terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Autoridade que Destrava Vidas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo do Tempo Comum (Ano B).

Áudio do texto: https://open.spotify.com/episode/5s9atuecNultbnDXPC5UEc?si=o-7pwTdASf-U5213rQN3qg


“Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (Mc 1,27) 

Depois do chamado dos primeiros seguidores de Jesus, junto ao lago, o evangelho deste domingo nos leva com eles à sinagoga, que era a escola e casa de oração dos judeus.

Fazendo com que falem mais os fatos que as palavras, Marcos nos quer ajudar a ver, como através da atuação de Jesus, o Reino de Deus se faz presente.

Não por casualidade, o evangelista situa a cura do homem possuído por “espíritos maus” em Cafarnaum (centro da atividade de Jesus), na sinagoga (espaço da religião), no sábado (dia de culto e oração) e entre mestres da lei, que tinham poder sobre a assembleia e sobre a interpretação da Palavra. Mas, aqueles que tinham “poder” não curaram o homem de seu espírito imundo.

“Espírito mau” significa tudo o que bloqueia a relação com Deus e a comunhão com os outros; representa o que há de mais contrário a Deus e a possibilidade de uma convivência sadia com aqueles que o rodeavam; é o símbolo de tudo aquilo que no ser humano está em radical oposição ao Pai.

A presença de Jesus desata, liberta, purifica o ser humano que se encontrava oprimido dentro de uma sinagoga. Frente à exclusão nesse espaço comunitário, Jesus profere sua palavra que cura e liberta o enfermo/oprimido de sua situação desumanizadora.

O relato deste domingo não fala da enfermidade que o oprimido padecia. Diz simplesmente que era “impuro”, alguém que era considerado “manchado”, dominado por um espírito anti-humano e que Jesus desmascara, para que pudesse falar e agir com autonomia.

Jesus, na sinagoga, não discute sobre Deus de forma abstrata; não propõe teorias sobre pureza mais intensa, sobre ritos e alimentos; também não oferece uma doutrina sapiencial de tipo moralista; não apresenta uma doutrina melhor sobre leis ou normas de conduta; não é o rabino mais sábio, nem o escriba mais agudo. Tudo isso é secundário para Marcos. O ensinamento novo de Jesus se identifica com sua autoridade humana, com sua capacidade de destravar a vida dos enfermos na sinagoga.

Por isso, seu “ensinar com autoridade era novo”; não era o ensino que repetia o que outros diziam ou aquilo que se lê nos livros; não era um ensinamento aprendido na escola de um professor especializado.

Tratava-se de um ensinar novo, diferente dos mestres da lei; a verdadeira autoridade de Jesus residia em sua pessoa, em sua vida. Seus pensamentos eram expressão de sua vida, era expressão do que fazia; e o que fazia era expressão de seu pensamento.

Seu ensinar é novo porque Jesus não é o “profissional das ideias”, mas o “profissional da vida”, o profissional do coração, o profissional que ensina vida, o profissional que sara os corações.  

Nosso contexto, social e religioso, também precisa de “profissionais” que nos deem razões para viver, nos deem razões para a esperança, para amar, nos deem razões para aprender a sermos pessoas, livres e criativas; precisamos de “profissionais” que nos mobilizem a viver uma vida plena, sem esses “maus espíritos” que nos atormentam cada dia e nos fazem viver uma vida medíocre.

Jesus fala e atua com “autoridade”; mas sua autoridade é diferente. Não vem da instituição. Não se baseia na tradição. Tem outra fonte. Está cheia do Espírito vivificador de Deus.

Jesus não tem “autoridade do poder”, mas o “poder de sua autoridade moral”; não tem a autoridade da força que domina, se impõe e arrasta. Jesus tem o poder da autoridade que brota de seu interior, de seus valores, de sua liberdade. Autoridade que o des-centra e o mobiliza a ser presença provocativa frente a todo poder que exclui. Não é o mesmo “poder” e “autoridade”.

O poder é exterior, vem de fora. Uma pessoa tem poder porque lhe foi dado nas urnas, porque foi instituído a partir de “fora” em uma presidência, em uma instituição, em uma empresa... Pode-se ter, pois, poder: títulos, cargos, prestígio... Mas poder não confere autoridade.

