinadas a olhar ao redor com suspeitas, sempre à espera de que um inimigo apareça de repente e cause algum dano.

A indiferença e a hostilidade campeiam nas redes sociais e a xenofobia circula como um veneno: daí a agressividade preconceituosa no campo político-social-religioso-racial-sexual...

De fato, ultimamente, os “estranhos” e “diferentes” tornaram-se mais sujeitos à hostilidade do que à hospitalidade: protegemos nossas casas com cães e trancas duplas, nossos edifícios com vigilantes, nossos colégios com guardas, nossas estradas com policiais, nossos aeroportos com seguranças, nossas cidades com polícia armada...

Nosso coração pode querer ajudar os outros e mostrar simpatia para com os pobres, solitários, rejeitados, minoritários...: no entanto, rodeamo-nos com um muro de medo e de sentimentos hostis, evitando instintivamente pessoas e lugares que possam nos lembrar de nossas boas intenções.

Em um mundo tão competitivo, mesmo pessoas próximas, como colegas de classe, de equipe, de trabalho, todos podem ficar infectados pelo ódio e pela hostilidade quando sentem o outro como uma ameaça à sua segurança pessoal.

Muitas vezes, instituições criadas para oferecer espaço e tempo propícios para o desenvolvimento dos encontros hospitaleiros (família, escola, religião...), tornam-se tão dominadas pelo “defensismo” hostil que acabam atrofiando e bloqueando o melhor que cada pessoa traz em seu coração.

Encontro hospitaleiro não é mudar as pessoas, mas oferecer a elas um espaço no qual a mudança pode acontecer. Não é trazer homens e mulheres para o nosso círculo, mas oferecer uma liberdade sem as amarras de linhas divisórias. A hospitalidade não é um convite sutil para adotar o estilo de vida do anfitrião, mas a dádiva de uma chance para que o hóspede descubra o seu próprio estilo.

Vamos contemplar uma cena típica de encontro, no evangelho de Lucas deste domingo. Os protagonistas da cena, Jesus e Zaqueu, são duas pessoas completamente diferentes entre si, diametralmente opostas; porém, procuram-se mutuamente.

O encontro de ambos acontece na estrada, onde caminham, onde ocorrem os acontecimentos do dia a dia, onde a vida transcorre, onde passam os dias e os anos.

A agitação, a pressa e o entusiasmo, com os quais se pôs à procura do Mestre, eram a clara demonstração de que surgira em Zaqueu uma estranha inquietude.

O nome e a pessoa de Jesus tiraram o véu que encobria o vazio de seu coração, a solidão na qual se encontrava, a insignificância de seus próprios dias.

Para saber “quem é Ele” é preciso sair da multidão; Zaqueu não fica constrangido em subir nos galhos de uma árvore e aguardar; este seu gesto abre possibilidade para que Jesus o veja, o chame pelo nome e o convide a descer depressa, pois deseja ficar em sua casa. Situar-se sobre os galhos pode ser um bom ponto de partida para iniciar um encontro. Mas, Zaqueu não pode permanecer aí; é como se Jesus dissesse: “Não fique aí, acima dos outros, no alto de sua vaidade! desça até às raízes de sua vida! o decisivo acontece nas profundezas de sua casa interior; descerei com você para cearmos juntos”.

Um convite que desfaz os medos e as culpas de quem se sabe pecador e que abre um espaço de esperança, permitindo-lhe uma mudança de vida. Não há no relato nenhuma palavra de condenação e sim uma certa urgência em “descer depressa”. Jesus não quer desperdiçar a oportunidade de viver um encontro com aquele que não podia encontrar-se com ninguém, pois era um explorador. Também Zaqueu não desperdiçou a oportunidade e recebeu Jesus com alegria em sua casa.

Em Zaqueu aconteceu uma mudança de perspectiva decisiva, radical. Anteriormente contemplava os outros a partir dos galhos do próprio ego.

Agora ele não está mais sozinho e não se sente mais uma pessoa insignificante. O olhar do Mestre de Nazaré encheu-lhe o coração; a sua casa não está mais vazia; a tristeza não o sufoca mais. Finalmente, ele descobriu a luz de um olhar e experimentou a ternura de ser procurado e amado.

