“Eu te darei
as chaves do Reino dos céus: tudo o que tu ligares na terra...” (Mt. 16,19)
Neste domingo
celebramos a festa de duas grandes figuras-chave na Igreja: Pedro e Paulo; fortes personalidades
que fizeram uma impactante experiência de encontro com o peregrino da Galileia.
E foram profundamente transformados, a ponto de terem seus nomes mudados pelo
próprio Jesus Cristo.
Diante das
maravilhadas que serão proclamadas de um e de outro, podemos apresentar uma
pergunta que pode nos parecer estranha. “Quê
fica de Simão em Pedro?” , “Quê fica de Saulo em Paulo?”.
Porque Pedro,
primeiro foi Simão; Paulo foi Saulo. E Jesus chamou Simão e chamou Saulo. Em
seguida, mudou o nome deles para Pedro e Paulo.
Simão, o homem
do lago e da barca de pesca; Saulo, o zeloso fariseu, fiel seguidor da lei e
perseguidor da Igreja. Pedro, o homem da Igreja, a rocha sobre a qual Jesus
assenta sua nova comunidade. E todos nós o recordamos como o homem das
“chaves”.
Paulo, o
apóstolo dos gentios, fundador de novas comunidades cristãs para além do
território judaico.
Mas, retornemos às
perguntas: o que permaneceu de Simão, aquele do lago, no Pedro da
Igreja? Desapareceu o verdadeiro Simão e ficou somente o Pedro? Ou teríamos de
dizer que há nele uma mescla de Simão e de Pedro? O que permaneceu de Saulo,
fariseu e filho de fariseu, no Paulo que alargou as fronteiras da primitiva
Igreja?
O Pedro,
rocha firma, não deixa de ser o Simão do lago. Apesar de Jesus ter mudado seu
nome, no entanto, em diferentes ocasiões aflora o Simão que não consegue
entender Jesus e quer desviar o mestre de seus planos e projetos. Continua vivo
o Simão que busca o triunfalismo messiânico de Jesus e revela resistência em
seguir Aquele que vai ser crucificado. Continua sendo o Simão que compete com
os outros sobre a primazia no novo Reino, e crê que é ele quem vai dar a vida
por Jesus. Continua sendo o Simão covarde e com medo que nega Jesus na noite da
Paixão.
O mesmo
poderíamos dizer de Saulo. Muitos traços seus continuam presentes na nova
identidade: Paulo.
No
evangelho de hoje, Jesus deixa transparecer sua identidade através da confissão de Pedro: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”;
e, ao mesmo tempo, Jesus des-vela a identidade de Pedro: “Tu és “petros” (pedregulho) e sobre esta “petra”(rocha) edificarei minha igreja”. Pedro se torna rocha firme (“petra”)
quando se apoia na identidade de Jesus (a verdadeira Rocha).
Pedro,
que era “petros” (pedra de tropeço
no caminho, frágil, limitado...), foi sendo transformado, através da
identificação com Jesus, em “petra”,
rocha firme da primitiva comunidade cristã.
Dessa
forma, o Simão que era “petros”/pedra lentamente vai fazendo a travessia para
“Petra”/rocha firme, porque o mestre des-velou a nobreza que estava escondida
no coração dele, ou seja, sua verdadeira identidade sobre a qual o mesmo Jesus
iria edificar sua igreja.
Diante dos dois
personagens, Pedro e Paulo, vamos intuindo que a questão não é trocar
simplesmente de nome. A Graça não destrói a natureza humana, mas a plenifica e
a torna expansiva. Em Pedro, a graça não destrói o Simão, em Paulo não destrói
o Saulo. Eles procurarão conservar a fidelidade a Jesus e à comunidade dos seus
seguidores, mas cada um imprimirá sua própria personalidade.
A graça
do seguimento de Jesus não apaga nossa condição humana, nossa herança genética,
nossa personalidade, nossa psicologia, nossa sensibilidade e nosso mundo
afetivo; carregamos conosco nossa cultura e nossa própria história humana.
O desafio
é este: que permanece de nossa herança biológica e cultural na experiência do
seguimento de Jesus? É possível que em todos nós, em “Pedro”, permaneça latente
muito de “Simão”; em “Paulo”, permaneça muito de “Saulo”. E como distinguir o
Simão de Pedro que todos carregamos dentro de nós? Não é fácil a Pedro
desprender-se do Simão de antes, nem a Paulo desprender-se do Saulo de antes.
Só a
identificação com Jesus possibilita fazer a travessia para o “novo nome”,
integrando e pacificando
as
“marcas humanas” do antigo nome.
O Evangelho da festa de hoje nos
ajuda a ler nossa vida. Ali afirma-se nossa identidade; e a
identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido, consistente... no seu
interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos
(crises, fracassos, fragilidades, incoerências...).
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade
que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da
própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais
profundas.
A própria interioridade é a
rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para
encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os
inevitáveis golpes da luta pela vida. Com confiança em si e na rocha do próprio
ser, todas as forças vitais
se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a
aquilo que originalmente é chamada a ser.
Para isso temos em nossas mãos as
chaves da vida. O que fazemos com elas? Podemos abrir ou fechar, ligar
ou desligar, atar ou desatar.... Ter a chave da vida como Pedro e Paulo ou como
Simão e Saulo: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da
missão... Dar amplitude à vida ou atrofiá-la. Atar ou desatar os nós da
vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se: abrir-se à vida, ao
novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou retrair-se ao próprio ego.
Ter identidade é assentar nossa vida sobre
a rocha interior (Pedro) que nos sustenta e nos faz sair da prisão do ego
(Simão). Nossa identidade é sempre dinâmica, histórica, fecunda, aventureira...
Nossa vida é uma contínua travessia do Simão/Saulo para Pedro/Paulo, porque ela
está centrada n’Aquele que tudo sustenta. Nossa identidade profunda está
a serviço de quem? – do próprio “ego” como Simão ou Saulo, ou do Reino, como
Pedro e Paulo.
Texto
bíblico: Mt. 16,13-19
Na oração:
Muitos caminhos conduzem à própria
interioridade.
A oração é a chave de acesso; ela é
esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir
as portas do coração e janelas da mente àqueles com quem me encontro.
Onde a Graça de Deus tem liberdade de
atuar, ali afloram o Pedro e o Paulo que tenho atrofiados dentro de mim.
- O que prevalece nas minhas relações
cotidianas: Simão/Saulo ou Pedro/Paulo?
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