sábado, 27 de junho de 2020

Referências inspiradoras no seguimento de Jesus

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar da festa de S. Pedro e S. Paulo, dois grandes personagens que nos inspiram a viver o seguimento de Jesus.


“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15) “Quem és tu, Senhor?” (At 9,5)

Os acontecimentos e, sobretudo, as pessoas que encontramos ao longo da existência, são os que vão nos fazendo passar por contínuas transformações. Por isso, quando narramos nossa história de vida, quase sempre mencionamos alguém em particular que nos marcou profundamente. Já não somos mais os mesmos depois de ter conhecido certas pessoas que se tornaram especiais. Nosso olhar e nossa memória retornam a elas frequentemente, por sua constante inspiração e companhia.
Por isso, a pergunta que Jesus dirige aos discípulos não é superficial – “E vós, quem dizeis que eu sou?” Esta é a questão, a grande pergunta de Jesus que continua ressoando em todos nós, seus(suas) segidores(as). Dependendo da resposta que damos, isso terá implicações profundas em nossa existência: a centralidade do modo de ser e de agir de Jesus em nossos compromissos, a ressonância de suas palavras em nossa vida, a sintonia com suas grandes opções, a sensibilidade diante dos mais pobres e excluídos, a nova relação com o Pai... Em outras palavras, o encontro com a identidade de Jesus des-vela nossa verdadeira identidade e, por isso mesmo, nosso modo de ser e de agir serão cristificados.
Segundo o evangelho deste domingo, só reconhecendo a identidade de Jesus estaremos capacitados para escutar o que Ele tem a nos dizer. Por isso, quando Pedro declarou quem era de verdade Aquele a quem tinham seguido, o Senhor mudou seu nome – “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”. Só Jesus conhece bem quem somos e o que podemos realizar.
O ser humano é um ser chamado. Chegamos a ser nós mesmos graças ao chamado, ao olhar, à palavra de outro. E na palavra e no chamado que nos vem de Jesus, vamos percebendo que o mistério de Deus, totalmente outro e absolutamente íntimo, nos envolve e nos fundamenta.

Não podemos definir Jesus com dogmas e doutrinas, mas também não podemos deixar de nos fazer a pergunta: “quem é este homem Jesus”? Toda tentativa de responder com fórmulas fechadas não solucionará o problema. A resposta deve ser vivencial, não teórica: “quê dizes tua vida de mim?”, pergunta Jesus.
Nossa vida, enquanto seguidores(as), é a que deve dizer quem é Jesus para nós. Do esforço dos primeiros cristãos por compreender a Jesus devemos fazer nossas as perguntas que foram feitas, não as respostas que deram. Por mais informações que recebamos sobre Ele, por mais normas morais e ritos que aprendamos e pratiquemos, se ninguém nos convida, com sua vida, a prolongar o estilo de vida de Jesus, tudo permanecerá superficial e em nada nos enriquece.
Dar por definitivas as respostas dos primeiros concílios acabam nos afundando na rotina da repetição de fórmulas. O decisivo é descobrir a qualidade humana de Jesus e deixar que Ele desvele o que há de mais humano em cada um de nós. Afinal, o centro da missão do Mestre de Nazaré está em nos ajudar a sermos um pouco mais humanos, sobretudo nas relações com os outros e com o Pai.
Se cremos que o importante é a resposta, que já está dada, todos permanecemos em paz e acomodados; isso é grave. Hoje sabemos que o importante é que continuemos fazendo-nos a pergunta; a resposta nos paralisa; a pergunta nos mantém acesos e criativos, pois esta tem impacto no modo cristificado de viver.
Uma fé, vivida sem perguntas, acaba se esvaziando daquele mesmo impulso vital de Jesus. Somos seguidores(as) de uma Pessoa (Jesus Cristo) e não de respostas teológicas.

Nossa fé cristã hoje é a mesma de Pedro e de Paulo: seguir Jesus Cristo e, em nossa maneira de viver, oferecer o Evangelho a todos. Assim se compreende que a Igreja celebre Pedro e Paulo numa única festa. E, por isso, não devemos nos escandalizar se, com frequência, na Igreja aflore o “Simão”, ao invés de Pedro: as ânsias de triunfalismos, busca de poder, medos na hora da perseguição... Também não podemos nos escandalizar se, com frequência, aflore o “Saulo”, ao invés de Paulo: fechamento nas próprias ideias e convicções, desembocando na intolerância, no dogmatismo e na violência, inclusive física.
Estes dois grandes personagens (Simão e Saulo) passaram por uma profunda transformação, a partir do encontro com a pessoa de Jesus Cristo; foi um processo lento, sendo lapidados pela graça de Deus até redescobrirem uma nova identidade escondida debaixo das cinzas do auto-centramento e da prepotência; identidade que agora se expressa em novos nomes: Pedro e Paulo.
Como distinguir, na Igreja, “Simão” de “Pedro”?; como distinguir “Saulo” de “Paulo”? Onde estão as fronteiras, se, ao mesmo tempo, Simão é Pedro e Pedro é Simão? Onde estão os limites, se, ao mesmo tempo, Saulo é Paulo e Paulo é Saulo?
Estes dois personagens nos fazem ter acesso à nossa condição humana: somos barro, frágeis, inconstantes...
mas carregamos um tesouro que nos dignifica. Nas profundezas de nosso ser, há um “pedro” e um “paulo”
escondidos, esperando uma oportunidade para se manifestar. Exteriormente, talvez tenhamos sido muito mais “simão” e “saulo”, mas, o que decide nossa vida, é a nossa interioridade, morada do “Pedro” e do “Paulo”. É ali que a Graça de Deus trabalha em nós, fazendo emergir, junto a estes dois personagens, o que é mais nobre e mais divino em nós. Deus, na sua eterna paciência, espera momentos especiais para dar o seu “toque” em nosso eu profundo, e assim despertar o “pedro” e “paulo” que ainda dormem.

