sábado, 31 de agosto de 2019

HUMILDADE: deslocar-se para o lugar do último

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 22º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


 “Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado” (Lc 14,11)

Jesus sempre se revelou muito livre, transitando por mesas de diferentes pessoas. É muito inspirador ter em conta o contexto do evangelho deste domingo. Ele nos revela, mais uma vez, Jesus participando de uma refeição, convidado por “um dos chefes dos fariseus” da região. É uma refeição especial de sábado, preparada desde a véspera com todo esmero. Como é costume, os convidados são amigos do anfitrião, fariseus de grande prestígio, doutores da lei, modelos de vivência religiosa para todo o povo.
Jesus já era uma pessoa muito conhecida e muito discutida. Seguramente a intenção deste convite era comprometê-lo diante dos demais convidados.
Mas temos a impressão que Jesus não se sente cômodo neste ambiente; sente falta de seus amigos, os pobres, aqueles que encontra mendigando pelos caminhos, aqueles que nunca são convidados por ninguém, aqueles que não contam: excluídos da convivência, esquecidos pela religião, desprezados por quase todos.
Sabemos que Jesus sempre se fez presente no lugar onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e abriu para eles um “novo lugar” no Reino do Pai.
Na Galileia, Jesus teve suas preferências e escolheu o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se faziam donos dos lugares.

Os evangelhos destacam que Jesus, na sua vida e missão, sempre deu grande importância às refeições em comum, mesas de partilha, mesas festivas... É neste ambiente de comunhão que o Reino se visibiliza e antecipa o sentido da refeição plena, preparada pelo Pai.
É a partir desse ato sagrado que podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).
O Reino de Deus, ao se fazer presente, desperta em nós a mística da mesa que alimenta uma vida que se faz doação, como o pão que é partilhado: a amizade, a convivência, a acolhida...
Sentar-se à mesa com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, latente, carente.
Mas é também descobrir um outro tipo de alimento, que só pode ser colhido na delicadeza da inter-relação, da inter-comum-união com o outro. E a vida floresce em plenitude quando está impregnada de amor e gratuidade, sem competição de “egos” e nem desejos de protagonismo.

No texto do evangelho deste domingo, encontramos duas pequenas parábolas. Uma se refere aos convidados; outra diz respeito ao anfitrião. Em ambos os casos, Jesus nos propõe uma maneira diferente de compreender as relações humanas. Ele quer deslocar comportamentos que consideramos normais, para entrar em uma nova dinâmica, que nos leva a mudar a escala de valores do mundo.
Na primeira imagem, não se trata de um simples ato de educação para receber elogios. Jesus parte de um modo de proceder generalizado (buscar os primeiros lugares) como ocasião para apresentar uma visão diferente e mais profunda da humildade. Colocar-se no último lugar não deve ser uma estratégia para conseguir maior admiração e honra. A frase “quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado”, pode levar-nos a uma falsa interpretação.
Jesus aconselha não buscar as honras e o prestígio diante dos outros, como meio para fazer-se valer. Condena toda vanglória e vaidade como contrárias à sua mensagem.

O convite a “sentar no último lugar” revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido profundo. Ele revela aos participantes da refeição um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.
O gesto de Jesus convida a fazer um deslocamento, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade se percebe a partir deste lugar?
Portanto, olhar a refeição a partir do ângulo de quem está no último lugar muda totalmente as perspectivas. Jesus revela, então, um “novo ângulo” ou um novo modo de “olhar as pessoas”: não a partir do lugar do poder, mas a partir da perspectiva dos fracos e indefesos.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
Para isso é preciso uma “mudança de lugar”, um deslocamento para baixo, em direção aos pequenos. Quem “desce” encontra-se com Jesus. Quem acolhe um “pequeno” está acolhendo o “maior”, o próprio Jesus.

A segunda parábola apresenta um matiz diferente. Antes de despedir-se, Jesus se dirige àquele que o tinha convidado. Não é para agradecer-lhe o banquete, mas para sacudir sua consciência e convidá-lo a viver um estilo de vida menos convencional e mais humano. “Não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos. Convida os pobres, aleijados, coxos, cegos...”
Mais uma vez Jesus se esforça por humanizar a vida, rompendo esquemas e critérios de atuação que nos podem parecer muitos respeitáveis, mas que, no fundo, estão indicando nossa resistência a construir esse mundo mais humano e fraterno, querido por Deus.
Normalmente vivemos instalados em um círculo de relações familiares, sociais, políticas ou religiosas com as quais nos ajudamos mutuamente a cuidar de nossos interesses, deixando fora aqueles que nada podem trazer. Convidamos para ter acesso à nossa vida àqueles que, por sua vez, podem nos convidar.
Jesus não quer dizer que fazemos mal quando convidamos os familiares e amigos para uma refeição. Ele quer dizer que estes convites não vão mais além do egoísmo amplificado àqueles que são do nosso círculo. Essa atitude para com os amigos não é sinal do amor evangélico. O amor que Jesus nos pede precisa ir mais além do sentido comum, dos sentimentos ou do interesse pessoal. A demonstração de que entramos na dinâmica do Reino está em que buscamos o bem dos outros sem esperar nada em troca.
A gratuidade é a marca do Reino.