A autoridade, pelo contrário, é interna à pessoa, e não consiste em ter títulos, nomeações; é a qualidade daquelas pessoas que tem o carisma de suportar as cargas e aliviar o sofrimento dos outros; pessoas que deixam emergir de seu interior a bondade, o alívio, a competência, a liderança solidária...

A pessoa pode ter poder, e poder legítimo, mas pode ser que não tenha a mínima autoridade. É muito perigosa uma pessoa que atua com poder, mas sem autoridade.

Pelo contrário, há pessoa que não tem poder na sociedade ou na igreja, mas tem autoridade. Jesus mesmo não tinha nenhum poder no templo, na lei, diante dos escribas, fariseus, sacerdotes... Mas Jesus tinha autoridade: falava e atuava com autoridade.

O poder não torna as pessoas boas, nem quem ostenta o poder e nem sobre quem recai o poder.

Sabemos e sentimos que o poder exerce um grande atrativo; ele é sedutor: “quem é que não foi picado pela mosca azul do poder?” É a paixão mais forte do ser humano; este pode até “perder a cabeça” por umas migalhas de poder político, econômico, religioso ou mesmo na família, nas empresas, etc.

Atrás de toda busca de poder, ou das atitudes de poder, se esconde uma ansiedade de domínio, de prepotência, de ego inflado; ao mesmo tempo, uma pessoa fanática por poder revela um intenso medo, uma angústia profunda de perder prestígio, um pânico diante da possibilidade de ficar sem pedestal, sem cátedra, sem a atenção dos outros...

Nestes casos, o poder acaba se descambando para o fundamentalismo fanático. Uma pessoa fanática é alguém cuja mente é rígida, esclerosada, bloqueada pelo medo e pânico visceral frente à verdade, das pessoas e dos fatos. Por isso, o fanatismo se identifica com o pensamento dogmático mais intransigente.

Em alguns cargos políticos e em algumas posições religiosas se dá uma atitude de poder despótico, agressivo, violento, porque o poder fanático não é capaz de pensar, de dialogar, somente agride.

A autoridade faz bem; o poder se impõe; a autoridade acompanha. O poder dispõe, a autoridade liberta. O poder crucifica, a autoridade está crucificada ou ao pé da cruz.

Só a autoridade traz a paz, ilumina e faz crescer; o poder, pelo contrário, gera ansiedade, medo e faz o outro se sentir inferior. Quem tem autoridade, inspira e motiva as outras pessoas a fazerem as coisas com boa vontade e ânimo; o poder, no entanto, as obriga, por causa de sua posição de força.

Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga, da violência. A autoridade, por sua vez, não tem nenhuma relação direta com a obediência: repousa, isto sim, sobre o reconhecimento da riqueza e da possibilidade do outro. Ela anima, sustenta, desafia e toca aquilo que cada um tem de melhor em seu interior.

A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Quem tem poder não age, dá ordens; jamais suja as próprias mãos; é impune e não deixa impressões digitais.

O poder não constrói comunidade, pois a pessoa se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Sorrateiramente este mal toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expressar.

Texto bíblico:  Mc 1,21-28

Na oração:

Todos nós somos habitados por dois dinamismos internos: um, que nos impulsiona para o bem, a verdade, a comunhão...nos descentra; outro, que nos fecha, nos faz auto-referentes, prepotentes, violentos...

- Qual dos dois dinamismos se faz visível no seu agir e falar cotidianos?

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O Tempo de Jesus: Um Tempo Novo

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“O tempo já se completou” (Mc. 1,15) 

Não há filósofo que se preze que não lhe tenha dedicado parte de sua reflexão; não há poeta que não o cite em suas obras; não há namorado(a) que não pense que ele “voa”; não há político que não o utilize em suas promessas; não há pregador que não o faça aparecer em seus sermões; não há ser humano que não sinta sua passagem.  Estamos falando do “tempo”.

Tem-se dito tantas coisas sobre o tempo...: que “ele tudo cura”, que “temos todo o tempo do mundo”, que “é preciso fazer as coisas a tempo”, que “há um tempo para cada coisa”, que “não podemos apressar o tempo”, que “o tempo passado foi melhor”...