Diante de nós está Jesus Cristo para nos dar a “chave” como a deu a Pedro; ela nos facilitará o acesso ao mistério insondável da Vida. Na perspectiva bíblica “céus” significa vida em profundidade, vida expansiva, vida que nunca se acaba. Como dinamismo humanizador, a chave da interioridade é mola mestra que movimenta grandes intuições e sonhos, retira-nos do individualismo, cultiva a solidariedade, corrige rotas de vida, excita a imaginação, realça o poder criativo...
Temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas? Podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... “Ter a chave da vida”: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar direção à vida. Atar e desatar os nós que bloqueiam o fluir da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-nos ou fechar-nos; abrir-nos à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou fechar-nos no medo, no conhecido, no rotineiro...
Deus confiou e colocou em nossas mãos a “chave da vida”. Ele não impõe, não obriga. Corre o risco de nos criar livres. Aqui está nossa grandeza, enquanto seres humanos: optar por uma vida aberta ou fechada, ser nó ou desatar, ligar ou desligar, expandir ou retrair...
Sempre há o perigo de construir, dentro de nós, um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e, com isso, mergulhamos na mais profunda solidão.

Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme (“tu és Pedro”), bem talhada e preciosa que cada um de nós tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando os desafios e as inevitáveis resis-tências na vivência do seguimento de Jesus.
É no “eu mais profundo”  que as forças vitais se acham disponí-veis para nos ajudar  a crescer dia-a-dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde vivemos o melhor de nós mesmos, onde se encon-tram os dinamismos do nosso crescimento, de onde partem as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da nossa vida.
Texto bíblico:  Mt 16,13-19

Na oração:
A oração nos torna-nos diáfanos (transparentes); ela deixa transparecer o “simão” e o “pedro” de nossa interioridade; ela des-vela o “saulo” e o “paulo”  que atuam em nós.
A interioridade é espaço aberto, onde, a intimidade com Deus não anula nossa personalidade, mas nos capacita a fazer uma contínua passagem do “simão para o Pedro”, do “saulo para o Paulo”.
- O que tem predominado em sua vida: “simão ou Pedro”? “saulo ou Paulo”?

sábado, 20 de junho de 2020

Analisa com cuidado teus medos e verás que todos são ridículos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 12º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).



“Não tenhais medo!”(Mt 10,31)

O ser humano amadurece no confronto entre desejo e medo. Não há medo sem um desejo escondido e não há desejo que não traga consigo um medo. O desejo e o medo estão profundamente ligados.
É constitutivo, na natureza humana, a tendência natural de tentar ultrapassar o imediato, de arriscar novos horizontes, de enfrentar perigos, de buscar, de criar, de se aventurar; mas, em seu interior, está também presente a tendência oposta, ou seja, poupar-se e acautelar-se, a necessidade inata de evitar o perigo, de se afastar dos obstáculos, de se acomodar no passado, no conhecido, no que dá segurança...
Há, em todos nós, um desejo de plenitude e o medo do fracasso. No nosso processo de crescimento humano, o medo não superado e o desejo bloqueado vão gerar frustrações; de outro lado, o medo superado e o desejo desbloqueado vão permitir que sejamos mais ousados e criativos.

O evangelho deste domingo nos revela que Jesus é um profundo conhecedor do coração humano; ele sabe de quê somos feitos e o que se passa no mais profundo de cada um de nós. Ele conhece profundamente as inseguranças e os medos que nos habitam.
Por isso, do seu humano coração, marcado com as fibras da coragem, brota este apelo: “Não tenhais medo!” Esta expressão está situada no contexto do envio dos discípulos em missão. Jesus acaba de dizer a seus seguidores que eles serão perseguidos e encarcerados.
Se Jesus nos convida a não ter medo, não é porque nos prometa um caminho de rosas. Não se trata de confiar em que não nos acontecerá nada desagradável, ou, se algo mal nos acontece, alguém nos livrará do perigo. Trata-se de uma segurança que permanece intacta em meio às dificuldades, sabendo que os contratempos não podem atrofiar nosso ser essencial. Deus não é a garantia de que tudo irá bem, mas a segurança de que Ele estará aí presente, em qualquer situação que estivermos envolvidos.

O apelo de Jesus também pode ser aplicado a todas as situações de medo paralisante que podemos encontrar na vida. Por detrás de numerosos comportamentos destrutivos – o consumo compulsivo, a dependência, o ódio, o racismo, a intolerância, a indiferença, a suspeita, a violência, a competição, a exclusão, a prepotência, o abuso de poder... -  se oculta o medo. O medo continua enchendo nosso planeta de vítimas anônimas, impedindo que a humanização e a harmonia, nossa vocação última, se expressem.
No atual momento, toda a humanidade está atravessada por um terrível medo: a contaminação pelo convid-19. Mas, os grandes medos não aparecem com frequência; são os pequenos medos, que surgem dos encontros diários com a realidade, que roubam da pessoa sua vitalidade e dinamismo. O medo inibe o pensamento, impede a concentração e é, portanto, muito responsável por se fazer as coisas de modo medíocre, sem valor, abaixo das possibilidades e contra as próprias expectativas.
O medo não é um ato moral nem uma omissão. Sem ser convidado, ele cresce no coração humano. Em tal atmosfera de medo, a imaginação e todas as energias criativas se atrofiam.
O medo é um câncer que ameaça a fé, o amor e a esperança de pessoas e instituições; ele corrói as fibras humanas, asfixia talentos, esvazia a vida e mata a criatividade. O medo encolhe o ser humano, inibe a decisão e bloqueia os movimentos em direção ao “mais”. Sua intensidade pode anular a capacidade de reação das pessoas ou das instituições; ele impede o discernimento e a busca da solução mais inteligente para os problemas; longe de resolvê-los, pode agravá-los a médio e longo prazo.
Enfim, o medo obscurece o sentido e a direção da vida, tira o brilho tão próprio do amor e seca as fontes da esperança; ele nos acovarda e nos enterra na acomodação mesquinha.