Texto bíblico:  Lc 14,1.7-14

Na oração:
Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantos grupos e organizações sociais, movimentos que buscam outra cultura, a cultura da solidariedade, da interconexão responsável, do encontro comprometido.
 “Considerar” aqueles que não tem “lugar” em nossas comunidades; colocar-se em seu lugar e sentir o que eles sentem.

sábado, 24 de agosto de 2019

A Porta que dá Acesso à Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 21º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita” (Lc 13,24)

Segundo o relato de Lucas, um desconhecido interrompe o caminho de Jesus e lhe faz uma pergunta, tão frequente naquela sociedade religiosa: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?”
Tal pergunta, no fundo, é uma ofensa ao amor de Deus e, por detrás dela, já percebemos uma falsa imagem d’Ele, como se Deus fosse aquele que põe travas à salvação e não quer que este dom chegue a todos.
Por isso, Jesus não responde diretamente à pergunta. O importante não é saber quantos se salvarão; não lhe interessa especular sobre este tipo de questões estéreis, mas vai diretamente ao essencial e decisivo: viver com atitude lúcida e responsável para acolher a salvação do Deus que é suma bondade e quer que todos se salvem. Quem está disperso e distraído não está em sintonia com o dom da salvação, perde a oportunidade de acolhê-la e deixar-se inspirar por ela. Por isso, Jesus insiste: “Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita”.

Para entender corretamente o apelo a “entrar pela porta estreita”, é preciso recordar as palavras de Jesus encontradas no evangelho de João: “Eu sou a porta; quem entrar por mim será salvo” (10,9). Entrar pela “porta estreita” é fazer caminho com Jesus, aprender a viver como Ele, revestir-se do modo de ser e de viver d’Ele... O que Jesus pede não é rigorismo legalista, mas amor radical a Deus e aos outros.
Por isso, seu chamado é fonte de exigência e não de angústia. Jesus é uma porta sempre aberta, para que, ao passar por ela, vivamos em plenitude. Ninguém pode fechá-la; só não conseguimos atravessá-la quando nos fechamos em nosso legalismo e moralismo.
Ao longo da história da espiritualidade cristã esta frase“esforçai-vos por entrar pela porta estreita” - foi entendida como “sacrifício”, “mortificação”, “renúncia”... Uma leitura mais serena destas palavras, no entanto, nos faz ver que não se pode confundir “porta estreita” com “conquista de méritos e recompensas”, inflando um “ego religioso e perfeccionista”.
Não conhecemos nenhum mestre espiritual que tenha dito que a porta que conduz à Vida seja cômoda ou ampla. Espaçosa e plena é a própria Vida, mas a porta é estreita. A rigor, é tão estreita, que só pode ultrapassá-la quem está disposto a esvaziar sua pequena identidade egóica.
Sabemos que, um “ego inflado”, compulsivo, cheio de si, obeso...não tem como passar pela “porta estreita”. Para entrar por ela é preciso despojar-se de tudo aquilo que foi sendo acumulado ao longo da vida: posses, honras, consumismo, vaidades, poder, prestígio... “Entrar pela porta estreita” é desapropriação do ego, é desinflar-se, deixar transparecer a verdadeira identidade do próprio ser.
Para fazer o caminho com Jesus não se pode ter excesso de gorduras nas ideias, no coração, nas atitudes... Ser peregrino com Ele supõe leveza, flexibilidade, mobilidade...
As portas do Reino estão sempre abertas; e estão abertas para todos. Mas, muitos “egos” vivem cheios de si mesmos e ocupam todo o espaço da entrada da porta. Eles não entram, porque estão bloqueando a porta, mas também não deixam entrar aqueles que querem passar por ela.
Os “egos inflados” acreditam estar dentro, quando na realidade estão fora; acreditam ser donos da porta; não se atrevem a entrar por medo à verdade e preferem ter um pé dentro e outro fora.