Não foi preciso que Jesus dissesse muitas coisas a Zaqueu para que este encontrasse um tesouro em seu interior, muito maior que todas as riquezas acumuladas; seus desejos desordenados ficam polarizados por aquele hóspede inesperado que vai transformar daí em diante sua vida: compartilhar o que tem com os pobres e devolver com medida generosa aquilo que roubou. O encontro com Jesus faz Zaqueu alargar seu espaço interior para se encontrar com os outros; ou melhor, amplia seu coração para deixar os outros entrarem em sua vida. Um encontro que desencadeia outros encontros.

Zaqueu, um personagem instigante em quem nos vemos; seu modo de proceder des-vela atitudes de todos nós. Quem de nós não precisou afastar-se da multidão e subir a um lugar mais alto para poder ver por cima dos obstáculos? Há sempre em nossa vida momentos nos quais, por algum motivo, queremos “ver mais além”, ampliar nossos horizontes, sair de nossos espaços estreitos e rotineiros. Há muitas coisas que nos impedem sonhar mais alto, respirar novos ares, ativar o espírito de busca... Precisamos fazer alto diferente, sermos mais ousados e criativos...

Os galhos de uma árvore podem oferecer uma visão mais ampliada da realidade, do contexto social, mas não podemos permanecer aí; é preciso descer ao chão da vida; no meio dos galhos não há possibilidade de viver a acolhida e o compromisso com o outro. Situar-nos sobre os galhos não pode ser uma atitude permanente. Alguém, lá de baixo, nos apela: “Desça depressa, pois hoje devo ficar em sua casa!”.

Texto bíblico: Lc 19,1-10

Na oração:

Todo encontro transformador implica “troca de olhar”.

Olhar para Jesus provoca, convoca, exige descer dos galhos da acomodação, da “zona de conforto” e tomar posição. Olhar para Ele e ser por Ele olhado implica disposição, exposição, compromisso para com a mudança. Nada estático, intimista, mas dinâmico, impulsionador de nova vida, novos envios, nova missão...

- “Desça, acompanhado(a), à raízes de sua vida”: quais as verdadeiras “riquezas” ali escondidas?

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

“A única coisa perfeita do ser humano é a sua imperfeição”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 30º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“A única coisa perfeita do ser humano é a sua imperfeição”(Isaac Rubin)

“O publicano voltou para sua casa justificado” (Lc 18,14) 

Se algo fica patente no Evangelho deste domingo é a denúncia, por parte de Jesus, do perfeccionismo farisaico. Fariseus de ontem e de hoje. O tão proclamado “ideal de perfeição” chega a enraizar-se tão profundamente na vivência religiosa que acaba produzindo consequências desastrosas para as pessoas. A busca de perfeição torna-as rígidas, legalistas e intolerantes; seu “deus” é pura projeção de sua rigidez e moralismo: um “deus desumano” que cobra até o último centavo e ameaça sempre com o “inferno”.

A Bíblia nunca nos apresenta, como modelos de fé, pessoas perfeitas e sem falhas, mas sim, justamente pessoas marcadas pela fragilidade e fracasso e que colocaram sua esperança unicamente em Deus, ao invocarem-no do fundo do abismo.

Jesus, através de uma simples parábola, desmascara uma religião centrada no moralismo e no julgamento dos outros. Nesta parábola, Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.

Ambos vão ao templo e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos.

De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus. O risco do “farisaísmo” é subir o pedestal da “perfeição” e do “legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.

Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus.

Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego.

Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes, seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.

A salvação que esperamos não é fruto de nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai.

Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.

Na sua auto-suficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. O publicano, no entanto, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração.

Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração auto-suficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transformar a pessoa.

A palavra latina “humilitas” está relacionada com “húmus”, com terra.

Ser “humano” é reconhecer-se terroso, argiloso; é por essa razão que somos todos irmãos já que somos todos feitos de argila. Somos “argila” e devemos cuidá-la, cultivá-la e fornecer-lhe as condições para mantê-la aberta ao Transcendente. A “humildade” é a própria essência do ser humano; ela é a própria condição para ser aquilo que se é: para ser “humano”. Essa é a verdade de nossa humanidade.

Somente o humilde, que está preparado para abraçar seu húmus, sua humanidade, sua fragilidade, sua sombra, experimentará o Deus verdadeiro.

Só a aceitação de sua verdade completa conduzi-lo-á no caminho da libertação. E a verdade é que em cada um jazem unidas a luz e a sombra. Em cada santo dorme um pecador, e não reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme também um santo, e não o perceber supõe um empobrecimento humano, desesperança e vazio.

Numa espiritualidade perfeccionista, o ideal é o ser humano puro, sem defeitos nem fraquezas. Mas isso leva a um rigorismo moral, contra quem se dirige a parábola do “publicano e do fariseu”.

