quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

“Abrir passagem” por entre os intolerantes

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 4º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou seu caminho” (Lc 4,30) 

Continuamos com o tema do domingo passado. A expressão “hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” faz conexão com o relato anterior. “Hoje” se cumpre essa Escritura em cada um de nós; é preciso abrir espaço para que Deus cumpra sua vontade amorosa em nossas vidas; Ele não força nem impõe nada: “que se cumpra”, depende exclusivamente de nós. Somos nós que temos continuamente de nos perguntar: “cumprimos essa Escritura que acabamos de ouvir?”

Até o leitor menos atento ficará surpreso com a dissonância que aparece no relato deste domingo: diante da aprovação e admiração que seus conterrâneos expressam, Jesus responde com repreensões, e a cena se conclui com sentimentos de fúria por parte dos ouvintes na sinagoga, a ponto de terminar em tragédia.

Se estivermos bem atentos ao texto, perceberemos que o motivo do conflito e da fúria dos ouvintes parece claro: embora citando dois grandes profetas de Israel – Elias e Eliseu -, Jesus deu destaque a dois personagens estrangeiros como referência (viúva de Sarepta e Naamã, o sírio), em detrimento dos personagens do próprio povo. Para um judeu piedoso era inadmissível que qualquer pagão recebesse um favor divino, antes de alguém pertencente ao “povo eleito”.

Elias e Eliseu são exemplos como Deus atua com relação aos não-judeus. Elias atendeu a uma viúva de Sarepta e Eliseu a um general sírio, e isso deixa em evidência a pretensão de salvação exclusiva que os judeus pretendiam, como povo eleito.

O evangelista Lucas quer “quebrar” este argumento contundente; Jesus desmascara a cegueira coletiva e isso provocou a ira de seus vizinhos que se sentiram agredidos.

“Não é este o filho de José?”. A única razão que os membros de seu povo dão para rejeitar as pretensões de Jesus, é que Ele é mais um do povo, conhecido de todos.

No entanto, aqui está a grandeza de Jesus: sendo um entre tantos, foi capaz de descobrir o que Deus esperava dele. Jesus não é um extraterrestre que traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira das profundezas de seu ser aquilo que Deus já colocou em todas as pessoas. Jesus fala do que encontrou dentro de si mesmo e nos convida a descobrir e viver em nós o mesmo que Ele descobriu e viveu.

Jesus poderia ter dito muitas coisas aos seus ouvintes, para tranquilizá-los: explicar que Deus não escolhe os seus enviados entre os grandes deste mundo, mas sim entre os pequeninos, a exemplo de Davi, o filho caçula de Jessé. Poderia ter-lhes dito que se tornariam mais imagem de Deus se dedicassem um cuidado especial aos cegos, aos prisioneiros e aos outros deserdados, vítimas do contexto social, político e religioso da época.

No entanto, em lugar de tranquilizá-los, Jesus vai inquietá-los ainda mais. Recorda-lhes, então, que Deus, em tempos de penúria e sofrimento, foi em socorro de estrangeiros, de pagãos, sem qualquer ligação com o povo eleito. Temos aí, em todo caso, o que provocou a indignação dos ouvintes de Jesus. No fundo, o culto a Deus cedeu lugar ao culto ao povo eleito. Este tipo de idolatria não é raro e pode assumir diversas formas: o culto à classe social, à família, à nação, às relações vantajosas, etc.

Tal idolatria chegou ao extremo a ponto de levarem Jesus para fora da cidade, a fim de matá-lo.

É uma antecipação da Páscoa, claro: Hebreus 13,12 destaca que Jesus foi crucificado «fora do acampamento». Mas é este excluído que vai integrar todo o universo com sua presença salvífica.

Como humanos, todos temos a tendência por estabelecer distância entre o próprio grupo – tribo, parentela, família, povo, religião, nação – e todos os demais grupos. Trata-se, sem dúvida de um movimento de auto-afirmação, de busca de segurança e defesa frente o diferente. Se, unido a tudo isso, advertimos que nossas próprias crenças são questionadas, é provável que se despertem sentimentos de agressividade, que não são outra coisa que expressão do próprio medo.

Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e fanatismo.

A intolerância e o fanatismo são uma expressão de atrofia espiritual e que tem graves consequências na vida social e no diálogo inter-religioso. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível “viver a cultura do encontro” entre pessoas e grupos humanos que pensam, sentem, creem de maneira diferente.

É profundamente desumanizador quando alguém se fecha na cegueira de suas próprias ideias, crenças, ideologias... Frente a essa tendência ancestral e, com frequência, virulenta, uma atitude madura e compreensiva relativiza muros e fronteiras, reconhece a identidade comum e  torna possível a vivência da alteridade, no respeito e na confiança compartilhadas.

É o que apreciamos nas pessoas sábias, como se mostra neste caso em Jesus. Sarepta, Síria, Israel:  por que a diferença deveria ser entendida como enfrentamento ou exclusão?

Ao compreender o que somos, se distendem as rigidezes instintivas do ego e a intolerância dos esquemas mentais que se expressam nas relações sociais, no campo da política, da religião... São mecanismos de defesa ativados automaticamente, mas carentes de sentido quando nos situamos na compreensão daquilo que somos, ou seja, humanos.

É evidente que aquela mesma resistência contra Jesus se reproduz hoje: argumentos batidos e arcaicos são tomados como pretexto para que seja recusada a verdade presente no outro.

Se em todos os aspectos da vida se faz presente a inércia do costume, mais ainda no campo religioso: há um tradicionalismo de manter intocável o que foi recebido, como se nisso perigasse nossa fé. Sempre fazemos o mesmo e não nos paramos para analisar, para introduzir mudanças e avaliá-las.

É necessário superar a inércia da rotina, do de sempre, do estabelecido. Para não entrar em processos esquizofrênicos é preciso, muitas vezes, desaprender o aprendido. Pensemos, repensemos, provemos, inovemos... Não é esnobismo, nem desejos superficiais de mudar por mudar, mas necessidade de questionar aquilo que não convence e nem serve mais, e buscar o que é mais coerente e essencial.  Desconstruir para reconstruir. É um trabalho que é preciso fazer a partir de baixo. Não esperemos que as mudanças venham de cima.

É essa mesma compreensão que nos permite “abrir passagem” e “afastar-nos” dos preconceitos e intolerâncias que nos isolam, nos empobrecem e, em ocasiões extremamente cruéis, desembocam em tragédias. Somente tomando um mínimo de distância de nossos próprios mapas mentais, legalismos, suspeitas... seríamos capazes de rir de nós mesmos diante de tão cegos padrões de pensamento e comportamento; só assim poderemos suavizar nossa rigidez, ampliar horizontes, celebrar e viver a unidade compartilhada em tanta diversidade de maneiras de ser e de viver.


Texto bíblico
: Lc 4,21-30

Na oração:

Aliado ao conformismo e à segurança está o medo da mudança; fechamo-nos no conhecido por medo do desconhecido. Marcados pela “normose” (normalidade doentia), ficamos encapsulados num quadrado “mofado”, trancafiados por normas parentais, sociais, culturais e religiosas.

- Também na nossa sinagoga interior carregamos intolerâncias, preconceitos, fanatismos... que depois se expressam no julgamento e na indiferença frente aos diferentes.

- Quê sinais de intolerância e preconceito percebo em minha vida cotidiana? Quando aparecem?

- Minha relação com Deus é intimista ou me abre a uma presença sadia diante de quem pensa-sente-ama de maneira diferente? Sou presença ecumênica ou carregada de suspeita?

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Ser Presença de “Boa Notícia” que Liberta

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 3º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção...” (Lc 4,18)

 

O relato do evangelho deste domingo faz referência ao início da vida pública de Jesus, quando retorna à Galileia, depois da confirmação de ser o Messias e da experiência de discernimento no deserto.