Numa perspectiva psicológica, conhecemos a imagem da porta nos nossos sonhos. Quando sonhamos com uma porta trancada, isso significa que perdemos o contato com nosso interior, com nosso coração, com nossa essência e vivemos apenas na exterioridade.
No evangelho deste domingo, as pessoas que o dono da casa afirma não conhecer, vivem apenas na superfície de si mesmas. Elas não têm uma vida ruim, mas tudo o que fazem acontece apenas no mundo exterior e não tem nenhuma relação com seu coração. Até mesmo sua fé é meramente exterior. Elas vão à Igreja, são rígidas com as leis morais e cumprem com os deveres religiosos. Mas ao fazer isso não entram em contato com seu coração. Elas até se lembram que seguem Jesus, dizem ter comido e bebido com ele e ter ouvido seu ensinamento. Mas seu coração está fechado. A proposta de vida plena, apresentada por Jesus, não desperta ressonância no “eu profundo” delas.
O dono da casa ao dizer -“não sei quem sois” - simplesmente está afirmando que tais pessoas não se parecem em nada com Ele.
A dureza destas palavras ressoa como um chamado realista a nos despertar para reconhecer-nos na Vida. Quem não entra em contato com sua dimensão mais profunda, não participa da vida, aquela revelada pelo “Reino do Pai”. Afinal, “o Reino de Deus está dentro de vós” Lc 17,21)


Portanto, a parábola deste domingo nos convida a fazer a travessia do exterior para o interior, restabelecendo o contato com nosso coração. Na verdade, a porta estreita conduz a um horizonte mais amplo; atravessá-la significa alcançar a harmonia conosco e fazer emergir o que é mais nobre em nós: recursos, dons, criatividade... Se nos contentarmos em seguir o modo de viver dos outros, não viveremos a verdade de nós mesmos. Nosso processo de humanização só poderá se ampliar se encontrarmos nossa porta pessoal e passarmos por ela.
Indubitavelmente, passar pela “porta estreita” significa uma experiência de “morte” àquilo que não somos para que possa viver o que somos. Só assim nossa vida, ao atravessar a porta, se expandirá.
E essa morte não acontece sem dor: ao ego lhe dói morrer a seus apegos, suas gratificações, suas necessidades, suas expectativas; ao ego lhe dói fazer uma “lipoaspiração” de suas gorduras; ao ego lhe dói deixar o que lhe dá uma sensação de segurança. Por isso, quando ele se sente frustrado, começam a aparecer sensações degradáveis e uma série de mecanismos de defesa entram em ação.

Com sua mensagem forte, Jesus nos convida a procurar e encontrar a chave para abrir a porta da casa do nosso “eu verdadeiro”, a entrar em contato com nosso coração, o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as ideias-força, os dinamismos da vida... O “tesouro do ser”, ainda que pareça esquecido, permanece armazenado e pode tornar-se a força que orienta toda a vida, um lugar de fecundidade, de criatividade, fonte de renovação...
O símbolo da “porta” não se define em si como um espaço, não é um lugar, mas é o “limite” entre um lugar e outro, é o interstício entre dois espaços, é o que divide dois modos de ser e viver.
“Passar a porta” significa ir ao encontro do novo, do futuro, do diferente, do “fora do normal”...
O “outro lado” é um espaço não conhecido, é um lugar ainda não explorado.
Somos “seres de travessia”; é próprio do ser humano ousar, romper, ir além... Para isso é preciso arriscar para viver uma experiência transformadora, aproximando-nos do diferente: abrir portas de mundos que desconhecemos; viver situações às quais não estávamos acostumados; sentir coisas que nunca havíamos sentido; conhecer segredos que tornarão mais autêntica nossa vida...


Texto bíblico:  Lc 13,22-30

Na oração:
A porta estreita que atravessamos representa a nossa porta pessoal, que precisamos encontrar e atravessar, para deixar o rastro da nossa própria vida neste mundo. A porta espaçosa representa a que todos usam; a porta es-treita é a passagem original que Deus preparou para cada um de nós: ela aponta para nossa identidade única e é por ela que Deus acessa ao nosso interior. É nas fendas de nossos limites e fragilidades que Deus encontra mais facilidade para entrar em nosso coração e não pela porta da perfeição.
- A “porta” da sua vida dá acesso ao novo e diferente ou está travada pelo medo e preconceito?

domingo, 18 de agosto de 2019

Assunção: vida plena antecipada

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Assunção de Maria.