Aqui está a aparente contradição da espiritualidade cristã: nós “subimos” para Deus precisamente quando “descemos” à nossa realidade humana.

Nesse sentido, o caminho para Deus não é visto como uma estrada de mão única que nos leva sempre para o alto, em direção às virtudes e à perfeição. Pelo contrário, o caminho para Deus passa pela limitação e fragilidade, pelos erros e desvios enganosos, pelo fracasso e pela decepção consigo mesmo.

Quem se identifica com “ideais” muito elevados, quem se exalta a si mesmo na busca da “perfeição”, mais cedo ou mais tarde terá de confrontar-se com suas “sombras”, será forçado a tomar consciência de sua condição humana e terrena, de seu “húmus”.

Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconci-

lia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.

Na parábola acima mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de nossa própria pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se considera justo e rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da super-exigência, que se identifica com a imagem idealizada de nós mesmos e se alimenta do orgulho. Mas junto a ele, e com frequência sufocado, vive “outro eu” que teve de esconder-se porque não se sentiu reconhecido em sua verdade nem aceito em seus limites.

A parábola revela-nos que a reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar toda a nossa frágil realidade, em toda a sua verdade e, a partir dessa humildade, começar a viver em gratuidade e em gratidão.

A parábola nos fala da necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre publicano interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em Jesus.

Será justamente a partir da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que poderemos nos abrir à experiência da gratuidade; é quando nos encontramos sem nada que sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons da graça divina.

Segundo a espiritualidade que parte do “chão da vida”, ali pode estar a maior de todas as chances, ali pode estar também nosso tesouro. É ali que entramos em contato com nossa verdadeira essência. E é ali que alguma coisa poderá ganhar vida e desabrochar.

Dorotéo de Gaza disse certa vez: “Teu entulho seja teu pedagogo”.

Onde nós caímos, onde nos afastamos de Deus, é que aprendemos uma lição, a lição que a busca da perfeição não é capaz de nos ensinar. Justamente onde nos deparamos com nossas fraquezas pessoais é que nos tornamos abertos para Deus. Na nossa fraqueza somos capazes de reconhecer a Vontade que Deus tem para conosco e o que Ele poderá fazer de nós quando Ele realizar totalmente sua graça em nós.

Deus nos educa justamente também através de nossos fracassos, através de nossos escombros.

“Descer” à nossa realidade, significa considerar a experiência da impotência e do fracasso como o lugar da verdadeira oração e como chance de chegarmos a uma nova relação pessoal com Deus.

É decisiva a reconciliação com todas as paixões, com todas as feridas, com todas as fragilidades..., pois todas elas podem levar-nos a Deus. Não é preciso outra coisa senão “descer” até onde elas se encontram e interrogar o que elas têm a nos dizer. Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus: descobrir novas possibilidades de vida e de encontro com Deus.

O Amor de Deus se mistura com nosso pobre amor, de modo que os dois se tornam um: eis o despertar do coração! Eis a verdadeira espiritualidade!  

Texto bíblicoLucas 18,9-14

Na oração:

Quando nos vemos demasiadamente organizados, demasiadamente perfeitos, exigentes, rígidos, ansiosos, agressivos..., agiríamos bem perguntando-nos o que o nosso “ego” perfeccionista está escondendo.

- Quais são as “marcas” da perfeição impregnadas no seu interior pela formação familiar, pela religião...?

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

“Das Profundezas, Senhor, Clamo a Ti...” (Sl l30,l)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 29º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por Ele?” (Lc 18,7)

Na oração, mergulhamos em Deus e liberamos em nós profundidades que desconhecemos.

Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Descobriremos recursos, potencialidades de conhecimento e de amor ainda inexploradas, que nascerão para a vida sob a ação do olhar de Deus. Ele é a verdadeira fonte do nosso ser, mais próxima de nós do que nós de nós mesmos.

Quando mergulhamos nas profundidades do oceano interior ficamos fascinados pelo esplendor daquilo que contemplamos. Esse mundo de silêncio e riquezas torna-se inesquecível para nós.

O evangelho deste domingo nos ajuda a buscar inspiração para a chamada “oração de petição”. Não pedimos humilhados, temerosos, como o servo diante de seu senhor. Não se trata de “informar” a Deus, mas “educar nossos olhos” para descobrir sua presença amorosa e providente; não convencer a Ele, mas convencer-nos, animar-nos e converter-nos para entrarmos no fluxo do Amor divino.