Jesus se apresenta em Nazaré, onde seus compatriotas aguardam seu “discurso programático”, e Ele causa espanto ao dizer que veio falar-lhes em nome dos pobres e excluídos; e faz isso tomando como próprias as palavras do profeta Isaías.

Movido pelo Espírito, Jesus começa a falar uma linguagem provocativa, original e inconfundível: Ele revela seu compromisso em favor de uma vida nova e livre entre os últimos, onde a vida encontra-se ferida.

Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento estava centrado em “decorar” e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus parte da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito...

Aqui estamos numa sinagoga em dia de sábado: lugar e dia de comunhão, de encontro, de festa... No entanto, na mesma sinagoga Jesus convida a ter um olhar mais amplo para a realidade da exclusão.

Surpreendentemente, o texto não fala em organizar uma nova religião, de impor a carga de uma nova lei ou de implantar um culto mais digno, mas de comunicar libertação, esperança, luz e graça aos mais pobres e excluídos da terra.

Jesus se apresenta como o “ungido” pelo Espírito (Cristo) porque declara cumpridas, em sua vida e em sua pessoa, as promessas da antiga profecia que se revelavam como libertação dos oprimidos, encarcerados e estrangeiros. Ele aparece como o Ungido por excelência; o Pai lhe comunicou seu Espírito para que manifestasse seu dom e sua presença no mundo, anunciando a “boa notícia” aos pobres e necessitados, aos famintos de pão ou carentes de outros bens importantes.

Jesus não oferece doutrinas estéreis, não vem complicar a vida com novas exigências, nem está preocupado em apresentar uma religião diferente, mas revela uma presença original no mundo, comprometida com a vida. Nesse sentido, para Ele, evangelizar passou a significar oferecer vida, abrir caminhos de esperança, reconstruir as relações rompidas... Esta é a afirmação geral, o ponto de partida da missão pública de Jesus.

O Espírito de Deus está em Jesus enviando-o aos pobres, orientando toda sua vida para os mais necessitados, oprimidos e humilhados. Também nessa direção devem se comprometer seus seguidores(as).

Esta é a orientação que Deus quer deixar transparecer na história humana. Os últimos serão os primeiros em conhecer essa vida mais digna, livre e ditosa, que o mesmo Deus quer já, desde “agora”, para todos os seus filhos e filhas.

Após a leitura do texto do profeta Isaías, na sinagoga em Nazaré, a palavra de Jesus move a todos a se situar no presente: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. Em Lucas, se trata de um “hoje” continuado, sempre atual, com a única condição de que nos deixemos introduzir nele. É um “hoje” que bem poderia ser traduzido por “aqui e agora”, o tempo presente que vai além do tempo cronológico; é o presente atemporal no qual tudo está bem, onde tudo é benção, graça, liberdade e Vida. Um Presente que não é ambíguo, mas que, abraçando todas as dimensões de nossa existência, rica e pobre, se desvela a nós como Plenitude.

A cena do evangelho de hoje termina com uma promessa de vida que tem lugar “hoje”. Da boca de Jesus brota uma palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a faz eterna, ou seja, válida para todo momento, em um presente sempre atual: o “hoje” em Lucas significa “todo momento”, qualquer instante em que, ouvinte ou leitores, se abrem à Palavra inspirada de Jesus.

Cada um desses “hoje” remete o leitor a seu próprio presente. Por isso, não perdem nunca sua atualidade, sempre que o leitor ou ouvinte acolha o dom desse “tempo novo”.

E o mais maravilhoso é quando o “hoje de Deus” coincide com o “hoje nosso”. Deus é nosso “hoje”, nós somos o “hoje” de Deus; é no nosso “hoje” que Deus nos fala e realiza maravilhas.

Desse modo, o evangelista Lucas está nos dizendo: essa Palavra é válida também para nós, hoje, com a condição de que nos deixemos conduzir por ela. Para todos nós há também uma promessa de vida, que não pode ser bloqueada por nenhum tipo de escravidão e que não se acaba na fronteira da morte.