“Então Maria se levantou e se dirigiu apressadamente à serra, a um povoado da Judéia” (Lc1,39)

O mistério da Assunção desperta imagens de movimento, de atração para cima, de impulso ascensional; nosso olhar é atraído para a altura e vemos a Maria elevada para a plenitude que chamamos “céu”.
Ao falar da Assunção nos referimos ao cume do processo vital de Maria, o resultado final da obra que Deus realizou naquela que não colocou nenhuma resistência à sua ação: “Faça-se em mim...”.
A proclamação do dogma da Assunção foi uma maneira de revelar que a salvação de Maria foi absoluta e total, ou seja, que alcançou sua plenitude. Essa plenitude só pode consistir em uma unificação e identificação absoluta com Deus. Maria foi “aspirada” para “dentro” de Deus.
Ela terminou o ciclo de seu processo de maturação terrena e chegou à sua plenitude, através do processo interno de identificação com Deus. Mas, ao “ser assunta ao céu”, Maria não se afastou de sua condição de mulher do povo, pobre e despojada.
Nessa identificação com Deus não cabe mais nada. Chegou ao limite de suas possibilidades. Porque “assumiu” Deus em sua vida, Maria foi “assumida” totalmente por Deus; ela deixou Deus ser grande na sua vida; por isso, Deus a engrandeceu plenamente.

Sabemos que, para chegar à Assunção, Maria viveu um longo caminho de des-centramento, de “saída de si”, de esvaziamento, para que Deus “realizasse maravilhas nela”. Maria foi “assunta ao céu” porque “desceu” em direção aos outros, revelando-se como a “mulher do serviço solidário”.
O evangelho deste domingo nos apresenta Maria “caminhando depressa”, desde Nazaré da Galileia até às montanhas da Judéia, para chegar à casa de sua prima Isabel; naquela primeira “meta” de sua corrida, recebeu dos lábios de Isabel a primeira bem-aventurança: “Feliz és tu que acreditaste...” Esta expressão foi a antecipação da felicitação que Maria vai receber no final definitivo de sua trajetória. Toda a vida de Maria consistiu em dirigir-se apaixonadamente para essa meta definitiva, profundamente associada à vida e missão do seu próprio Filho.

 “Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente transfigurada, e todas as criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher «vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça» (Ap12, 1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de toda a criação. No seu corpo glorificado, juntamente com Cristo ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude da sua beleza. Maria não só conserva no seu coração toda a vida de Jesus, que «guardava» cuidadosamente (cf.Lc2, 51), mas agora compreende também o sentido de todas as coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a contemplar este mundo com um olhar mais sapiente(Laudato Si, 241)
Estas palavras do Papa Francisco nos situam frente ao mistério da Assunção da Virgem Maria aos céus. Maria revela, à Igreja e à humanidade, o final da vida do ser humano, o sentido da peregrinação desta vida, os motivos de esperança. Em um mundo que bloqueia cada dia mais o horizonte de sua transcendência, em um mundo onde cada dia se faz mais asfixiante o clima do sem sentido e a falta de esperança, em um mundo onde cada dia temos mais motivos para o pessimismo..., este mistério da Assunção de Maria nos abre a uma dimensão mais profunda da vida, ou seja, nos capacita a perceber um novo sentido sobre a nossa peregrinação terrestre. Trata-se de um convite a uma certeza e a uma visão mais otimista sobre a humanidade e seu futuro.
Este Mistério nos recorda que o verdadeiro ser humano ainda não está em casa. Estamos todos a caminho. A luz do mais além ilumina nossa atualidade; a certeza de futuro dá sentido e consistência ao presente.

Esta plenitude à qual chegou Maria, nos abre a esperança de seguir seus passos. E os passos de Maria são os passos da Visitação, daquela que faz de sua vida um serviço por pura gratuidade.
O texto de Lucas sobre a Visitação está carregado de símbolos. A primeira palavra em grego é “anastasa”, que significa “levantar-se”, “surgir”, e que na tradução oficial passou por alto. É o verbo que o mesmo Lucas emprega para indicar a ressurreição. Significa que Maria ressuscita a uma nova vida, e sobe à “montanha”, o espaço do divino. Maria foi “assunta” porque “subiu” em direção ao serviço.
A visita de Maria à sua prima simboliza a visita de Deus a Israel. A subida da Galileia à Judéia nos está adiantando a trajetória da vida pública de Jesus. O “Emanuel” se manifesta no sinal mais simples, uma visita. Tudo acontece fora da esfera da religião oficial. A partir de agora, devemos encontrar a Deus no cotidiano das casas, onde se desenvolve a vida. Jesus, já desde o ventre de sua mãe, começa sua missão de levar aos outros a salvação e a alegria.

