quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

EXÍLIO, uma “Família Clandestina”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Festa litúrgica da Sagrada Família.



“Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13)

Hoje, fala-se muito da crise da instituição familiar. Mas a história nos ensina que nos tempos difíceis os vínculos familiares se estreitam mais.
Concretamente, no contexto da grave crise social-política-econômica que estamos vivendo, a família corre o risco de ser uma escola do preconceito, da intolerância, da indiferença diante do diferente e daquele que pede abrigo. Mas, em sentido contrário, ela pode ser o lugar no qual se faz memória que temos um Pai comum, e que o mundo não se limita às paredes da própria casa.
Por isso, não podemos celebrar a festa da Família de Nazaré sem escutar o desafio de nossa fé. Nem toda família se deixa inspirar pela Família de Nazaré. Há famílias abertas ao serviço da sociedade e famílias egoístas, fechadas sobre si mesmas. Há Famílias autoritárias e há famílias onde se aprende a dialogar. Há famílias que educam no egoísmo e famílias que ensinam a solidariedade.
Serão nossos lares um lugar onde as novas gerações poderão escutar o chamado do Evangelho à fraternidade universal, à defesa dos abandonados e à busca de uma sociedade mais justa, ou se converterão na escola mais eficaz da indiferença, da passividade egoísta e da insensibilidade frente os problemas sociais?

Só podemos celebrar a festa da “Sagrada Família” quando descobrimos que as famílias mais sagradas, aquelas que devemos respeitar, proteger e potenciar, são aquelas que não tem casa, nem pátria, nem meios de vida..., e no entanto, continuam caminhando.
Já desde pequeno Jesus se solidariza com os pobres, os últimos, a “massa sobrante”...; Ele fez a experiência da exclusão. Ele é um Deus frágil que arma tenda nos acampamentos dos exilados, nas favelas e cortiços da miséria total; é um Deus que acompanha e compartilha a sorte dos fugitivos, expulsos das aldeias, mandados para fora da segurança e da tranqüilidade dos muros da cidade.
Para Ele permanecem cerradas as portas de ferro dos palácios.
Maria compartilha a sorte do menino, vive para ele e com ele assume os riscos da fuga e exílio. Ela cuida, protege, educa o menino entre perseguições e exílio. Enquanto existirem mães que protegem e cuidam das crianças, como Maria, haverá Natal.
José, em meio à perseguição, põe-se a serviço do Deus fugitivo, expulso, exilado do mundo. Como verdadeiro esposo e pai, ameaçado e fugitivo, percorre, com Maria e o menino, os caminhos do desterro.
Enquanto existirem pais que, como José, se arriscam pela mulher e pelos filhos, que são sua riqueza, o dom de Deus, enquanto estiverem dispostos a sofrer por seus filhos e pelas mães de seus filhos, no exílio ou na pobreza, haverá Natal.
É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos e nos fazermos mais “humanos” e “solidários”. Ali temos de buscá-Lo e encontrá-Lo, nós que celebramos a festa da Sagrada Família.

Cada vez mais, multidões em todos os continentes vivem o exílio na própria carne. Cada vez mais, famílias inteiras são expulsas de seus países pela fome, falta de trabalho, violência, guerra e insegurança. Cruzam mares, montanhas e desertos para bater à porta dos países desenvolvidos, onde enfrentam o rosto cruel da falta de solidariedade e do preconceito. Tais famílias vivem a dura experiência de um sentimento permanente de serem inadequadas, de não pertencer a nada nem a ninguém. Um nó na garganta e uma tristeza no coração se fazem presentes, quando elas evocam saudosamente a antiga terra, de onde foram desenraizadas.
Os cristãos fazem memória de uma família que viveu a dura realidade do exílio no Egito; mas, parece que essa memória não desperta espírito de solidariedade e acolhida em seus corações, pois os países ditos “cristãos” são aqueles que se revelam mais frios, intransigentes e desumanos quando se trata de acolher pessoas que, por diversos motivos, foram arrancadas de suas terras. Como exilados, Jesus e seus pais, fazem parte da corrente ininterrupta das vítimas do poder, que são obrigados a percorrer lugares inóspitos, desertos, cidades estrangeiras, gente hostil, durante o percurso dos séculos. Jesus e seus pais são irmãos de todos os refugiados políticos dos países repressivos.