No evangelho, que acabamos de escutar, Jesus faz referência ao medo que pode vir de fora, provocado por aqueles que se fecham e resistem frente à novidade do anúncio do Reino. Mas, também podemos considerar o apelo de Jesus – “Não tenhais medo!” – em chave de interioridade; esta expressão se refere a um acontecimento interior, pois o medo é o inimigo de nosso eu original.
Quando o inimigo é uma força externa, nem sempre há motivos para alimentar o medo. Mas quando os inimigos se encontram no nosso próprio interior (traumas, recalques, frustrações, fracassos...), provocando medos paralisantes, é preciso ter a coragem para des-velá-los, conhecer a raiz de onde brotam, entrar em diálogo e reconciliar-nos com tudo aquilo que foi rejeitado e que continua envenenando nossa vida.
Podemos ser presa fácil de um medo que foi introjetado pelas experiências de insegurança e frustração do passado, e que impede deslanchar todas as nossas potencialidades humanas. Tal medo nos aniquila, pois mina toda possibilidade de alimentar a fé-confiança em nós mesmos, nos outros, e sobretudo n’Aquele que nunca provoca medo, com ameaças de inferno, julgamentos...
No fundo, o medo é a ignorância com respeito a nós mesmos; vivemos a cultura da superficialidade e esquecemos o caminho que dá acesso ao nosso coração. Se conhecêssemos nosso verdadeiro ser, não haveria lugar para o medo, que nos mantém confinados na prisão de nossa interioridade doentia. Se experimentássemos, por nós mesmos, a realidade que nos fundamenta, estaríamos sempre tranquilos e em paz.

Uma sadia interioridade supõe mobilizar o coração para a imprevisível revelação de um Deus Outro, que faz de nosso ser sua morada.  Isso implica adentrar-nos com os pés descalços, despojando-nos de nosso afã de domínio, de controle, “deixando Deus ser Deus”: amor, mistério, surpresa, desconcerto, noite...
Todos nós já tivemos a oportunidade de perceber as consequências funestas quando levamos uma vida dispersa, agitada, ansiosa, evasiva, inquieta...; e, ao contrário, o que sentimos e saboreamos quando entramos no espaço interior, mesmo que seja por poucos instantes: a paz do coração, a serenidade prazerosa, a percepção do sussurro amável, a brisa que nos envolve quando permanecemos submergidos na certeza de saber que somos amados, sem dependência e nem fragmentação.
Alguns testemunhos confirmam e dão crédito a esta experiência interior: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração até que descanse em ti” (S. Agostinho). “Nada te perturbe, nada te espante, quem a Deus tem, nada lhe falta, só Deus basta” (S. Teresa de Jesus)
Sem a superação cotidiana desse medo, nossa missão estará comprometida; perderá sua força inovadora, garantida pela novidade do Projeto de Deus. O compromisso com o Reino requer de todos uma forte dose de coragem e uma alma ágil, animada e vivificada pelo sabor da aventura e da novidade.
Nada de medo nesta terra sobre a qual Jesus pisou e nos corações que Ele visita diariamente.
O velho medo não vigora onde os olhos se abrem para a suprema realidade do mundo como criação de Deus, e da vida como um presente d’Ele.
Vencido o medo, nós nos tornaremos autênticos(as), criativos(as) e audazes seguidores(as) de Jesus.
     “Quem for medroso e tímido volte para trás” (Jz 7,3).


Texto bíblico: Mt 10,26-33

* Jesus conhece a necessidade de intervir no mais escondido de cada um dos seus discípulos; ali estão alojados os mais diferentes medos, que minam a força e a coragem do seguimento.
* Dar nomes aos medos pessoais: são reais? Imaginários?
* Quê desejos alimentam e sustentam sua vida?

terça-feira, 16 de junho de 2020

Coração Divino que nos Humaniza

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade do Sagrado Coração de Jesus.


“...aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29)

Uma das devoções que tiveram (e continua tendo) mais êxito ao longo da história da Igreja é a do Sagrado Coração de Jesus. As “paredes” do universo estão cheias do eco que as palavras da famosa jaculatória deixaram“Sagrado Coração de Jesus, eu confio em vós”. São incontáveis as vezes que foram pronunciadas, e imensurável a fé de que foi portadora.
Graças ao Coração de Jesus, entronizado em milhares de casas e colocado na porta de milhões de lares, se manteve firme a experiência de prolongar a humanidade de Jesus em nossas relações cotidianas, a vinculação do Evangelho com a vida concreta, a vivência do amor, uma maneira original e inspiradora de se situar no mundo (trabalhos, atividades, compromissos...), a sintonia com a Presença Providente de Deus...
Para muitos de nossos contemporâneos, causam uma certa resistência as representações que mostram Jesus com o coração transpassado e, com frequência, rodeado com uma coroa de espinhos. Se queremos atualizar esta devoção e encontrar um sentido que responda aos anseios de muitas pessoas de hoje, é necessário deixar de concentrar nosso olhar no “coração físico” de Jesus e recuperar o sentido bíblico e amplo do coração, como centro de nossa afetividade e de nossas decisões mais íntimas. Neste sentido, o Coração de Jesus revela a misericórdia de Deus que se expressa em todas as palavras e atos do Mestre de Nazaré.