Todos sabemos que quando os seres humanos se encontram, acontece uma mudança, uma transformação. Lucas nos recorda isso tantas vezes em seu Evangelho, sobretudo no relato do ícone da Visitação.
Maria se faz caminho para visitar a sua prima Isabel e revelar o verdadeiro sentido do encontro.
O encontro muda nossa vida. Além disso, um encontro não vem sozinho: tem o efeito cascata, pois nos move a fazer o estupendo percurso que nos leva do “eu” ao “tu” esvaziando-nos de toda auto-referencialidade, que é o real impedimento do autêntico do encontro; assim, chegamos ao fecundo “nós”, criando uma rede de solidariedade.
Em todo encontro revelamos nossa verdadeira identidade; nele, nos reconhecemos diferentes, e a diversidade nos enriquece. Isso ocorre, sobretudo, quando do encontro passamos à convivência, à companhia, à colaboração e à corresponsabilidade.
A “cultura do encontro” é nossa maneira de ser e fazer Igreja, de construir a comunhão, de visibilizar a caridade, de exercer a misericórdia.
Trata-se de caminhar para um novo paradigma, que nos leve da acolhida ao encontro, do encontro ao cuidado. Esta nova sensibilidade nos abre à acolhida da vida descartada, excluída, enferma e muitas vezes fracassada, para ser lugar e espaço de humanização.

Nos encontros, a vida de cada pessoa é ativada, enriquecida, potencializada. Quem se experimenta a si mesmo como “vida” é já uma pessoa “assunta ao céu”. A Vida definitiva já está “pairando” sobre nossa vida. Por isso, Assunção é vida plena antecipada, é um contínuo renascer, uma nova criação.
Vivemos já a Assunção quando não nos deixamos determinar por uma vida estreita e atrofiada, presa pelos apegos... Somos “assuntos” quando sonhamos, buscamos e ativamos todos os dinamismos humanos de crescimento e de expansão em direção aos outros. Nós nos “elevamos” quando “descemos” em direção à humanidade ferida e excluída. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da realidade pessoal e social, sendo presença servidora.
“Viver a assunção” implica esvaziar-nos do “ego”, para deixar transparecer o que há de mais divino em nós. Não há maior glorificação. Este esvaziamento não implica a nossa anulação enquanto “pessoa”, mas nossa potenciação. Na medida que os aspectos que a limitam diminuem, aumenta o que há de plenitude.
Com razão, viu S. Inácio no “sair do próprio amor, querer e interesse” o termômetro de toda vida espiritual, a chave de toda existência que queira deixar transparecer o ser e o agir de Deus em nós.
O “sair do próprio amor” significa que o centro da vida seja ocupado não pelo ego com suas velhas pulsões de cobiça, honra vã e soberba, mas por Deus. Significa que, a partir desse lugar de adoração e de encontro, nosso eu se abra às preferências de Deus, deixando “Deus ser Deus” em nossa interioridade.
Assim, na nossa peregrinação, já temos o privilégio de “saborear” antecipadamente o dom da Assunção.


Texto bíblico: Lc 1,39-56

Na oração:
Contra uma concepção cada vez mais “econômica” do mundo, contra o triunfo do possuir, do ter, do prestígio, o Magnificat exalta a alegria do partilhar, do perder para encontrar, do acolher, do admirar, da felicidade da gratuidade, da contemplação, da doação...
O ser humano, e todo o seu ser, transforma-se então em louvor a Deus. Nenhum outro texto nos revela de maneira tão densa e tão profunda a vida interior de Maria, os pensamentos e os sentimentos que invadem sua alma, a consciência de sua missão, sua fé e sua esperança, sua experiência de Deus, enfim.

Rezar as “marcas salvíficas” de Deus na sua história pessoal: Que maravilhas o Senhor tem feito em sua vida?

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Esperas Construtivas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 19º Domingo do Tempo Comum - Ano C.



“Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento...” (Lc 12,36)

O texto do evangelho deste domingo faz parte de um amplo contexto, que começou no domingo passado com a petição de alguém a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”. A partir daí, Lucas revela uma longa conversação de Jesus com os discípulos e toca diversos temas de difícil harmonização. Naturalmente se trata de pensamentos dispersos que o evangelista organiza à sua maneira para ir aclarando as exigências de Jesus, na formação do seu discipulado.
No domingo passado, Jesus nos pedia para não colocar nossa confiança nas riquezas; hoje, Ele nos diz em quem devemos confiar para que nossa vida seja autêntica. Confiadamente, é preciso ativar todos os recursos de nosso ser, conscientes que Deus atua em nosso interior, e que só através da sintonia com essa presença interna nossa vida avança, amadurece e se plenifica. Nosso Deus não é o “Deus todo-poderoso” distante, mas o fundamento de nossa vida: afinal, somos morada do Deus sempre surpreendente.