Então, todos os sentimentos e desejos, situados em sua justa relação, podem brotar no nosso coração orante: agradecer, adorar, deixar-nos inundar pela confiança e perdão...

O ser humano é um indigente que pede, descobrindo Deus em seu interior, pedindo com Ele e n’Ele. “Clamar” nos desperta para entrar em sintonia com a presença divina que nunca nos abandona.

Toda a vida é isto: pedir, buscar, clamar... Evidentemente, aquele que pede, busca e clama está se colocando em movimento, está caminhando, está saindo de si... A oração é mobilizadora, nos arranca da passividade e nos faz entrar em sintonia com o querer e o desejo de Deus: que vivamos intensamente. Tudo é de Deus em nossa vida, mas tudo é nosso. Nós vamos nos tornando mais gente (mais humanos) na medida em que somos oração.

Nessa direção se situa a parábola da viúva deste domingo, a quem a lei e o direito não lhe davam segurança; só lhe restava seu rosto indignado e seu grito suplicante para exigir justiça, sendo assim capaz de impactar e mudar o coração de um juiz iníquo.

Nas parábolas de Jesus aparecem muitas mulheres: a que perdeu a moeda (Lc l15,8-10), a viúva que depositou dois trocados no cofre do templo e era tudo o que tinha (Mc 12,41-44), a pobre viúva, corajosa, que enfrentou um juiz (Lc 18,1-8).

Elas nunca são apresentadas como discriminadas, mas com toda sua dignidade, à altura dos homens.

Na tradição bíblica, a viúva é, junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha, sem a proteção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que abusam dela.

Na parábola deste domingo, a viúva é apresentada como modelo de atitude diante de Deus pela sua persistência, pela sua coragem frente a um juiz surdo à voz de Deus e indiferente ao sofrimento dos oprimidos. Ela não desiste, continua lutando por si mesma e por seu direito à vida, indo ao juiz dia após dia.

A pobre viúva, longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não ser sua voz para gritar e reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me justiça!”. Seu pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.

Podemos também interpretar a parábola do juiz e da viúva como uma imagem do nosso interior: lugar da nossa intuição que nos diz que possuímos um brilho divino, que somos seres originais, filhos e filhos de Deus. Nosso interior representa os sonhos que carregamos durante nossa vida, os recursos que ainda não foram mobilizados, as possibilidades que não foram ativadas... Nele se faz visível algum traço do rosto do Deus vivo, afinal, nosso eu profundo é sua morada sagrada.

Mas, nosso interior carrega também um tribunal com um juiz frio e insensível, que, numa postura arrogante, nos julga de forma excessivamente dura, e, às vezes, nos rejeita e nos condena constantemente; ele emite juízos taxativos, cortantes, condenatórios, alimentando em nós sentimentos de culpa e impotência.

Ele tem o catálogo de leis nas mãos e é implacável mesmo diante dos mínimos deslizes, distribuindo prêmios (poucos) e castigos (abundância).

Em cada um de nós o instinto de julgar está enraizado profundamente; podemos até dizer que todos nascemos portadores de uma cátedra de juiz. Muitos cultivam ardorosamente esta vocação de juiz e encontram abundantes ocasiões para praticar juízos, sobre si mesmos e sobre os outros, submetendo-se a um horário esgotador. Daí a proliferação de “tribunais ambulantes e permanentes”.

No Evangelho, nos encontramos com algumas expressões categóricas que nos convidam a abandonar este ofício bastante perigoso. Muitos, com seu amadurecimento, ficam persuadidos de que existem coisas mais importantes a fazer do que dedicar-se a serem juízes.

Embora se trate de uma grave enfermidade, esta “síndrome de juiz” é curável. Existem muitas terapias que podem arrancar a cadeira do juiz e desalojá-lo de seu ofício.

Na parábola da viúva e do juiz injusto Jesus nos mostra como podemos conviver com o juiz interior. Como a viúva, nós nos vemos ameaçados por um inimigo – pode ser um inimigo interior ou exterior ou um padrão de comportamento que não nos permite viver com serenidade e paz.

Nesse contexto, o juiz representaria nosso juiz interior, que nos despreza continuamente e nos julga desprezíveis por termos ideais tão altos ou exigências tão ambiciosas para nós mesmos.