A imagem do Coração de Jesus, em sua origem, fala de amor, com maiúsculas. O Amor. Não uma imagem suave das coisas nem uma aproximação só emocional à fé, mas o Amor, que dizemos que é Deus, e que se faz visível em Jesus. Amor verdadeiro, que é uma maneira original de olhar a realidade, conhecendo-a, assumindo-a e comprometendo-se com ela. É assim que Deus nos olha. É assim que Jesus nos olha.
Seu coração se rompeu numa cruz, mas continua pulsando já ressuscitado. E essa pulsação é hoje clamor em nossa história e nosso presente.
Jesus vivia a partir de seu coração e contagiava com a força poderosa de seu amor e de sua entrega.
Por isso, a melhor devoção ao Sagrado Coração de Jesus é “entrar em Seu coração”, é sentir o amor que queimava n’Ele; é sentir-nos amados por Ele, é aprender que o caminho do verdadeiro seguimento não é um ato de piedade, mas uma atitude de vida no amor. É descobrir que a verdade das “Nove primeiras Sextas-feiras” não se restringe em “confessar e comungar”, mas está no aprender a amar como Ele nos amou.
Todos estamos no coração de Cristo. Todo estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, humanizou-se e se fez semelhante a nós para que todos pudéssemos nos sentir n’Ele e nos tornássemos um pouco mais humanos.
Uma devoção ao Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações humanas, prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma devoção vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.

Na nossa cultura atual, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por outro lado, vivemos um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de pré-juizos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os laços humanos.
A devoção ao Coração de Jesus pode nos ajudar a descobrir as enormes possibilidades de nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em nós um coração que faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, preconceitos, ódios...
O Coração de Jesus nos capacita olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Ao sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração de Jesus nos ajuda a recuperar o “humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar nosso coração para humanizar as relações.

No sentido bíblico, “coração” é uma palavra primordial; ela nos remete ao mais profundo e vital de nossa essência e existência. O coração designava o complexo mundo interior do ser humano.
O coração profundo é o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que não consiste no sentimento, mas no lugar do encontro com Deus. A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano, num sentido muito mais lato que o das línguas latinas, no qual o coração evoca a vida afetiva. Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e plenamente em direção a Deus e ao bem.
Recordações, pensamentos, projetos e decisões são alguns dos componentes essenciais desse órgão vital por excelência. O que acontece no coração tem caráter decisivo. “O mistério interior do ser humano, tanto na linguagem bíblica como no não bíblico, se expressa com a palavra coração” (Xavier León-Dufour).
O despertar da identidade única de cada pessoa se dá no santuário de seu interior, que é o coração. Nele está estampada nossa imagem e semelhança divinas, pois no coração está gravada a imagem divina oculta. S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de Deus”.

“O sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração” (Olivier Clément). Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre” onde se guarda/oculta o que é mais nobre e rico em nós. Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
O coração é uma dessas palavras nas quais toda a multiplicidade se torna uno.
É ele que possibilita a pessoa chegar à unificação de todo o seu ser, integrando a corporalidade, a afetividade, a sensibilidade, a razão..., para além da bela expressão de Pascal: “O coração tem razões que a razão não conhece”. O fato é que há “olhos no coração” que permitem compreender o que nem os olhos do corpo, nem a razão são capazes de perceber: “Rogo a Deus que ilumine os olhos dos vossos corações, para que conheçais qual é a esperança à qual fostes chamados” (Ef 1,18).
Enfim, o coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, fonte das bem-aventuranças, santuário da ação misteriosa de Deus e do encontro com Ele. Por isso, chegar ao lugar do coração é dom de Deus.


Texto bíblico:  Mt 11,25-30

Na oração:
Talvez o resumo mais belo do que gera a oração do coração seja o que disse S. João Crisóstomo: “O coração absorve o Senhor, e o Senhor absorve o coração, e os dois se fazem uno”.
A intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro do coração, o orante se abre ao coração da realidade.
- Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana?

sábado, 13 de junho de 2020

Seguidor(a) de Jesus: movido(a) a compaixão

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 11º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).


“...vendo as multidões, Jesus compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas” (Mt 9,36)

Depois do percurso quaresmal e pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum” (Ano A), seguindo o evangelista Mateus. Trata-se de uma longa “caminhada contemplativa”, deixando-nos inspirar pelo modo de ser e de agir de Jesus. Estamos na escola do discipulado, deixando-nos modelar pelo Mestre de Nazaré: seu estilo de vida, sua forma de pensar e de viver a relação com o Pai, sua maneira de entender o ser humano, sua relação com os outros, seu modo de conhecer, de crer, de esperar, de amar, sua liberdade diante da religião e das tradições, sua atitude diante das vítimas, dos sofredores e excluídos...
E o evangelho de hoje nos indica que Jesus vive uma presença diferente e inspiradora no contexto social e religioso de seu tempo; seu olhar contemplativo vê o emergente, o alternativo, o novo..., nas mesmas realidades que para outros são uma lixeira de coisas mortas, de amargura e desalento. Ele tem uma sensibilidade para perceber o Reino de Deus onde aparentemente não está, onde outros veem uma massa de pecadores, de excluídos que não conhecem a lei, de impuros, de publicanos a serviço do império romano.
A partir do olhar misericordioso do Pai, Jesus também contempla a vida e vislumbra aquilo que o olhar superficial e acostumado à linguagem da sinagoga não é capaz de descobrir.