Quando falamos de tempo, não estamos nos referindo, necessariamente, ao tempo físico, ao tempo cronometrado (“chronos”). Esse tempo não é o mais importante. O verdadeiramente importante é o tempo psicológico, o tempo interior, o tempo espiritual, o tempo tal e como nós lhe damos valor.

A Bíblia não concebe o tempo como uma entidade abstrata, vazia, quantitativa, irreversível e retilínea, medida por anos, dias, horas, minutos e segundos, dentro do qual tudo é contido e tudo acontece.

A ideia bíblica de tempo é algo concreto, vivo, experimental e qualitativo, que incorpora os seres e as coisas, marcado por eventos significativos...

A mentalidade judaica considerava que a natureza do tempo presente era determinada tanto pelos atos de salvação de Deus no passado (Êxodo), quanto pelos atos de salvação de Deus no futuro.

Os profetas tinham a tarefa de contar às pessoas o significado do tempo específico no qual estavam vivendo, em vista do novo ato divino que estava prestes a acontecer.

Este acontecimento futuro iminente qualifica o tempo presente, dá sentido à totalidade da nossa vida no presente e determina aquilo que deveríamos estar fazendo. Se o tempo presente é inteiramente inspirado e qualificado por este ato novo e sem precedentes de Deus, então o próprio tempo presente é tempo totalmente novo, nova era.

Cada coisa, ao ter seu próprio tempo, está numa relação de parceria com outros tempos e outras coisas.

Há uma constante vinculação do tempo ao “ser e acontecer de cada coisa”. Isso porque o tempo é “carregado” da presença de Deus, que continuamente trabalha, realizando a salvação. É o “Kairós”, tempo de salvação.

Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.

É Deus quem irrompe de maneira definitiva na temporalidade. A partir desse momento, a história fica dividida em dois tempos: o anterior e o posterior ao nascimento de Jesus.

Desta maneira, o Senhor do tempo faz de Jesus o centro e o ponto de referência do tempo dos homens. Todos os acontecimentos do mundo, tanto passados como futuros, encontrarão sua localização e sentido a partir do “tempo central”, que é o tempo de Jesus.

Jesus vive cada momento numa relação completamente livre com o tempo.

Com os olhos fixos na “Hora do Pai”, Jesus mostra com sua mobilidade que, participando no tempo humano, não se deixa prender pelas ataduras da preocupação, da ansiedade, da pressa...

O tempo de Jesus é kairós, presente, dom, tempo de salvação. É a plenificação de todos os tempos.

É o “tempo esgotado”, capaz de abarcar todas as dimensões da vida e da história.

Jesus acomoda seu tempo ao “tempo de Deus, avança sem pressa nem inquietude e busca viver com alegria e prazer cada momento como um dom inesperado.

É no movimento do “Kairós” de Jesus que acontecem o chamado e o seguimento; por isso, Marcos situa o encontro com os primeiros discípulos nesse momento denso, decisivo, inspirador. É no interior do kairós que o Reino vai se expandindo, e movendo a história em direção à sua plenitude.

Todos carregamos uma certa visão pessimista que desvaloriza o tempo: vemo-lo como efêmero, passageiro, finito, caduco e, inclusive, como ilusório.

Também existe entre nós uma certa concepção que pretende reduzir toda realidade a tempo, a mero tempo; na maioria dos casos, tempo desabitado, sem presença, sem sentido e sem abertura ao futuro.

Outros colocam um preço no tempo: “time is money”. Muitas pessoas, pressionadas pela agenda desumana do ativismo, não conseguem dar um sentido existencial àquilo que fazem. Nada detém o tempo. Sua dinâmica não se submete a nenhum controle humano. O tempo corre como as águas de um rio. Arrasta tudo.

O “tempo novo”, tal como o vive Jesus, é original em cada um de seus momentos, e em nenhum caso torna-se banal. O Pai se mostra propício na temporalidade, e por isso a atitude de Jesus é a de descobrir em cada um dos momentos e dos acontecimentos o dom de seu Pai.

Cada tempo particular é sinal de um Deus benevolente e deve ser acolhido com gratidão.

A pressa descontrolada, o ritmo frenético, o estresse, a antecipação dos acontecimentos, a impaciência diante do desejado, a falta de respeito pelo tempo interior das pessoas,.., são atitudes que caracterizam o ser humano pós-moderno, mas que estão ausentes na pessoa de Jesus.