Nessa interpretação, a oração também passa a ser o lugar onde nosso interior encontra justiça, onde o juiz interior é desapoderado. Na oração nos tornamos cientes da nossa dignidade como seres humanos, que fomos criados por Deus e que Ele nos julga capazes de realizarmos nossos desejos. Por meio dela, entramos em contato com a imagem única e singular que o Pai tem de nós; toda auto-depreciação e auto-condenação se dissolvem durante esse momento.

Se orarmos com essa parábola em mente, a nossa oração adquire uma força diferente.

Nesse sentido, a oração é o espaço onde a dimensão feminina é despertada através do seu clamor, da sua insistência e perseverança.

O ser humano carrega dentro de si amor e agressão, razão e emoção, gentileza e dureza, juiz e viúva, animus e anima – dimensão masculina e dimensão feminina da alma.

Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. A arte da humanização consiste na reconciliação da viúva com o juiz interior. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos, julgadores, ofensivos...

Jesus nos apresenta a oração como caminho para esvaziar o ofício do nosso juiz interior. No espaço da oração experimentamos nosso direito à vida; ali encontramos paz, ajuda e cura. Ao mesmo tempo, a oração nos leva ao espaço interior do silêncio, onde o juiz é desarmado de sua arrogância.

Com o juiz silenciado, acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os juízos, os sentimentos de culpa...  Morre o “juiz” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções. Com isso, nossa vida torna-se mais leve, os medos se vão e a harmonia toma assento em nosso coração.

Texto bíblico: Lc 18,1-8

Na oração:

A oração concebida como clamor nos salva do intimismo narcisista e do individualismo. Ela nos re-situa como criaturas finitas, mas também à imagem e semelhança de Deus e desejosas de comunhão e de justiça; ela nos faz sentir-nos corpo com toda a humanidade e a criação que geme dores de parto; ela já é o vislumbramento de outro mundo possível.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Compaixão e gratidão: sentimentos humanos mais nobres

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 28º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

 “Mestre, tem compaixão de nós!” (Lc 17,13)

“...atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (Lc 17,16)

Jesus está a caminho, quase chegando à etapa final da viagem: Jerusalém. A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto misericordioso de Deus aos homens. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.

Entre Jesus e aquela estrada, que conduz a Jerusalém, há uma relação vital: Ele é o “autor” daquela estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à Cidade santa, à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.

Logo que Jesus entrou na aldeia, “dez leprosos” foram ao seu encontro. Pela narração do evangelista, temos a impressão de que não há mais ninguém na cena: Jesus parece estar sozinho com os leprosos. A aldeia se apresenta surpreendentemente vazia. É óbvio, os leprosos deviam estar separados e longe de todos.

Na verdade, a lepra era entendida como manifestação de uma condição de pecado.

Os leprosos, embora mantivessem a devida distância, vão ao encontro de Jesus, gritando.

Aqueles pobres miseráveis O buscam como o “misericordioso”: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.

É uma oração surpreendente, na qual o homem de Nazaré é chamado pelo próprio nome.

Jesus, por sua vez, pousa sobre eles o seu “olhar” e os envolve com tanta atenção e sedução, que os dez não hesitam, nem um momento sequer, em pôr em prática, com confiança, a ordem que lhes foi dada: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”. Assim, Jesus se põe com eles na estrada da esperança, na estrada da experiência da solidariedade que cura e os acompanha, mesmo de longe, até aos sacerdotes.

A recuperação da saúde deles se torna também re-inserção na sociedade, no espaço familiar e na comunidade religiosa. Eles não serão mais rejeitados.

Dois sentimentos nobres são des-velados no relato deste domingo: a compaixão e a gratidão.

Dois sentimentos que se expressam como duas atitudes básicas na vida; por um lado, revelam a maturidade da pessoa e, por outro, tornam possível uma convivência harmoniosa e construtiva.

Mas, como toda arte, tais atitudes requerem um cuidado expresso e cotidiano. A partir do contexto e da situação em que cada um se encontra na vivência destes sentimentos nobres, sempre é possível dar passos nessa dupla direção, favorecendo conscientemente ser compassivos e agradecidos.

Considerados pecadores e condenados ao ostracismo, afastados de qualquer convivência social e de todo contato humano, com proibição expressa de se aproximarem de qualquer pessoa, os leprosos padeciam, esperando a morte, em colônias mais ou menos numerosas.

Compreende-se que, nessa situação, clamassem por compaixão. O ser humano sempre precisa que os demais “se coloquem em sua pele”, compreendam sua situação e seu comportamento. Mas essa necessidade se faz mais aguda quanto mais frágil e vulnerável se sente.