Ao deixar-se impactar pela “massa sobrante”, “cansada e abatida”, Jesus sente o despertar de suas entranhas compassivas. Esse é o sentido da verdadeira compaixão: “amor de entranhas”. Elas são o lugar onde estão localizadas as nossas emoções mais íntimas e mais intensas. Constituem o centro de onde brota o amor oblativo, que nos move a sair de nós mesmos para entrar em sintonia com a dor e a miséria do outro.
Quando os evangelhos falam da compaixão de Jesus como estremecimento de suas entranhas, eles ex-pressam algo muito profundo e humano. A compaixão que Jesus sentia era obviamente muito diferente dos sentimentos superficiais ou passageiros de pesar ou de simpatia pela situação do outro. Pelo contrário, ela está relacionada com a palavra hebraica “rahamim”, que se refere ao ventre materno de Deus.
Na verdade, a compaixão é uma emoção tão profunda, central e poderosa em Jesus, que só pode ser descrita como um movimento de contração do “ventre de Deus”. Nele, está oculta toda a ternura e toda a bondade divina. Nele, Deus é pai e mãe, irmão e irmã, filho e filha. Nele, todos os sentimentos, emoções e paixões são uma só coisa no amor divino. Nesse sentido, a compaixão revela o abismo de ternura imensa, inesgotável e insondável de Deus.
Jesus, presença visível da compaixão do Pai, sofre ao ver a distância que havia entre o sofrimento dos enfermos, excluídos, desnutridos e estigmatizados pela sociedade, e a vida que o mesmo Pai queria para todos. Jesus, então, põe em marcha um “movimento compassivo”, constituídos de discípulos e discípulas, que se deixaram seduzir por Ele, para prolongar na vida o mesmo compromisso compassivo do Mestre.
Aqui, não se trata de adesão a um mero programa ou a uma doutrina, mas do convite a um seguimento (“vir comigo”), no calor e intimidade de uma relação pessoal que é dirigida a cada um em particular. Para isso, requer-se uma resposta sem reservas, com a marca da compaixão.
Sem compaixão, todo seguimento de Jesus torna-se vazio, burocrático, rotineiro, normativo...

A compaixão é princípio de humanidade e expressão da identidade do ser humano. Na sua essência, a pessoa pode ser definida como ser compassivo. Sem compaixão, não há humanidade, pois predominam a violência, a dureza de coração, a indiferença, o fechamento fanático da mente e da inteligência.
Enquanto compassivo, o ser humano se sente solidário, terno, próximo... tanto diante da situação dos outros seres humanos, vítimas de exclusão e violência, como diante da natureza ferida, de forma que todo ato de homi-cídio e de eco-cídio se converte em sui-cídio; matar a outra pessoa ou destruir a natureza é matar-se ou destruir-se a si mesmo. Sem compaixão, o ser humano se torna lobo solitário que se guia pela lei da selva. Sem compaixão, não há respeito pela vida dos outros, mas a guerra de todos contra todos.
De fato, a com-paixão não é um sentimento menor de “piedade” para com os que sofrem.
A com-paixão não é passiva, mas sim altamente ativa; é a capacidade de com-partilhar a própria paixão com a paixão do outro. Trata-se de sair de si mesmo e de seu próprio círculo e entrar no universo do outro enquanto outro, para sofrer com ele, para cuidar dele, para alegrar-se com ele e caminhar junto a ele, e para construir uma vida em comunhão e solidariedade.
Quem já foi tocado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si.
É uma experiência que o modifica profundamente, tanto que muitos interpretam como uma “experiência de Deus”, uma experiência de ter conhecido no rosto do pobre o rosto de Cristo.

As comunidades cristãs, ao longo de sua história, se moveram entre duas atitudes: a insensibilidade diante do sofrimento humano e a compaixão para com as vítimas. Hoje, só terá credibilidade o cristianismo se, como o bom Samaritano, deixa-se afetar pela situação do outro e realiza gestos compassivos.
Por isso, às notas tradicionais aplicadas à Igreja: una, santa, católica, apostólica (os tradicionalistas acrescentam uma quinta: “romana”, que não faz parte do Credo), poderíamos acrescentar outras duas: samaritana e compassiva. Não é evangélica uma Igreja só preocupada com ritos, leis, doutrinas, sacrifícios..., desprovida de compaixão. É na vivência compassiva que a Igreja mais se identifica com Aquele que é centro mesmo dela, o Jesus Compassivo. Afinal, somos seguidores de uma pessoa compassiva e não simples adeptos de uma religião ou de uma determinada doutrina.
E que é a Igreja senão a grande comunidade, constituída de pequenas comunidades, seduzidas por esta compaixão ousada de Jesus? A Igreja, para ser Igreja, precisa fundamentar-se na compaixão de Jesus.
Para que serve a Igreja se não mantém aceso o fogo da compaixão de Jesus que aquece os corações e transforma sem cessar as estruturas? Jesus não estabeleceu nenhum sistema de dogmas, normas e ritos. Não é o fundador de uma religião, mas de um movimento vivo, ativado pela compaixão e animado por uma esperança sempre nova, renovadora da vida. Para que servem todos os dogmas, normas e ritos se não despertam a compaixão nem ajudam à vida em sua incessante renovação, diversidade e criatividade?

O Evangelho deste domingo também nos possibilita considerar nossa interioridade como “Israel”; Jesus nos envia às “ovelhas perdidas” de nosso interior: afetos, desejos, sentimentos, paixões, feridas, fracassos, traumas... Re-ordenar a vida interior, evangelizar nossas profundezas para que sejamos presenças compassivas.
A evangelização começa pela própria interioridade. No percurso interior (caminho), levar a luz do Evangelho, a mensagem da boa-nova. Tudo deve ser integrado, acolhido, iluminado... para dar um novo sentido à nossa própria existência. Carregamos muitos “nomes”, muitas presenças que ainda não foram acolhidas.
A finalidade da evangelização das profundezas é colocar Deus em seu devido lugar em nossa vida. É retornar a Ele, vivendo plenamente nossa humanidade e deixando-a vivificar pelo seu Espírito. Trata-se, dessa maneira, de experimentar a salvação em todas as dimensões de nosso ser, de recompor-nos, reajustando-nos às leis fundamentais da vida.
É indispensável “unificar-nos” por dentro e descobrir que podemos re-inventar-nos a cada dia, a cada passo, conduzindo conscientemente nossa vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão.
Quem está “unificado” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo.
A discreta presença do nosso Mestre interior nos move a acolher nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida e nos dividem por dentro. Então, nossa interioridade evangelizada fará emergir a força compassiva que estava reprimida.
Só poderemos ser compassivos na relação com os outros quando formos compassivos com nossa própria história de vida.