Em chave de interioridade, nosso “Egito” não é outro que a identificação com o “ego”, que nos reduz à pior das escravidões.  “Egito”, em hebraico significa “lugar estreito”; vida estreita, sonhos estreitos, famílias estreitas... A “Terra Prometida” é o despertar da consciência, nossa verdadeira identidade, o território esquecido e, com frequência, oculto detrás de tantos “mapas desumanos” que a nossa mente fabrica.
É preciso transitar pelos territórios interiores com liberdade, integrando e pacificando vivências, fatos, encontros e desencontros.
Ao sair desse “egito interior”, iremos nos encontrando com todos aqueles que são obrigados a se deslocar. Também com o próprio Jesus, cuja identidade compartilhamos, porque não pode haver senão um único Território, o da humanidade que transgride todas as fronteiras desumanizadoras.
Só quem transita com liberdade pelos lugares interiores será capaz de ir ao encontro do diferente, de acolhê-lo e de entrar em sintonia com ele. Transitar pela interioridade alarga a mente, expande o coração e ativa uma nova sensibilidade solidária.

Esta é a realidade: nós pensamos, sentimos, amamos... a partir de onde estão nossos pés; quando pisamos lugares atrofiados (fechados, guetos, condomínios...), nossos pensamentos e sentimentos ficam atrofiados.
Vivemos um paradoxo da “Pós-modernidade”: enquanto a tecnologia nos permite aumentar nossos conhecimentos de lugares e pessoas tão distantes de nós, ao mesmo tempo cresce o “medo do outro”, daquele que é “diferente”, daquele que não pertence à nossa raça, religião, cultura, encerrando-nos em pequenos mundos. “À medida que a sociedade se faz cada vez mais globalizada, nos faz a todos vizinhos; mas não nos faz irmãos” (Bento XVI).
Não é comum prestar atenção àqueles que estão sem “lugar”, sobretudo aqueles que pensam e sentem de maneira diferente; tornou-se “normal” perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso é vivido de maneira tão zelosa que nem se vê aqueles que estão para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com aqueles que foram arrancados de seus lugares. O próprio lugar se torna uma couraça e o espírito de hospitalidade some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.

A festa da Sagrada Família pede muita sabedoria, lucidez e discernimento; ela pede de nós cristãos “uma espiritualidade da acolhida”, para estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças religiosas, visões políticas..., para romper fronteiras a partir da não-violência, para criar redes que inter-atuam.
Precisamos sair de nossos pequenos e atrofiados “egitos” para criar vínculos com tantos grupos, organizações sociais, movimentos... que buscam outra cultura, a cultura da solidariedade, da hospitalidade, do encontro comprometido.
Precisamos nos levantar cotidianamente de nossos “lugares”: há sempre pessoas “sem-lugares” que nos esperam, espaços excluídos a serem visitados, ambientes atrofiados a serem curados; é preciso lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos para ir ao encontro dos “novos luga-res” dos excluídos e expulsos de suas terras...


Texto bíblico:  Mt 2,13-15.19-23

Na oração:
Contemplar o rosto do Menino clandestino é perigoso: subverte nossas opções, nosso modo de viver, nossos valores... e nos compromete com o sonho de Deus.
- Contemplar, com os olhos e o coração de Maria e José, a entrada na terra que fora o lugar da escravidão dos seus antepassados. Terão recordado a história do seu sofrimento no cativeiro e da sua libertação, realizada pelo poder de Deus.
- É o momento de perguntar e de admirar, de deixar-se comover e converter, de agradecer e de calar.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

A “Excitante” Noite do Natal

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade do Natal.
Manifestamos a todos os votos de um inspirado Natal, com a marca da "interioridade", onde o Menino Deus sempre encontra espaço mais amplo para manifestar sua Luz irradiante.