A condição humana pode ser definida em termos de “espera radical”.
O nosso coração está habitado por “esperas” de todo gênero. São tantas as esperas na vida humana!
Está todo mundo esperando. É através das esperas que nos fazemos humanos.
Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, abertura, busca, esperança...
A espera está ligada ao verbo “esperançar”: espera ativa, aberta ao futuro imprevisível, ao novo plenificante...; ela cria o espaço vital que permite a realização do possível.
Quem espera faz-se disponível, acolhedor, abre espaço para o mistério do outro que lhe vem ao encontro; quem espera, acolhe o diferente. Os intolerantes e preconceituosos não esperam nada: amargam a vida no fechamento, no dogmatismo e no moralismo.
Esperar é passar do “tempo fechado” ao “tempo aberto”, da fugacidade do “ter” à plenitude do “ser”, do “lugar estreito” ao “lugar amplo”, do “medo paralisante” à “coragem criativa”...
Durante a espera, a imaginação trabalha e cria mil momentos insuperavelmente felizes.
E quando acontece o encontro entre o desejo e a realização, entre a espera e o esperado, entre o vazio e aquilo que plenifica, explode uma alegria incontida. Uma mistura de festa com ternura e boas emoções   solidificam esta certeza: valeu a pena esperar!

A vida que é feita de tantas esperas, também é “esperada”. Somos continuamente tentados a pensar que somente nós esperamos e esquecer que também Deus nos espera. A espera divina é paciente, compreensiva e compassiva.
Em nossas esperas, somos ansiosos e impacientes; fazemos da espera um tempo “em branco”, vivendo como se nada estivesse para acontecer, mergulhados no tempo rotineiro, sem abertura à surpresa.
Não sabemos esperar: basta ir às salas de esperas dos hospitais e consultórios para comprovar como as pessoas se desesperam porque não lhe atendem à hora marcada. Perdemos a paciência porque pretendemos que tudo seja imediato e a nosso gosto. Não suportamos uma contradição.
O evangelho deste domingo pode ser uma boa oportunidade para recordar isto. Exercitar-se na arte de esperar com paciência. Desejar, dar asas à imaginação sobre aquele que vai chegar, sem que esteja em nossa mão adiantar ou controlar sua chegada.

Deus, pelo contrário, nos espera incansavelmente. Por isso se “humanizou”. Não nos esperou com prepotência, tampouco com soberba. Esperou na humildade, no húmus da vida, afundando os pés na nossa existência.
Mas Deus não precisa vir de nenhuma parte. Ele está chamando sempre, mas a partir de dentro de cada um de nós; é a partir de dentro que Ele se faz visível em nossas relações com os outros.
Somos nós que projetamos Deus fora e distante de nós, que nos ameaça com prêmios e castigos, que aparece de surpresa para nos pegar em flagra. O medo de Deus brota quando o imaginamos fora de nós. “Deus de fora” é o Deus idealizado, que alimenta medo, ameaça com inferno, que castiga.
No evangelho deste domingo, Jesus revela “Deus em saída” até o ser humano e des-vela o ser humano em saída até Deus. E o encontro entre ambos é o que o Evangelho propõe. O encontro de pessoas que se esperavam: como nos aeroportos-rodoviárias, desejando a chegada do(a) amigo(a); ou nas salas de urgências dos hospitais desejando saber a situação do enfermo familiar.
Essas são esperas autênticas: desejantes, emocionantes, inocentes... porque esperam uma pessoa.
Essa deve ser a disposição de uma “Igreja em saída” e que não aguarda em uma sala de espera.

O decisivo é entrar em sintonia com o Deus presente em nós; “esperar” significa estar desperto para conectar-nos com essa presença, sempre nova e sempre cheia de surpresa. Deus, ao mesmo tempo, está sempre presente e sempre chegando de maneira surpreendente. Ele é dom e pura gratuidade. Aqui não há mais lugar para o medo, a culpa, a angústia. Quem entra em sintonia com Ele e se deixa conduzir por Ele não atua por mérito, mas por pura gratuidade.
O evangelho de hoje, através de parábolas, nos apresenta alguém que não vive a relação com Deus internamente. O que acontece com ele? As consequências são funestas, provocadas não por Deus, mas pela pessoa mesma: irresponsabilidade no serviço, violência com os outros, auto-agressão, partindo-se ao meio... Uma experiência infernal.