Esse é o significado profundo do termo “compaixão”: sentir com o outro e agir como consequência, buscando uma solução para a situação de extrema necessidade.

Jesus vive uma contínua travessia e sai ao encontro dos oprimidos e excluídos de todo tipo. Preocupa-se com todos os que encontra em seu caminho, sobretudo aqueles que estão atrofiados em sua vida. Sem a compaixão de Jesus, o relato seria impossível.

É da margem da exclusão que brotam os clamores por compaixão; e Jesus, com sua sensibilidade ativada, deixa-se afetar pelos gritos dos excluídos.

Os leprosos pedem compaixão a Jesus. Desejam ser compadecidos, perceber que sua desgraça não passa desapercebida e sentir o calor da compreensão de alguém significativo e com autoridade. Novamente, Jesus revela que só a compaixão não é suficiente e que permanecer na esfera dos sentimentos não soluciona o problema. Requer-se uma ação que ajude à pessoa a recuperar sua dignidade. Esta é a chave da misericórdia, ou seja, colocar o coração-ação na miséria humana e restaurá-la a partir de dentro.

A gratidão, por sua vez, tem a ver com nosso ser essencial, pois ativa o que há de melhor em nós.

Ela nasce do nosso eu profundo e flui por todos os membros, passa por todos os poros do nosso corpo. Não deixa sem tocar nenhuma parte do nosso ser. Abarca tudo o que somos e desperta o melhor que possamos imaginar ou que possamos aspirar.

No evangelho de hoje é, precisamente, alguém vindo de fora, desprezado pelos de dentro, o único que sabe reconhecer o dom recebido de Deus, dando uma magistral lição àqueles que não souberam agradecer.

Só um retornou para dar graças; só um se deixou levar pelo impulso vital da gratidão. Os outros nove (supõe-se que eram judeus), se sentiram na obrigação de cumprir o que a lei mandava: apresentar-se ao sacerdote para que lhe declarasse puro e pudesse ser reintegrado à sociedade. Para eles, voltar a fazer parte da instituição religiosa e social era a verdadeira salvação. Os nove voltam a submeter-se ao abrigo da instituição: vão ao encontro com Deus no templo e nos ritos. O Samaritano, no entanto, sentiu ser mais urgente voltar para agradecer. Foi aquele que se deixou conduzir pelo coração, porque, livre das ataduras da lei, se atreveu a expressar sua vivência profunda. Este, encontra a presença de Deus em Jesus. É mais importante responder vitalmente ao dom de Deus que o cumprimento de alguns ritos externos.

Pois, foi Deus mesmo quem, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensinou a “sermos gratuitos e gratos”.

A gratidão é um sentimento que enriquece as relações e eleva o “tom vital” da pessoa agradecida. Quem vive a gratidão manifesta um dinamismo aberto, cordial e animoso, praticamente imune ao desalento.

A gratidão nasce da vivência da gratuidade e caminha de mãos dadas com a aceitação de que tudo é dom. Quando se percebe que tudo é graça, não se pode viver sem agradecimento. E quando se vive em sintonia com a realidade, é possível dar graças por tudo o que dela provém, pois tudo traz uma mensagem e uma oportunidade.

O oposto ao reconhecimento da gratuidade é o narcisismo exigente e auto-referencial que se considera com “direitos” frente a tudo, numa postura egocentrada, incapaz de sair e si e dar valor ao que recebeu.

A gratidão possibilita fluir com a vida, permitindo que se expresse livre e adequadamente através de nós.

A gratidão é uma arte que pode ser alcançada na medida em que é ativada. E o melhor caminho para isso é “dar graças” por tudo. Tudo é graça, de graça; somos seres agraciados, cheios de graça...

Cabe a nós, enquanto seguidores de Jesus, pensar-sentir agradecidamente e ter gestos de gratuidade.

Cabe a nós falar agradecidamente. A expressão “muito obrigado” é das primeiras que se aprende quando alguém se inicia em outro idioma. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o “gratuito” marca a pessoa por inteiro.

A vida nova vem da vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.

Texto bíblico:  Lc 17,11-19

Na oração: 

Criar um clima de ação de graças. Tudo é Graça.

 - Ponderar com muito amor tudo o que o Senhor fez por mim, por meio dos outros, da Criação e de minha história passada e presente. Como Ele me cumula de seus próprios bens. Tudo é dom de Deus; tudo foi criado por amor para mim (Deus providente).