                          

Texto bíblico: Mt 9,36-10,8

Na oração:
A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais. Afirmamos ser seguidores(as) do Jesus Compassivo e, no entanto, a realidade deixa transparecer a trágica face da “sem-paixão”; está se tornando “normal” ser intolerante, violento, preconceituoso, racista, misógino,...
- Sua presença, frente ao contexto pandêmico, social, político, religioso..., revela “compaixão profética” ou “massa de manobra” da violência institucionalizada?

terça-feira, 9 de junho de 2020

CORPUS CHRISTI: “Deus se faz Corpo em nossos corpos”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da  Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi).


“Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo. 6,56)

O cristianismo foi muitas vezes compreendido como uma religião do “espírito” contra a “carne”, uma religião do desprezo do corpo e inimiga de tudo o que se refere à dimensão corporal. Se isso é verdade, vai totalmente contra à primeira inspiração de Jesus e da Igreja, que proclamaram e continuam proclamando uma religião do “corpo”, ou seja, do Deus Encarnado na história (na carne) dos homens e mulheres.
É isso que nos revela a festa de “Corpus Christi”;. é a festa que recolhe todas as festas cristãs e as condensa na “carne” do Corpo de Jesus, com sua riqueza de sentidos e significados.
“Tocar a carne de Cristo” implica tocar e acolher nossa própria “carne”, ou seja, o corpo como lugar onde Deus faz sua morada. Assim vamos buscando compreender o que é a Encarnação.
O próprio Deus se fez corpo, no corpo de uma mulher: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
A Encarnação foi o caminho que a Trindade escolheu para se aproximar da humanidade e fazer história conosco. Nosso corpo humano, feito de barro – vaso frágil e quebradiço – tornou-se o lugar privilegiado da chegada e da revelação do amor trinitário.
“Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós?” (1Cor, 6,19)
O nosso corpo é o “templo” santo e santificado, onde Deus Trino faz sua morada.
O corpo é presença e linguagem - tudo nele fala: fala o rosto, falam os olhos, falam os movimentos e as posturas, falam os gestos, acompanhando, reforçando e expressando a intenção íntima.
Celebrar “Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos.

Cresce cada vez mais a consciência de que não “temos um corpo” que nos aprisiona, mas que somos a corporeidade, esse sistema complexo de matéria e energia, fonte de sensações, de expansão, de prazer...
O corpo é a primeira condição de possibilidade de nosso “ser no mundo”, único modo disponível para relacionar-nos com a natureza, com os outros e com o que nos transcende. Em definitiva, único modo de ser, e de sermos humanos.
Somos corpo que vibra e pulsa, que necessita do abraço e do olhar de outros corpos, do calor de outras peles. E ali encontramos Deus, pois Ele quis fazer-se corpo e sangue, para acariciar com nossos braços, para olhar com os nossos olhos, para respirar com os nossos pulmões, para amar com nossos corações, para fazer ardentes nossas entranhas compassivas... Aqui, nas transformações do corpo, Ele se faz presente.
Diante do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus e com o corpo da natureza. Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e, por sua atuação, morte e ressurreição, deixou transparecer que fez do universo seu Corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
Nosso humilde corpo é parte da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a natureza.

O evangelho deste domingo nos revela que a união ativa do(a) discípulo(a) com Jesus expressa-se, agora, mediante a metáfora do “comer” e do “beber”. A adesão a Jesus é adesão de amor.
Jesus quis permanecer entre nós de modo diferente. Não aceitou ser peça de museu, nem fonte de estudos eruditos. Quis permanecer vivo. Escolheu a forma convivial da refeição. É em comunidade que se celebra sua memória. O pão do cotidiano, o vinho da festa; o pão do alimento, o vinho da entrega radical.
O pão e o vinho, comido e bebido, se transformam em nós; o corpo de Cristo e seu sangue nos transformam n’Ele. Pelo pão e vinho, vivemos e nos alegramos. Pelo corpo e sangue de Jesus, Ele vive em nós e nos alegra. Comer do seu corpo e beber do seu sangue significa “ingerir” e fazer nossa, sua mentalidade, suas preferências, suas opções, seu estilo de vida, sua original maneira de viver, de pensar e de atuar...
Alimentar-nos d’Ele é voltar ao mais puro, ao mais simples e mais autêntico de seu Evangelho; interiorizar suas atitudes mais básicas e essenciais; acender em nós o impulso de viver como Ele; despertar nossa consciência de discípulos(as) e seguidores(as) para fazer d’Ele o centro de nossa vida.