A liturgia cristã nos diz que estamos no “tempo” para tomar consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “chronos”, mas no “kairós”. Seremos cada ano mais jovem se formos cada dia mais livres. Nosso verdadeiro ser é constituído do divino que há em nós, e isso é eterno. Não precisamos esperar nada, pois já somos a plenitude e estamos na eternidade. Sem a eternidade da “alma” que pulsa em nós, que nos unifica e nos integra por inteiro, a vida se empobrece. Na “alma”, no nosso interior, o eterno tem seu templo.

Quando alguém fala de “coisas” eternas, bem que poderíamos olhar para dentro de nós mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro.

Talvez ainda somos a onda que ainda não se despertou de que é oceano. Estamos mergulhados no “hoje eterno” de Deus e isso ilumina e dá sentido a cada gesto, cada ação, cada encontro.

Kairós: eis que irrompe a eternidade – eterna idade. Nesse sentido, a própria eternidade é sentida como o fluir de um presente sem fim, dom para ser vivido a cada instante.

A espiritualidade cristã, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer a “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Jesus irrompe em nossa história e nos coloca diante de uma decisão inadiável e única que marca de maneira definitiva nossa existência: “convertei-vos e crede no Evangelho!”

Encontramo-nos mergulhados no tempo da história, levados e sustentados por Deus, “Senhor do tempo”, que nos fala no tempo, comunica-se a nós no tempo, nos conduz no tempo, nos perdoa no tempo, nos convida a trabalhar com Ele no tempo...; no tempo, Ele nos sacode e nos interpela, no tempo, Ele nos capacita para anunciá-Lo e transformar o mundo segundo seu desígnio original.

Por isso, o transcurso do tempo, longe de se constituir um peso, é um grande aliado de nosso desejo, de nossa vida e de nossa fé.

 


Texto bíblico:  Mc 1,14-20

Na oração:

Tempo é vida e a vida é feita de tempo: ordenar seu uso nada mais é do que ordenar a própria vida, dando-lhe sentido e direção. A maneira como cada um assume o tempo determina a forma como direciona sua vida.

- Você vive o tempo como dom ou como “inimigo” a ser derrotado? Seu estilo de vida é agitado, sempre de olho no relógio, em permanente estado de ansiedade, ou é marcado pela gratidão que descansa?


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

O Retorno à Morada Interna

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo do Tempo Comum (Ano B).

Esse texto está disponível em áudio neste link: https://open.spotify.com/episode/1ejW6rb6XGhVUHiBIRjGFT?si=WXVBbxlzSOuUiOOkyjvQZw

“Foram, pois, ver onde Ele morava e, nesse dia, permaneceram com Ele” (Jo 1,39) 

Queremos marcar a experiência da caminhada contemplativa com Jesus, ao longo deste ano litúrgico, fazendo referência ao início da sua atividade pública, no evangelho do João: um relato de busca e de seguimento. Dois discípulos, que escutaram o Batista, começam a seguir o Mestre de Nazaré, sem dizer palavra alguma. Há algo n’Ele que os atrai, embora ainda não sabem quem Ele é nem para onde os levará. No entanto, para seguir a Jesus não basta escutar o que os outros dizem dele. É necessária uma experiência pessoal.

Por isso, Jesus se volta e lhes faz uma pergunta muito instigante: “quê buscais?”. Estas são as primeiras palavras de Jesus no quarto evangelho. Não se pode caminhar atrás de Seus passos de qualquer maneira; é preciso verificar as reais motivações.

Aqueles dois primeiros discípulos ainda não conseguem imaginar até onde a aventura de seguir Jesus poderá levá-los, mas intuem que Ele poderá ensinar-lhes algo que ainda não conhecem; por isso, a resposta deles é outra pergunta sábia: “Mestre, onde moras?”

Não buscam n’Ele grandes doutrinas nem sábias filosofias. Querem que lhes mostre onde vive, como vive e para quê vive. Desejam que lhes ensine a viver. A resposta de Jesus é a de um verdadeiro mestre: “Vinde e vede”. “Experimentai vós mesmos, percorrei meu caminho, caminhai por ele...” Não lhes dá explicações ou uma exortação, nem lhes impõe condições, nem exige deles algum tipo de submissão.