Antes de mais nada, a expressão “hoje” nos mostra Jesus como um homem que vive em um presente consciente e descansado, sábio e pleno. Deus não é graça ou castigo, boa notícia ou ameaça. Segundo Jesus, Deus é amor e só amor, compaixão e bondade, gratuita e incondicional. Esses atributos divinos se visibilizam no “hoje” de nossa existência.

Deus não só nos liberta, Deus é a libertação. Somos nós que devemos tomar consciência de que somos livres e podemos viver em liberdade sem que ninguém no-la impeça. Também devemos ajudar os outros a descobrir a possibilidade de serem livres. Como Jesus, não devemos deixar que nada nem ninguém nos oprima. Nem Deus, nem os homens em seu nome, podem nos exigir algum tipo de vassalagem.

A liberdade deve ser o estado natural do ser humano. Por isso, a “boa notícia” de Jesus é dirigida a todos aqueles que padecem qualquer tipo de submissão. A enumeração feita por Isaías não deixa lugar a dúvidas: a libertação chega para todos os oprimidos e de todas as opressões.

É preciso recordar sempre: Jesus está longe de um mero assistencialismo... Ao tornar pública sua missão, Jesus inaugura uma nova ordem integral, a única que permite falar de uma libertação real. É importante cair na conta de que muitas vezes quando se fala de “opção preferencial pelos pobres”, na realidade se trata claramente de uma mentalidade assistencial, muito distante do discurso e prática de Jesus no início de sua vida pública. “Evangelizar é libertar através da palavra” (Nolan). Uma palavra que não entra na história, que não se pronuncia, que se mantém em cima do muro, que não mobiliza, não sacode, não provoca solidariedade, não transforma as estruturas geradoras de escravidões... não é herdeira da “palavra bendita” de Jesus.

Jesus é tão “entranhavelmente” humano que nos desconcerta a ponto de parecer estranho, extravagante e, para muitos, escandaloso. Mas, precisamente dessa maneira Ele nos revela, não só sua profunda humanidade, senão o grau de “desumanização” a que podemos submeter os outros, sem nos darmos conta disso.

Portanto, o sentido de nossa existência cristã não está em “divinizar-nos”, mas em “humanizar-nos” (descermos até o fundo de nossa condição humana). Porque o “ponto de encontro” entre Deus e os seres humanos não foi só o “divino”, senão o “divino humanizado”.

Texto bíblico: Lc 1,1-4; 4,14-21

Na oração:

“Hoje se cumpre” a Escritura em cada um de nós. O mesmo Espírito que atuou em Jesus, está atuando em nós. O ego nos separa; o Espírito nos identifica e nos unifica.

- Na oração, procure conectar com essa “divina energia” que está em você, e a espiritualidade será o mais espontâneo e natural de sua vida.

- As palavras de Isaías abrem um novo “sentido” para a vida de Jesus; também para todos nós, seus seguidores.

Elas se cumprem em você, no “hoje” de sua existência? Você se sente também “enviado” a ser presença da Boa Notícia para os pobres, para as vítimas das estruturas sociais injustas? Sua vida é “boa-notícia” para todos?

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

BODAS DE CANÁ: o abundante e saboroso vinho do Reino

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 2º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora” (Jo 2,10) 

Estamos ainda no espírito da Epifania, da manifestação de Deus em Jesus Cristo. A festa dos “Reis Magos” e do Batismo de Jesus formam, tradicionalmente, com as Bodas de Caná, a tríade da epifania.

O acontecido em Caná da Galileia é o começo de todos os sinais, e que se prolongará ao longo da vida de Jesus. A nova purificação não se fará com água que limpa o exterior, mas com vinho saboroso que transforma o interior do ser humano. O vinho-amor como dom do Espírito, é o que purifica, o único que pode salvar definitivamente.

O relato das Bodas em Caná sugere algo mais. A água só pode ser saboreada como vinho quando, seguindo as palavras de Jesus, é “tirada” de seis grandes talhas de pedra, utilizada pelos judeus para suas purificações. A religião da lei escrita em tábuas de pedra está exausta; não há água capaz de purificar o ser humano. Essa religião deve ser libertada pelo amor e pela vida que Jesus comunica.