Tradicionalmente, a festa de “Corpus Christi” acontece em meio a grandes pompas e suntuosas procissões. Belos tapetes são confeccionados nas ruas para que o cortejo, carregando o “Corpo de Cristo”, passe por ali. Este ano, por causa da situação pandêmica que estamos vivendo, as manifestações externas certamente não vão ocorrer. Talvez seria uma ocasião privilegiada para repensar e re-descobrir o verdadeiro sentido deste dia: fazer a experiência da “procissão interna”, deixando o “Corpo de Cristo” circular por nossos corpos, para que estes fiquem mais “cristificados”.
Todas as nossas demonstrações de veneração e respeito para com as “espécies consagradas do pão”, estão muito bem. Mas ajoelhar-nos diante do Santíssimo e continuar menosprezando ou ignorando o corpo dos

irmãos e irmãs, sobretudo dos mais sofredores e excluídos, é um escárnio.
A última coisa que poderia ter ocorrido a Jesus era pedir que os demais seres humanos se pusessem de joelhos diante d’Ele. Ele, sim, se ajoelhou diante de seus discípulos para lhes lavar os pés; e, ao terminar essa tarefa de escravos, lhes disse: “vós me chamais de Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque sou. Se eu, o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13,13). Essa lição parece que não despertou tanto impacto em nós. É mais cômodo transformar Jesus em “objeto” de adoração” que imitá-lo no serviço e na disponibilidade para com todas as pessoas. É uma ofensa prostrar-se diante do Corpo Eucarístico e distanciar-se de tantos corpos violentados que gritam: “eu quero respirar”.

O problema é que, com frequência, transformamos a Eucaristia num rito cultual, tornando-se uma pesada obrigação que, se pudéssemos, tiraríamos de cima de nossos ombros. Ela acabou se convertendo numa cerimônia rotineira, carente de convicção e compromisso, um ritual que tranquiliza as consciências, mas não modifica as atitudes. E, às vezes, se utiliza como ato de ostentação e pompa solene, que fomenta a adoração e a devoção, mas não transforma nem a Igreja, nem a sociedade.
A Eucaristia foi, para as primeiras comunidades cristãs, o ato mais subversivo imaginável. Os cristãos que a celebravam se sentiam comprometidos a viver o que o sacramento significava, conscientes de que recordavam o que Jesus tinha sido e comprometendo-se a viver como Ele viveu.
É preciso sacudir nossa rotina e mediocridade. Não podemos comungar com Cristo na intimidade de nosso coração sem comungar com os irmãos que sofrem. Não podemos compartilhar o pão eucarístico ignorando a fome de milhões de seres humanos, privados de pão e de justiça. É uma ofensa dar-nos a paz uns aos outros, sendo canais propagadores de ódio, de preconceito e intolerância. É um engano manifestar que estamos em comunhão junto à mesa quando, na realidade, somos mediadores da “cultura da indiferença”.

Corpus Christi é um chamado urgente para que nos prostremos diante do Cristo, humilde e caminhante, que passa continuamente diante de nós; passa vestido de mendigo, desempregado, enfermo, faminto, solitário, abandonado..., que nos convida a viver a Eucaristia, não como milagre nem como mistério, mas como lugar de encontro com os mais necessitados.
Está bem que passem procissões com o Pão Eucarístico por nossas ruas, com toda solenidade e pompa. Mas, que pensará Jesus ao passar diante das casas onde hoje falta o pão? Que pensará Jesus ao passar diante de crianças que tem fome? Que pensará Jesus ao passar diante de homens e mulheres que o acompanham com o estômago vazio, sendo Ele mesmo o “verdadeiro pão”? Quê pensará Jesus ao ser levado nos “andores” e carros alegóricos por pessoas que não conhecem a fome, enquanto à margem aplaudem os famintos?...


Texto bíblico:  Jo 6,51-58

Na oração:  
Nosso corpo é tocado pela encarnação de Jesus. E lembre-se de que Deus conhece nossa estrutura. Ele sabe de que barro somos feitos.
Reze sua humanidade, seu corpo de homem ou mulher. Leve para sua oração os desafios do cotidiano, os imprevistos da vida. Seja humano diante de Deus, deixe seu corpo falar a Deus.
Reze com seu corpo. E agradecido(a) bendiga sempre o Senhor.

sábado, 6 de junho de 2020

TRINDADE SANTA: Deus é o que ama, o amado e o amor

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar (contemplar) o Evangelho da solenidade da Trindade Santa, Deus que é comunidade de amor.


“Deus amou tanto o mundo, que entregou seu Filho único...” (Jo 3,16)

Ao longo do percurso litúrgico, a Igreja quis, em sua sabedoria, reservar um dia especial para que dedicássemos a glorificar a Trindade Santa. E que, nesse dia nos voltássemos a ela, não a partir de nossas misérias, necessidades e petições, mas que dirigíssemos para esse Mistério o olhar de nossa admiração, gratuita e livremente, a fim de contemplar os segredos de sua beleza, bondade, amor..., assim como o fazemos, por exemplo, ao contemplar a vastidão dos céus ou o jogo de cores e luzes de um pôr-do-sol.
A revelação da Trindade nunca poderá ser apreendida ou controlada por nós, pelo nosso rigor verbal nas formulações dogmáticas sobre Deus e seu ser. A Trindade não é uma simples doutrina a ser acolhida, ou uma verdade a ser pensada, mas uma Presença a ser vivida, com espanto e admiração. É encantador contemplá-la, dobrando-nos em reverência, deixando-nos impactar por tão grande e tão profundo mistério, tão belo e inefável dom que a teologia tentou expressar em palavras, mas sentiu-se impotente.
Trata-se de uma experiência contemplativa silenciosa, que ativa em nós uma sensibilidade intensa, capaz de nos despertar para entrar em sintonia com fluxo trinitário que atravessa toda a realidade, nos envolve e faz de nosso coração sua morada.