A pergunta de Jesus – “quê buscais?” – levará os dois discípulos a conectar com seu ser mais profundo, com sua realidade mais íntima, com os desejos de seu coração, ainda não configurados pelo amor. Uma pergunta vital, que desperta a consciência e os conduz a um diálogo consigo mesmos.

Por outro lado, a pergunta dos discípulos – “Mestre, onde moras” – não significa limitar-se a entrar em um determinado espaço físico, mas é expressão do desejo de um retorno à “morada interna”.

Os novos seguidores de Jesus não lhe perguntam sobre o seu ensinamento, nem o que faz, mas onde Ele mora para poder, dessa maneira, estar com Ele, compartilhar sua casa, sendo seus amigos. O verdadeiro discipulado é “estar com”, morar juntos... Esta é a missão chave de Jesus e de sua nova comunidade de seguidores: abrir a casa, não ocultar nada, oferecer com transparência sua vida e caminho aos outros.

“Vinde e vêde!”: Jesus lhes oferece sua morada, com tudo o que há nela, para que aprendam, vivendo com Ele, a fazer o percurso interior, para descobrindo a identidade original, ali presente.

Estes discípulos acolhem o convite, vão com Jesus, veem e convivem com Ele naquele dia; sentem-se impactados e transformados pelo estilo de vida de Jesus, mais que por aquilo que Ele diz. Não há necessidade de mais discursos, de palavras fortes: veem como vive Jesus, vivem com Ele e descobrem que Ele é o Messias de Israel. Esta foi e continua sendo a missão de Jesus e de seus seguidores: criar espaços de vida messiânica, ou seja, vida compartilhada...

As primeiras palavras que Jesus, pronunciadas no evangelho de João, também nos deixam desconcertados, porque vão ao fundo e tocam as raízes mesmas de nossa vida. Jesus continua se dirigindo a cada um de nós com uma pergunta que nos remete ao centro do nosso coração, àquilo que nos move: “quê estais buscando?” Sua pedagogia é a da pergunta que des-vela, pois nos move a fazer um percurso interior e a encontrar-nos com a fonte que alimenta e inspira.

O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à importância grande de quem ou do que se busca. A sintonia com Deus que é buscada, justifica, com razões de sobra, o esforço e a recompensa do encontro. Vale a pena buscar o que é importante e encontrar Aquele que responde às razões mais profundas da busca.

É preciso aceitar viver à busca de Deus. A Ele é que se deve buscar. Por iniciativa, Ele busca a todos, vai ao encontro de cada um. Ninguém fica de fora.

Uma lógica de contínua busca deve permear o coração de cada um(a), para aprender a viver da busca d’Ele, o Senhor, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor.

No fundo, como todo ser humano, também nós andamos buscando algo mais que uma simples melhora de nossa situação; aspiramos algo que, certamente, não podemos esperar de nenhum projeto político ou social.

Na verdade, quando nos interrogamos sobre o que buscamos, sobre o sentido de nossa existência, deixamos transparecer, nas profundezas do nosso coração, a “nostalgia da dimensão perdida”, ou seja, nossa morada interior.

Podemos, então, afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, a nossa própria interioridade.

Buscamos plenitude, felicidade, quietude, unidade, paz, verdade, amor, harmonia… Pois bem, é justamente isso que somos no nosso “eu” mais profundo. Temos nos distanciado de nossa interioridade e esquecemos as beatitudes originais; com isso nos reduzimos ao ego carente e insatisfeito. Ao aquietar o pensamento e voltar ao momento presente, caem todas as nossas antigas identificações egóicas e fica, simplesmente, o que somos. A busca chega a seu fim no dia em que descobrimos que o buscador é o buscado. Somos já – e sempre foi assim – aqueles que buscamos.

No contexto social pós-moderno, as pessoas relatam que perderam não somente seu lar exterior, mas também o interior. Elas se percebem sem o sentimento de acolhida e proteção; elas já não sabem mais quem são. Perderam seu sentimento de pertença, além de não mais saberem o que as sustenta. Não sabem mais onde poderão encontrar segurança e acolhimento.

O que é “estar em casa” para nós hoje, num mundo estranho e em constante mutação? O que significa “morada” para nós atualmente? Que tipo de sentimento está conectado a ela? Onde nos sentimos em casa?