“Naquela região, havia uns pastores que passavam a noite nos campos...; a glória do Senhor os envolveu em luz” (Lc 2,8-9)

O evento do Nascimento de Jesus, o anúncio deste acontecimento e a resposta a este anúncio acontecem na noite, na pobreza, na pequenez. Alguém, na noite profunda, nasce para nós: agitam-se os acampamentos noturnos daqueles que aguardam o dia.
Na noite irrompe a luz, no silêncio ressoam o canto e a festa, na gruta surge a Vida.
A noite é justamente o lugar do amor, o ventre do mistério, o tempo da concepção e do “natal”, o momento do encontro, do espanto e da acolhida.
A luz daquela noite calmamente ilumina e dá sentido a tantos pensamentos e a tantas expectativas. A noite permanece, mas torna-se finalmente compreensível, fascinante, eloquente...
Contemplando a noite do Natal, o coração se alarga até o assombro, os braços se abrem para a acolhida, os olhos se aquecem ao reconhecer Àquele que, como criança, veio ao nosso encontro. Nas sombras das cidades Ele se faz encontrar, na solidão revela sua presença, na fragilidade mostra seu rosto.
O Menino de Belém nos é doado simplesmente como Luz na noite, como canto de louvor que interrompe o silêncio, como paz que nasce da experiência de sentir-se amado.

Na noite, o Senhor da História se faz história, o divino se faz humano, o Silêncio torna-se Palavra e o Verbo se faz Criança. O dia não chega de improviso; também não é fácil reconhecer o instante preciso em que isso começa, assim como não cresce improvisamente a vida no ventre de uma mulher.
Naquela noite, a atitude de velar mantém os pastores em estado de atenção: vigilantes, eles conservam seus olhos abertos e oferecem mutuamente calor e companhia. Em um primeiro momento, ao receber tanta luz de uma vez só, ela os cega e o medo se apodera deles. Mas, depois do encontro com a Luz e retornando aos seus lugares, levam consigo a frágil e exultante tranquilidade do Menino. Assim, aquele encontro se transforma num festivo canto de louvor pela experiência vivida.
Eles agora são criaturas novas, não são mais como antes. O anúncio ouvido na noite deu-lhes a conhecer a fidelidade da “Palavra que se fez carne”, manifestada no Menino de Belém.
A história da humanidade ganha sentido e orientação somente à luz deste evento natalício; Luz que vem do alto e ressoa dentro, no silêncio e na noite do caminho, como um canto de alegria e um anúncio de paz.
Sobre o Menino se inclina sua Mãe, em silêncio: o Amor não precisa de palavras para ser entendido.
Na noite Ele vem; no vento pronuncia o nosso nome; na cidade dos homens se deixa acolher; na solidão revela sua presença; na fragilidade se faz encontrar...

Natal é a irrupção da Luz. Com seu nascimento, Jesus dissipa as sombras do mundo, enche a Noite Santa de um fulgor celestial e difunde sobre o rosto dos homens e mulheres o esplendor da Beleza de Deus Pai.
Em torno ao Menino Jesus, movem-se personagens obscuros e outros tocados pela luz. Aqueles que não são capazes de vê-lo serão também aqueles que o rejeitarão mais tarde.
A luz, de fato, está fora de nós, é exterior, impalpável, intocável; mas também está em nós e sobre nós, nos ilumina, individualiza, é vida e calor. Sempre que temos a possibilidade de “mais luz” em nossa vida, também rondam os medos e, muitas vezes, toda transformação se encontra bloqueada pelo medo.
Mas, uma vez que a Luz do Menino nos toca, iluminando nossas dimensões sombrias, já não podemos retornar aos nossos lugares do mesmo modo: passamos a carregar em nosso interior uma Presença que nos plenifica. Tudo fica transformado pela irradiação da Luz que emerge a partir de dentro, iluminando todos os lugares por onde passamos e revelando a dignidade e a beleza de tudo e de todos. Diante de tal Luz, nós nos tornamos “lugar iluminado”; e a vida inteira passa a ser presépio, gruta, espaço sem limites onde acolher os outros.