Um cristão é uma pessoa que vive em “estado de espera”.
O importante é isto, o “estado”, o processo, a continuidade, o estar sempre a tempo, sempre alerta, sempre preparado. A vida inteira se converte numa contínua espera: o equilíbrio, o contato, a liberdade, a generosidade, cada nervo sintonizado, cada músculo em forma. E assim entramos na vida e enfrentamos mil situações.
Cada pequeno encontro é uma satisfação em si mesma e uma preparação para a seguinte. Sempre avante. Avanço que pode ser mudado de direção a cada instante.
“Não morras na sala de espera” (Hervey Cox). As “salas de espera do espírito” estão cheias de pessoas que simplesmente estão ali, ali moram e permanecem, ali vivem e morrem. O fato de já estar na “sala de espera” lhes dá a impressão de que já fizeram alguma coisa, já começaram a viagem.
As esperas têm rosto de criatividade, de itinerância, de abertura ao diferente. Elas põem em ação nossos melhores recursos internos; elas alimentam uma contínua atitude de busca.
Só assim o coração estará mais preparado para a chegada do Momento cume, quando deixaremos “Deus ser Deus” na nossa morada interior.


Texto bíblico:  Lc 12,32-48

Na oração:
Você é um impaciente? Não suporta esperar a fila no cinema? Fica nervoso quando o ônibus atrasa mais de cinco minutos? Espera que lhe respondam as mensagens de Whatsapp em questão de segundos? Ou quando alguém chega um pouco atrasado no encontro marcado?...
E, no entanto, você sabe que o importante requer seu tempo, que os bons pratos são cozidos a fogo lento.
A paciência não é uma palavra da moda hoje em dia. E talvez por isso é das mais necessárias. A paciência supõe esperar e respeitar os tempos. Supõe desejar a chegada do outro e não ter mais que fazer a não ser esperar. Desejar e esperar.
- Como você vive suas “esperas cotidianas?”

sábado, 3 de agosto de 2019

O Ego Perdido nos Celeiros

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 18º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Atenção! Tomai cuidado com todo tipo de ganância” (Lc 12,15)

No caminho para Jerusalém, por entre incidentes, encontros e palavras que aquecem a viagem, o evangelista Lucas aproveita dos diferentes episódios para nos revelar como Jesus vai formando seus (suas) discípulos(as) no verdadeiro seguimento. No domingo passado, aprendemos a orar com Jesus; no próximo domingo, seremos motivados a alimentar uma atitude de vigilância frente às responsabilidades que nos são confiadas; neste domingo, o evangelho ensina a nos preservar das falsas seguranças, que consistem em acumular bens materiais para si mesmo, em vez de compartilhá-los com os outros.
A questão que nos é colocada é a seguinte: queremos nos tornar ricos de celeiros ou de coração?
O relato tem duas partes: na primeira, Jesus se nega a ser árbitro em um conflito de herança; na segunda, Ele nos adverte do risco de centrar nossa vida em buscar segurança nos bens terrenos, distanciando-nos do verdadeiro sentido de nossa existência.

Expandir a verdadeira Vida não depende de ter mais ou menos, mas de ser.
Se o primeiro objetivo de todo ser humano é ativar ao máximo sua humanidade e o evangelho nos diz que ter mais não nos faz mais humanos, a conclusão é muito simples: a posse de bens de qualquer tipo, não pode ser o objetivo último de nenhum ser humano. A armadilha de nossa sociedade de consumo está nisso: quanto maior capacidade de satisfazer necessidades nós temos, maior número de novas necessidades despertamos; com isso, não há possibilidade alguma de marcar um limite. Já os antigos santos padres diziam que o objetivo da vida não é aumentar as necessidades, mas fazer com que essas diminuam cada dia que passa. Esse seria o sentido inspirador da vida, ou seja, vida descentrada, oblativa, aberta...
É muito difícil manter um equilíbrio nesta matéria. Não há nada de mal buscar nível melhor de vida. Deus nos dotou de inteligência para que sejamos previsores. Prever o futuro é uma das qualidades próprias do ser humano. Jesus não está criticando a previsão, nem o empenho por uma vida mais digna. Ele critica, sim, que façamos isso de uma maneira egoísta, afastando-nos de nossa verdadeira meta como seres humanos.
Alimentar necessidades é estar centrado em si mesmo, nutrindo o próprio “ego”.