As talhas estavam ali “colocadas” sem mobilidade alguma. Com isso denota a importância que elas vão ter no relato e seu caráter simbólico. O número seis (sete menos um) é sinal do incompleto. É o número das festas dos judeus que são relatadas no evangelho de João. A sétima será a Páscoa.

As talhas eram de pedra, como as tábuas da lei, e estão significando a Antiga Aliança. A lei de pedra é sem misericórdia, sem amor (vazias, sem água e nem vinho). A lei é a causadora da falta de amor (vinho). Essa consciência de pecado era consequência da infinidade de preceitos, impossíveis de serem cumpridos. Jesus faz tomar consciência de que estão vazias; ou seja, que o sistema de purificação era ineficaz.

Em quê consistiu o primeiro “sinal” realizado por Jesus, no evangelho de S. João?

Mergulhando mais a fundo na cena damo-nos conta de que a água que Jesus transformou em vinho não era água para os usos domésticos ou, mais precisamente, para usos “profanos”; em outras palavras, não era “água para a vida” (beber, preparar refeições, lavar-se, regar...), mas era “água para a religião”.

O Evangelho diz isso expressamente: “Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação dos judeus; em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros”.

Portanto, seiscentos litros de água, armazenadas em talhas de pedra. Expressa-se, assim, em linguagem metafórica, a enormidade e o peso da religião judaica; representa todo o sistema da observância ritual judaica, que impedia as pessoas viverem mais plenamente.

Jesus, na primeira oportunidade que teve, suprimiu a “água da religião” e transformou-a em vinho, no generoso “vinho da vida”, sinal da abundância de vida e do prazer de viver.

Definitivamente, o que Jesus quis dizer, mediante o primeiro dos “sinais” que realizou em sua vida, foi que a velha ordem religiosa havia terminado. A partir de então, Deus manifesta sua “glória” de outra maneira. Jesus traça e marca uma nova maneira de viver uma relação sadia com Deus, que não impõe, nem exige rituais religiosos e purificações sagradas. Em vez disso, Ele se comunica “na vida”, no prazer de viver, na alegria de saborear a vida e a festa, em tudo o que, de maneira espontânea, evoca o melhor vinho que nós, humanos, podemos beber neste mundo.

Jesus “des-sacralizou” o templo, o sábado, o sacerdócio, as instituições religiosas judaicas, e “sacralizou” a festa como tempo e espaço de humanização.

A “glória de Deus”, a partir de Jesus, não se manifesta mais no Templo, nos sacrifícios e nas solenidades litúrgicas, mas no prazer da festa e na alegria dos amantes que compartilham o melhor vinho. Isso é muito humano! E, exatamente por isso, é tão divino.

Jesus, ao se fazer presente em Caná, deu novo sabor e impulso vital (esperança, alegria) às bodas da história humana, passando da pura lei (cântaros de água de purificações) à vida intensa, ao vinho abundante, bom, saboroso, que ativa a alegria da festa; e tudo isso despertado pela sensibilidade de sua mãe Maria (ela é sinal da passagem, de caminho a ser feito para ir do Antigo ao Novo Testamento).

Muitas vezes manipulamos Jesus para continuar tendo à porta de nossas igrejas as “seis talhas de água das purificações” (proibições, normas, ritualismos, doutrinas...). Temos seis talhas de água parada, água de imposições e medos; falta-nos o vinho generoso da vida, para todos, para que a alegria se expanda e todo o mundo seja lugar de bodas. Muitos só conhecem uma “religião aguada”, não podem saborear algo da alegria festiva que Jesus contagiava; e continuarão se afastando das comunidades cristãs.