A ação de Deus provoca um “deslocamento” geográfico, social, religioso..., e todo aquele que pretende encontrar-se com Jesus terá de dar meia-volta e peregrinar em direção às “margens”.
O Senhor vem!..., em meio à noite de nossa existência. Na sua direção põe-se a caminho os simples, os pobres, os excluídos, os últimos: somente eles têm olhos capazes de reconhecer... a Luz; a Ele vão todos os que, em seu coração, lançam-se a uma busca aberta: somente quem deseja a Luz pode ver o brilho nos olhos do Menino de Belém! Na presença dele tudo é iluminado, tudo é aceito, tudo encontra seu lugar, nada é recusado.
Natal, noite dos “excessos”; a noite de Belém teve muito “disso”, ou seja, de exceder-se e transbordar, de ultrapassar todos os limites, todas as medidas, todo o conveniente, todo o adequado: escuridão inundada de
resplendor, silêncio explodindo em hinos, pastores correndo em busca do Pastor, uma gruta transformada em templo aberto... Em palavras de Efrém de Nísive (séc. IV): o Grande se fazia pequeno, o Silencioso se tornava Palavra, o Senhor se transformou em servo, o Sentinela permanecia adormecido sobre um presépio.

Para transitar na noite de nosso tempo precisamos buscar na Gruta de Belém a Luz que a ilumine e nos indique a direção e o sentido de nossa existência.
A noite pede pessoas marcadas pela experiência natalina, capazes de ver a presença do Menino Deus no meio das realidades simples e cotidianas, no profundo do coração de cada ser humano, de cada realidade vivente, de cada palmo de nossa terra, no mistério insondável do universo grávido de graça.
Precisamos cultivar não só olhos que vejam a realidade, senão que sejam capazes de contemplar, no meio da noite, a presença da Luz: uma luz que brota das profundezas da realidade, do profundo do ser onde o Deus, fonte de vida, sustenta tudo; uma luz que nos faz descobrir nosso ser essencial: filhos e filhas amados(as) e irmanados(as) com todos e com tudo.
Certamente, nosso mundo está envolvido em muitas trevas (intolerâncias, violências, preconceitos...) mas, no meio delas, permanece acesa uma luz de humanismo e de esperança, porque só Deus pode fazer-se tão humano e suscitar em nós sentimentos de bondade e de fraternidade. S. João, no prólogo do seu evangelho afirma que as trevas não conseguiram apagar a Luz; é a luz que brilha em meio às trevas. Também no primeiro Natal a luz brilhou no meio das trevas da prepotência e opressão do Império Romano, no meio da hipocrisia dos sacerdotes e fariseus, no meio da crueldade do rei Herodes, no meio da indiferença dos vizinhos que não lhe deram pousada e não o receberam. Os pastores, sim, captaram esta Luz.
Natal é Jesus no meio de nós, Deus-conosco, Deus Menino que nos acompanha sempre.
Não nos deixemos roubar esta esperança porque a Luz do Natal antecipa a luz da Páscoa da Ressurreição e vence as trevas de nosso mundo. Mesmo que seja uma luz tão pequena...
Texto bíblico:  Lc 2,1-14

Na oração:
Nesta noite, a mais clara, redescobrir que o sentido de nossa vida não é outro que ser luz e levar luz a tantos ambientes envoltos nas trevas da violência e da morte, ativando a luz presente no interior de cada pessoa; redescobrir que o sentido de nossa existência está em esvaziarmos de nós mesmos para que o amor chegue puro e limpo a todos; reencontrar o sentido de nossa vida, ou seja, servindo, para que todos cheguem à Gruta de Belém, o único lugar onde não há excluídos.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Revisão de Vida Comunitária 2019

Na quinta-feira, dia 05 de dezembro de 2019, a CVX Amar e Servir realizou sua Revisão de Vida anual, momento ímpar de reflexão, conscientização, partilha e decisão de uma Comunidade de Vida Cristã.

REVISÃO DE VIDA COMUNITÁRIA 2019 – CVX AMAR E SERVIR

INTRODUÇÃO – Músicas de Taizé

Imaginando a Cristo nosso Senhor diante de mim e pregado na cruz, fazer um colóquio: como de Criador veio a fazer-se homem, e de vida eterna a morte temporal, e assim a morrer por meus pecados. E, assim em colóquio, interrogar-me a mim mesmo: o que tenho feito por Cristo, o que faço por Cristo, o que devo fazer por Cristo [...](EE 53)
O colóquio faz-se, propriamente, falando, assim como um amigo fala a outro [...], ora pedindo alguma graça, ora confessando-se culpado por algum mal feito, ora comunicando as suas coisas e querendo conselho nelas. [...] (EE 54)

Em nível de ORAÇÃO
- Como anda a minha vida de oração pessoal?
- Como anda a oração comunitária?