A imagem dos dois discípulos atrás de Jesus é uma excelente mediação para termos acesso à “morada” em nós mesmos.

Neste mundo disperso, o percurso contemplativo da pessoa de Jesus nos dá referências e amparo. A pergunta que Ele dirige aos seus futuros discípulos nos remete à vivência em nossa casa interior. Entramos em contato com algo que sabemos estar encoberto pelas cinzas existenciais. É anseio pelas raízes, a partir das quais podemos viver com mais intensidade e sentido.

Ansiamos um espaço onde possamos ser nós mesmos. Espaço no qual podemos entrar em contato com algo que nos plenifica e nos expande. Nós temos o sentimento de viver das forças que procedem desse local.

É o espaço no qual Deus mesmo habita em nós. Ali, nós somos plenamente nós mesmos, salvos e íntegros. Verdadeiramente em casa. Precisamos apenas olhar para dentro. O céu está em nós e ali, no céu interior, está a verdadeira pátria que ninguém pode nos roubar ou pode destruir.

Texto bíblico: Jo 1,35-42

Na oração:

Deixe ressoar em seu interior as perguntas mobilizadoras: o que, ou quem você busca? Por que busca? Tem sentido e valor o que você busca? Para onde o leva a força da busca?...

Estas perguntas ficam ali, continuamente presentes em um rincão de nossa vida; mas enquanto permanecem vivas são como brasas que voltam a acender-se cada vez  que a vida as sopra.

Estas perguntas nos fazem humanos e são tão importantes como o ar que respiramos.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

BATISMO: Jesus “desce” às águas da humanidade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do Batismo do Senhor.

“...ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito descer sobre ele” (Mc 1,10) 

Com a Epifania, encerra-se o tempo do Natal. De um salto a liturgia nos leva até o Jesus adulto, passando dos magos sábios que buscam o menino-Deus nascido em Belém ao Jesus re-nascido nas águas do Jordão, para iniciar sua missão messiânica que culminará na Páscoa.

O relato do batismo de Jesus nos situa diante de um fato histórico, mas os evangelhos não se restringem a narrar simplesmente um rito externo, e sim a experiência fundante de sua vida: sentir-se Filho amado do Pai. Por isso, cada evangelista acentua os aspectos que considera mais importantes para destacar a identidade e a missão de Jesus. A narração junto ao Jordão busca concentrar em um só momento o processo que durou toda a vida de Jesus.

O batismo de Jesus revela uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam, no batismo de João, uma purificação de suas vidas.

Jesus “desce” ao Jordão, gesto que condensa sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, a radicalização de sua Encarnação. É uma “descida” às águas da humanidade

Nesse sentido, o batismo é a prova de da verdadeira humanidade de Jesus; Ele “desce” ao Jordão, submerge na vida e na condição humana e ali faz a experiência de ser conduzido pelo Espírito em favor da humanização de todos. Ao “entrar na fila dos pecadores” Jesus descobre novos rostos, novos dramas, novas histórias... e se deixa empapar (banhar) por esta realidade carente de sentido e de horizontes. Ao conectar-se com esta realidade, Jesus começa a ver tudo a partir de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades. Descobre uma perspectiva mais ampla que o ajuda a formular melhor o sentido de seu chamado e de sua própria missão.

Ao descer às margens do Jordão, Jesus rompeu com a “normalidade” de sua vida cotidiana, deslocou-se para as margens da humanidade, rompeu fronteiras, abriu os olhos a uma realidade mais instigante e desafiadora. Ao mesmo tempo, no Batismo, Jesus se compreendeu a si mesmo, compreendeu sua missão, compreendeu sua relação com o Pai e com os homens. E compreendeu até o sentido de sua própria morte.

“Sua vida começou a ter um novo sentido”. Porque também Jesus precisou descobrir o “porquê e o “para quê” de sua vida, a partir de sua condição humana.

Jesus, ao saber-se e sentir-se amado infinitamente por um Pai que o chama de “Filho amado”, descobre em si o eixo de seu equilíbrio vital. O amor que experimenta na experiência de seu Batismo se transforma em chamado vocacional, em investidura para uma missão universal e libertadora.