No entanto, Jesus revela uma presença original numa festa e sua mãe no-lo apresenta para que Ele seja a fonte de vinho, ou seja, do amor, de bodas para toda a humanidade. Esta é a mensagem do evangelho deste domingo, um dos textos mais belos da história da humanidade. O pano de fundo de todo o relato é a alegria de um homem e uma mulher que se vinculam no amor e querem que esse amor se expanda e chegue a todos, como amor feito vinho de festa e plenitude prazerosa.

O Reino de Deus se vincula, deste o Antigo Testamento, com banquete e bodas, como destacou uma tradição profética desenvolvida por Oséias e culminada no Cântico dos Cânticos. A vida é, antes de tudo, refeição festiva e amor. Não basta o pão, é preciso o vinho. Uma vida sem amor e sem prazer (vinho e bodas) seca, torna-se estéril, em meio ao círculo da violência, do ódio, da fome e da luta de todos contra todos. É necessário atualizar, com fidelidade criativa, o “sinal” que Jesus realizou para introduzir, em nossas vidas, a alegria do Deus-Pai festeiro; só assim, nossa vida se tornará mais ditosa e com mais sentido.

“Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento”. Eles não se encontravam ali desde o início, mas chegaram de fora, para alterar e dar novo curso à festa, que estava correndo risco de se acabar, com a falta do vinho.

Só a chegada de Jesus e seus discípulos des-vela uma grande carência. Só quando chega o Amor Maior, descobre-se a falta de amor. Chega Jesus e vemos que há pouco amor no mundo, que as pessoas vivem a pão e água, na dura batalha pela vida, sem poder saborear o bom vinho da alegria e da festa. Certamente, o texto alude a uma falta material de “vinho”, mas é claro que o relato alude a outra carência mais profunda. Não é que só tenha acabado o pouco de vinho; não é que seja questão de ter mais ou menos vinho. Acabou o amor e a solidariedade; acabou o vinho porque alguns beberam demais, acumularam e desperdiçaram tudo. Acabou o vinho (o pão, o vinho, o prazer da vida) porque alguns fizeram a opção pela morte, pelo ódio, pela destruição e divisão; dessa forma, o mundo se transformou em lugar de opressão, de mentira, de festas mortíferas. Esta simples expressão – “eles não tem mais vinho” – é a crônica de um fracasso.

A presença de Jesus e seus discípulos na festa de casamento evoca a chegada de um novo tempo para a nova comunidade dos seus seguidores(as). Jesus, em sintonia com o Pai festeiro, se revela, antes de tudo, como um “animador de bodas”. Não vem cobrar ou impor, mandar ou proibir. Vem com os seus para oferecer bodas ao mundo, bodas festivas, carregadas de amor. Jesus e sua nova comunidade são presenças de bodas: querem que os homens e mulheres possam celebrar suas bodas com bom vinho em todos os tempos.

Texto bíblicoJo 2,1-11

Na oração:

As “talhas das purificações” não são algo do passado. Elas ainda continuam fazendo parte de nossa vivência cristã, marcada pela superficialidade e exterioridade, feita de ritos, moralismos, cansaços, normativas... e que não deixam que o bom vinho Reino se expanda e tenha acesso às dimensões mais profundas do nosso ser. Pois bem, segundo seu evangelho, Jesus nos quer portadores do vinho da festa, animadores da celebração, prontos para o baile, o encontro, o abraço, a vivência do amor, a comunhão. Esta é a imagem que deveríamos revelar ao mundo de hoje.

- Sua vida cotidiana tem a marca do “vale de lágrimas” ou do “vinho saboroso da alegria”?

- Sua presença na comunidade cristã deixa transparecer o “melhor vinho” que brota do seu interior? 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

BATISMO: a experiência fundante da proximidade amorosa de Deus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da celebração do Batismo do Jesus. 

“Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (Lc 3,22) 

Começamos o tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”. O batismo é o primeiro acontecimento público da vida de Jesus que os evangelhos nos narram. Sem contar os evangelhos da infância de Mateus e Lucas, carregados de significado teológico posterior, todos os evangelistas começam suas narrativas com o batismo de Jesus por João Batista. Os quatro evangelistas ressaltam a importância que teve para Jesus o encontro com João Batista e a descoberta de sua missão.