A parábola deste domingo revela que a cobiça nos incapacita para viver uma vida mais humana. Cobiçar é desejar com ânsia aquilo que dá sensação de segurança ao nosso “ego”.
O rico da parábola não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade. Só vive para acumular, armazenar e aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em encher seus celeiros e dedicar-se à boa vida; não está no seu horizonte que os outros também precisam se alimentar. Só vive para alimentar seu instinto de posse: “meus celeiros”, “meu trigo”, “meus bens”. Não percebe que seu “ego” apodrece em meio aos vastos celeiros.
O homem insensato do evangelho vive para “inflar seu ego”. Contudo, o ego não é o seu verdadeiro “eu”, não é ele. É uma falsa imagem de si mesmo. É a ilusão de que ele é um indivíduo separado, independente, isolado e autônomo. Seja qual for a imagem que cada um tem de si, todos, efetivamente, fazem parte de um universo imenso, em que tudo é interdependente e tudo está intimamente ligado entre si. Todas as divisões, conflitos e rivalidades entres os seres humanos nascem da ilusão de um “ego” que se sente separado e independente dos outros e da natureza.

O “eu ensimesmado” tende a ser depredador e exigente; quer toda a realidade a seu serviço. Então, tudo fica desfocado, tudo se desvia, tudo se perverte, porque falta aquela atitude “reverente”, ou seja, viver na alteridade diante do Deus da Vida, das suas criaturas e diante dos outros...
O “ego inflado” se transforma em centro autônomo: fundamento, farol e vigia de toda a realidade. Com isso, o ser humano perde a dimensão de ser criatura. A “dependência” para com o Criador é sentida como ameaça à capacidade de decisão sobre a própria vida.
O ego não tem consistência própria: é uma construção mental e uma identidade transitória e, portanto, parasitária. Para subsistir – para ter uma sensação de existir –, necessita aferrar-se a qualquer “objeto” que o alimente: tudo o que seja ter, poder ou aparentar. Vive para ter e acumular, para conseguir poder e impor-se, para figurar e destacar.
Em tudo isso acredita encontrar segurança, estabilidade e, em definitiva, consistência.

Quando nos sentimos genuinamente movidos por sentimentos de compaixão para com as pessoas necessitadas, quando ativamos o espírito solidário, quando compartilhamos agradecidamente tudo o que somos e temos, então é o nosso “verdadeiro eu” que está se manifestando. Quando reconhecemos um momento de honestidade e sinceridade no nosso desejo de conhecer a verdade acerca de nós mesmos ou do sentido de nossa vida, esse é o nosso verdadeiro eu. Nos momentos em que agimos com uma coragem e valentia inexplicáveis e fora do normal, isso também brota de um impulso que provém das profundezas do nosso próprio ser.
Quando começamos a sentir uma grande gratidão pelos inúmeros dons que a vida nos oferece, podemos ter a certeza de que isso não provém do nosso ego. O ego é completamente incapaz de sentir gratidão. Sentir uma gratidão imensa por todos os dons e graças que recebemos é um sentimento que brota do mais profundo do nosso coração.
Se, alguma vez, já experimentamos a alegria tranquila de deixar de lado nosso ego, fazendo alguma coisa pelos outros, sem receber qualquer recompensa ou agradecimento, e sem que ninguém o saiba, então entramos em contato com o nosso “eu mais original e divino”. E quando nos sentimos invadidos por uma onda de assombro e deslumbramento, quer dizer que estamos deixando o nosso verdadeiro eu se expandir.

No centro da mensagem de Jesus encontramos a revelação de Deus como Pai e a proclamação da igualdade e da fraternidade de todos os seres humanos. A criação de uma comunidade onde o compartilhar substitua a acumulação, e que se apresente como alternativa àquilo que o mundo propõe, configura-se como uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
Contra a tendência de querer apropriar-nos de tudo como busca de segurança e como defesa hostil diante dos outros, Jesus nos convida a viver a partilha, como abertura aos outros e como possibilidade para a criação da “nova comunidade”, que se constitui como alternativa frente às relações interpessoais fundadas na acumulação e no consumismo.
Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevolente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, há superabundância.
Dito positivamente: trata-se de um convite a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.
A verdadeira riqueza é investir numa única fortuna: a do amor, a do favorecimento da vida, a do descentramento de si mesmo em favor do serviço ao outro, o das obras em favor dos mais pobres e desfavorecidos. Isso é “ser rico para Deus”.


Texto bíblico:  Lucas 12,13-21

Na oração:
Não permaneça na superficialidade do teu ego; desça mais ao fundo de ti mesmo e descobrirás a harmonia. Teu verdadeiro ser é paz, é mansidão, é bondade. Vai mais além de teu falso ser!
Empenha-te em deslanchar teu verdadeiro ser: mais oblativo e solidário.
Dentro de ti está a plenitude, está a felicidade no viver descentrado. Descubra-a!