Se conseguirmos viver isso, com delicadeza, humildade e esvaziamento de nós mesmos, poderemos, então, perceber, que a Trindade de Deus não é uma experiência reservada apenas a uns poucos e privilegiados místicos, nem tampouco um complexo dogma teológico que só os especialistas, através de suas especulações racionais, conseguem se aproximar.
Afirma-se que o dogma da Trindade é o mais importante de nossa fé católica, pois estamos diante do maior Mistério que os olhos não viram, os ouvidos não escutaram, nem a mente conseguiu compreender... Nada do que podemos definir, pensar ou dizer sobre a Trindade é adequado a seu Ser mais íntimo.
O mais urgente neste momento para o cristianismo, não é explicar melhor o dogma da Trindade, e menos ainda, uma nova doutrina sobre Deus Trino. Seria, em definitiva, a busca de um encontro vivo com Deus, a perfeita comunidade. Não se trata de demonstrar a existência da luz, mas de abrir os olhos para ver.
Tudo o que “sabemos” da Trindade pode ser um estorvo para viver sua presença vivificadora em nós. Calar sobre Deus, é sempre mais exato que falar. Dizem os orientais: “Se tua palavra não é melhor que o silêncio, cala-te”. O decisivo é viver o Mistério da Trindade a partir da adoração e da partilha fraterna.
Grandes teólogos fizeram profundos estudos sobre a Trindade, tratando de pensar conceitualmente o mistério de Deus. No entanto, eles mesmos dizem que, para “saber” de Deus, o importante não é “refletir” muito, mas “saber” algo do Amor.
O dogma da Trindade, portanto, nos liberta do “Deus poder” e nos lança nos braços do Deus Amor.

O mistério de Deus Uno e Trino é fruto da experiência de revelação progressiva na história da Salvação, culminando na revelação que Jesus nos fez. “Deus é UM, mas não está jamais só”. Deus não é um ser isolado, distante da Criação, solitário. É um Deus comunitário, família, sociedade, fraternidade, etc... Por isso, o auge de toda a revelação bíblica é esta: “Deus é Amor”, ou seja, Deus não é uma realidade fria e impessoal, um ser triste, solitário e narcisista. Não podemos imaginá-lo como poder impenetrável, fechado em si mesmo. Em seu ser mais íntimo, Deus é amor, vida compartilhada, amizade prazerosa, diálogo, entrega mútua, abraço, comunhão de pessoas. O amor trinitário de Deus é amor que se expande e se faz presente em todas as criaturas. E o Amor nunca é solidão, isolamento, mas comunhão, proximidade, diálogo, aliança...
O Deus revelado por Jesus é Amor e aproximar-nos do Deus Amor é descobrir a Trindade.
Em Deus o Amor não é uma qualidade como em nós, mas sua essência. Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. O movimento que parte do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito é um movimento de Amor sem fim. Amor expansivo que envolve o mundo todo, segundo o relato do evangelho deste domingo.

Nesse sentido, “saborear o mistério da Trindade” nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar do nosso mundo, com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
Como “contemplativos na ação”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é.  É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que estão surgindo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e gerador de misericórdia; um olhar gratuito e desinteressado, “janela da alma”, que nos expande numa atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.

Precisamos retornar às palavras de Jesus, que ora ao Pai por seus discípulos:
              “Não te peço que os tires do mundo, mas que os defendas do maligno” (Jo 17,15).
Ser cristão é ser presença diferenciada e inspiradora no mundo. O mundo da globalização é a realidade que agora nos cabe transformar. O Evangelho não nos ensina doutrinas, mas um modo original de estar no mundo, à maneira de Jesus. Nossa vida deve ser um espelho que, em todo momento, deixa transparecer o mistério da Trindade.
Somos desafiados a “viver uma vida no mundo e no coração da humanidade” (P. Kolvenbach).
Se o ser humano é o caminho para Deus, o ponto de encontro do ser humano com Deus está no mundo. Este princípio cristão significa que o encontro do ser humano com Deus se dá no campo da cultura, das relações, do diálogo inter-religioso... enfim, uma espiritualidade enraizada na realidade do mundo. Um mundo configurado pela ciência e pela tecnologia: este é o cenário em que o cristão está chamado a encontrar-se com Deus, re-criando um novo tipo de humanismo de acordo com o nosso tempo.
Num mundo em que a competência se degenera em competitividade sem limites, em que o individualismo
e a falta de solidariedade criam novas fronteiras e exclusões, em que a cultura da indiferença, do preconceito e da suspeita é fonte das mais variadas formas de violência..., é preciso recuperar o discurso e a prática do “ser-para-os-outros”, o saber e a autoridade como serviço, solidariedade, compaixão,  partilha, perdão, gratuidade, compromisso, dom de si mesmo, amor...

O surpreendente é que nós fomos criados à imagem do Deus Trindade; todos carregamos em nosso interior a “faísca amorosa” da Trindade Santa. É fácil perceber isso: sempre que sentimos necessidade de amar e ser amados, sempre que sabemos acolher e buscamos ser acolhidos, quando desfrutamos compartilhando uma amizade que nos faz crescer, quando sabemos doar e receber vida, estamos saboreando o “amor trinitário” de Deus. Esse amor que brota em nós provém d’Ele.
Nesse sentido, o melhor caminho para nos aproximar do mistério do Deus Trindade não são os tratados teológicos que falam dele, mas as experiências amorosas que compartilhamos na vida. Só encontramos o Deus Trino com o coração.  “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.



Texto bíblico:  Jo 3,16-18

Na oração:
Quando nos abrimos à comunhão com a Trindade, Ela entra em comunhão conosco na forma sutil de um perfume. Não força, não invade, mas cria um ambiente agradável, perfumado, que nos eleva e nos suscita alegria interior. Tal como o perfume, a Trindade derrama sua Graça sobre toda a Criação e a humanidade inteira. Quê há de mais suave, reconfortante e realizador do que sentir a Trindade a partir do coração?
- A oração é o momento privilegiado para abrir-se ao dinamismo do amor trinitário; deixe-se empapar por esta presença perfumada.