Além disso, o batismo é o evento mais significativo desde seu nascimento até sua morte. O importante não é o fato em si, mas a carga simbólica que o relato deixa transparecer.

João Batista se encontra no deserto, junto ao rio Jordão; ele leva o templo e o culto ao deserto, que evoca o Êxodo e a liberdade. Descobre-se e vive-se a relação com Deus não tanto nos ritos do templo, mas no caminho do deserto da vida, no caminho para a terra prometida, na liberdade.

Quando ouviu falar de João Batista, que batizava no rio Jordão, Jesus se uniu à multidão e foi também ver João e conhecer o que estava acontecendo ali. Com a multidão, Jesus entrou no Jordão; Aquele que não tinha pecado se faz solidário, compartilha as limitações e sofrimentos da humanidade.e de nossas histórias pessoais.

Contrariamente ao que sem

Jesus desce ao profundo das águas de nossas fragilidades humanas; Ele compartilha conosco a densidade de nossa história pre nos foi dito, o batismo não é a prova da divindade de Jesus, mas a prova de uma verdadeira humanidade; Ele é o ser humano que assume sua condição e ora.

Como todas as coisas, tudo tem um processo. Com Jesus não foi diferente; lentamente, Ele foi tomando consciência da proximidade de Deus, de acordo com sua idade, até irromper em plena consciência ao ser batizado no rio Jordão, na idade de 30 anos. Chegou o momento em que, junto com a multidão, e não Ele sozinho como mostram as pinturas, Jesus entrou na água. A um sinal do Batista, Ele se submergiu na água e assim se deixou batizar, como faziam todos. Foi então, testemunham os relatos, quando ocorreu uma grande transformação na vida do desconhecido Nazareno.

Depois de ser batizado, enquanto rezava, diz o texto de Lucas, Jesus sentiu uma tremenda comoção interior: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer”.

Ao “descer às águas do Jordão”, junto com a multidão, Jesus sente que em suas entranhas estava o manancial do Amor, que recebia a água viva do Abbá. No batismo se entrelaçaram e confluíram mais ainda suas torrentes.

Lucas não dá nenhum destaque ao fato do batismo em si; ele destaca os símbolos: céu aberto, descida do Espírito e voz do Pai. Imagens que no AT estão relacionadas com o Messias. Trata-se de uma teofania. Segundo aquela mentalidade, Deus está nos céus e tem que vir dali. Quando os céus se abrem é sinal de que Deus se aproxima dos homens. Esta vinda deve ser descrita de uma maneira sensível, para poder ser compreendida. O importante não é o que aconteceu fora, mas o que Jesus viveu dentro de si mesmo.

A linguagem bíblica expressa a experiência interior usando expressões pictóricas e simbólicas: o céu se abriu e viu-se o Espírito descer sobre Ele em forma de pomba. Trata-se de uma representação plástica para expressar uma radical e originalíssima experiência espiritual vivida por Jesus, impossível de ser expressa com palavras. A partir daí ocorreu uma verdadeira revolução em sua vida: sente-se Filho amado de Deus-Abba. É invadido por uma paixão de amor divino que revirou sua vida. Experimentou uma absoluta e direta proximidade de Deus. Já não é Ele quem busca a Deus, mas foi Deus que o buscou e o assumiu como seu Filho querido. Essa é a incrível revolução: a proximidade amorosa de Deus-Abbá.

Aqui se encontra a grande singularidade relatada pelos evangelistas: dar testemunho da proximidade radical de Deus, do Deus que busca intimidade não só com Jesus de Nazaré, mas com todos os seres humanos, independentemente de sua condição moral, social, religiosa e de sua situação de vida. Trata-se do transbordamento do amor gratuito de Deus para seus filhos e filhas.