Cessa o tempo da espera, abre-se o céu, escuta-se a voz. E aquele Homem, equilibrado pelo Amor experimentado em seu interior, começa a transformar as mentes e corações desequilibrados por falsas religiosidades que alimentavam temor e submissão. Jesus começa a ativar o equilíbrio em todas as pessoas, libertando-as, com a autoridade que o Espírito lhe conferia, de cargas desumanas e injustas que as desequilibravam: a culpa doentia, a enfermidade, a exploração, a miséria, o legalismo, o moralismo...

Todos estamos de acordo que a primeira experiência humanizadora é a do amor: amar e de sentir-se amado. Isso nos dá segurança e equilíbrio interno como pessoas.

Aqui está a experiência vital de Jesus, onde alcança o equilíbrio entre aquilo que pensa e sente com aquilo que recebe e acolhe em seu interior: “Filho amado, complacência do Pai”.

Sua experiência interior, no batismo, é tão potente que transforma para sempre o modo de entender e viver sua relação com o Pai. Jesus, frente a uma religião centrada na lei e no rito, estabelece uma linha de comunicação (céu aberto) direta de toda pessoa com Deus e Pai, sem necessidade de intermediários e sem necessidade de oferecer “sacrifícios” para “pressioná-lo” em favor próprio.

Jesus acolhe a filiação que lhe é revelada através da voz amorosa do Pai e, também de igual maneira, acolhe o Espírito que lhe dá a força para a missão, a grande tarefa do Reino: equilíbrio entre diálogo com Deus e compromisso em favor da vida (isso será confirmado pela sua experiência de discernimento no deserto).

A festa do batismo de Jesus, portanto, é uma ocasião especial para retomar nosso batismo, um convite permanente a relançar-nos em Sua aventura, a deixar-nos invadir pelo Seu Espírito, a comprometer-nos com Seu Reino. Na vivência cristã, nosso maior risco é o esquecimento de Jesus e o descuido de seu Espírito. É preciso voltar às fontes, à raiz, recuperar o Evangelho em toda sua pureza e verdade, deixar-nos batizar pelo Espírito de Jesus. Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, nós cristãos não teremos nada importante a contribuir com a sociedade atual, tão vazia de interioridade, tão incapaz para o amor solidário e tão carente de esperança.

A pergunta para nós, seguidores(as) de Jesus, poderia ser esta: acolhemos o dinamismo despertado pelo batismo e que se expressa como capacidade de encontro com Deus e com Seu amor, para ir criando equilíbrio nos ambientes por onde transitamos ou nos fazemos presentes?

A mesma “voz interior” de Deus, ouvida por Jesus no seu batismo, tem ressonância em nosso interior, marca e define nossa identidade cristã; aqui está, em sua raiz, o que dará equilíbrio à nossa existência, entendida como experiência profunda de sentir-nos amados(as) por Deus Pai/Mãe.

O que o Pai diz a Jesus também nos diz a todos e a cada um em particular: “Tu és o(a) meu(minha) filho(a) amado(a), em ti ponho o meu bem-querer”.

Para isso, é preciso submergir-nos continuamente nas águas do nosso “jordão” interno; a água nos acompa-nha e nos convida a entrar, a soltar, a escutar. De um lado, o rio, o movimento das águas, que recorda a do Jordão do qual todos procedemos, porque ali surgiu um projeto que evolui em nós.

Do outro, a fila das pessoas, com suas vidas, suas dores e amores, suas paixões e rotinas..., com suas infinitas possibilidades ainda latentes, ou estancadas em seus medos paralisantes.

Nascemos do cosmos, da água... Sem água pura, sem vento, sem terra e sem fogo, sem estrelas do céu, não podemos nascer... Da terra com água brotamos; sem batismo de água (de mundo) não somos humanos.

Não nos batizamos se não deixamos que Deus nos mergulhe nas águas de Sua Vida, de tal maneira que n’Ela vivemos, crescemos, nos movemos e somos, como Jesus.

Não há batismo se esse renascer em e por Deus (como Jesus), pelo Espírito, não nos coloca, como “Ele”, a serviço da Vida, que é a saúde e salvação de todos, a fraternidade na justiça, em gesto de amor ativo, de compro-misso pela liberdade, de entrega pela chegada do Reino...

Texto bíblico:  Mc 1,7-11

Oração:

Ao “descer” junto às margens do nosso Jordão, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.

- Re-cor-dar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do batismo. Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vivência batismal.