Com isto se inaugura um novo caminho, diferente daquele da observância da Lei e das distinções que se fazem entre bons e maus, justos e injustos. Não é esse o “modo de ser e agir” do Abbá de Jesus: Seu olhar e sua lógica é totalmente diferente, como se revelou e se visibilizou no batismo de Jesus, membro do grupo dos pobres de Javé. Neste, irrompe um amor divino ilimitado, oblativo, gratuito, começando por aquele de quem nunca falam, que nunca foi a uma escola de teologia, quando muito à escolinha bíblica da sinagoga. O Nazareno veio deste meio. Não pertence ao mundo dos letrados, dos juristas, da casta sacerdotal ou de algum status social. É um anônimo, mais acostumado ao trabalho manual que ao uso da palavra, um a mais que entra na fila dos pecadores para ser batizado, “descendo” às águas da humanidade.

A experiência de Deus que Jesus teve no batismo não foi uma faísca que aconteceu num instante. Antes, temos de pensar numa tomada de consciência progressiva que lhe fez experimentar essa proximidade do Abbá e que depois buscou transmitir aos seus discípulos. Para nós, isto é muito importante. Uma toma de consciência de nosso verdadeiro ser não pode acontecer da noite para o dia.

Os evangelistas nos repetem continuamente que Jesus, em diferentes momentos de sua vida, teve a experiência de ser Filho Amado. E ponto. O resto são envoltórios.

De repente tudo mudou: inundado da proximidade amorosa de Deus Jesus se pôs a pregar com tanto entusiasmo e sabedoria que os ouvintes comentavam: “De onde lhe vem essa sabedoria? Não é ele o filho do carpinteiro?” (Mt 13,54-55).

Andando com pessoas de má fama, Jesus ia lhes mostrando a proximidade amorosa de Deus.

Por que fazia isso? Porque quis levar a todos, especialmente aos socialmente desqualificados - os leprosos, os paralíticos, os cegos -, mas também aos pecadores públicos, aos desesperados, a novidade de que Deus está próximo de todos eles. Jesus, transbordando do amor de Deus-Abbá, sai do seu batismo com a nobre missão de anunciar essa novidade da proximidade incondicional de Deus que se faz para todos o “Abbá generoso”.

A partir de então, o decisivo não é a prática minuciosa da Lei e das tradições cuidadosamente observadas, mas deixar ressoar no coração aquela voz que Deus-Abbá disse a Jesus e que agora repete para todos: “vós sois minhas filhas e filhos amados, em vós encontro meu regozijo”. Isto soa primeiramente como surpresa e depois como uma inaudita alegria e libertação. Esta é a boa notícia, este é o Evangelho.

Esta surpreendente proposta requeria e requer uma resposta. Exige mudança de mente e de coração.

Assim entendemos o que é ser comunidade cristã: antes de tudo, ela é um batistério, um lugar onde homens e mulheres podem nascer para uma vida mais alta e expansiva, de vinculação com Deus, de comunhão humana, ou seja, de batismo, de novo nascimento.

A Igreja existe na medida em que é capaz de oferecer um espaço de nascimento (de batismo) a todos. Neste contexto se situa a experiência cristã do batismo, como sacramento que expressa o nascimento em Deus, uma experiência de filiação celebrada e partilhada em comunhão com todos.

Texto bíblico: Lc 3,15-16.21-22

Na oração:

O sacramento do batismo é um dos muitos caminhos que podem nos ajudar a descobrir que somos filh@s amad@s. Mas, em nossa vida cotidiana, que conexão há entre ser batizado e sentir-nos amad@s, como Jesus?

- A experiência pessoal de ser e sentir-nos filh@s amad@s marca um antes e um depois em nossa vida? Até que ponto é a experiência fundante, a raiz de nossa vida cristã?

- Sentir-nos amad@s fundamenta nosso comportamento moral, social... Santo Inácio de Loyola entendeu isso muito bem: “O amor é a partilha do ser e do ter”. Descobrimos que a “proximidade amorosa” de Deus nos compromete a ser presença amorosa na relação com os outros?

- Rezar seu compromisso batismal: que implicações isso tem em sua vida? Faz diferença?