Em nível APOSTÓLICO
- Como está para mim a questão da missão?

Evangelho de São Lucas 13, 6-9
6Disse-lhes, também, a seguinte parábola: “Um homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e foi lá procurar frutos, mas não os encontrou.  7Disse ao encarregado da vinha: ‘Há três anos que venho procurar fruto nesta figueira e não o encontro.  Corta-a! Para que está ela a ocupar a terra?’ 8Mas ele respondeu: ‘Senhor, deixa-a mais este ano, para que eu possa escavar a terra em volta e deitar-lhe estrume. 9Se ser frutos na próxima estação, ficará; senão, poderás cortá-la!’”

Em nível PESSOAL
- Como tem sido a minha participação no grupo?
- O que me motiva, atualmente, no grupo?

Em nível GRUPAL
- Temos crescido como comunidade?
- Qual o eixo da nossa comunidade hoje, o que prevalece como fator de unidade do grupo?
- Em que precisamos crescer mais?




José, o Homem do Advento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo de Advento.


“Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado e aceitou sua esposa”

Estamos já no centro do mistério da Encarnação. Os relatos “da infância de Jesus” (Mt e Lc), não são crônicas de acontecimentos, não são “história” no sentido que hoje damos à palavra. São “teologia narrativa”.
O relato do evangelho deste domingo nos revela que Deus dirige a história. Para isso se serve de pessoas eleitas. Cada vez que há um acontecimento importante na história da salvação, ali aparece um homem ou uma mulher como mediadores da obra de Deus ou transmissores de sua vontade.
O acontecimento mais importante da história da salvação é o Nascimento do Filho de Deus. Para “fazer-se homem”, Deus precisava de uma família. O nome de José está profundamente ligado ao mistério de Jesus. E se o anjo é um sinal de que Deus se faz presente na vida de uma pessoa para comunicar-lhe algum de seus desígnios, Deus mesmo se fez presente a José, por meio de seu anjo. Segundo o evangelho de Mateus, José é a pessoa a quem primeiro lhe é revelado o mistério que sua esposa guardava em seu ventre.

Quantas coisas acontecem envolvidas pela noite e pelo mistério!
Enquanto o agricultor dorme, na noite rompe-se a casca e cresce a semente lançada na escura terra, acompanhada de renovadas expectativas e esperança.
Tudo começa na noite: na noite dos pensamentos, dos corações, das intenções, das esperas, dos encontros.
Eis o mistério, eis a noite! A noite, a nossa noite, é habitada por Aquele que vem.
Até na noite da desolação, na solidão, no deserto, é possível encontrá-Lo.
Contemplando a noite de José, nosso coração se alarga até o assombro, nossos braços se abrem para a acolhida, nossos olhos se aquecem ao reconhecer Àquele que vem e na brisa pronuncia o nosso nome. Nas sombras da vida Ele se faz encontrar, na solidão revela sua presença, na fragilidade mostra seu rosto.

O mistério da Encarnação de Jesus, sem dúvida, significou também “a paixão vivida por José, esposo de Maria”. Momentos de angústia, de dúvida; momentos de obscuridade em seu coração; momentos de pura fé na palavra de Deus.
José, assim como Maria, vai além da lógica e das condições humanas; também ele termina se apresentando como “o servo do Senhor”, dizendo em seu coração: “faça-se em mim segundo tua palavra”.
Como a Maria, Deus também diz a José: “Não tenhas medo de receber Maria como tua esposa”.
Há homens que são importantes não pelo que fazem, mas pelo que são no coração. Há homens que são grandes não por suas grandes ideias, mas por acolher a lógica de Deus, que quebra toda lógica humana. José foi o homem humilde de um povoado como carpinteiro; mas José foi grande por ser o “homem da fé”.
É preciso recuperar o sentido da surpresa, que é a atmosfera própria do tempo do Advento; é preciso recordar que a visão bíblica da história, dirige-se para uma meta surpreendente. Para isso, faz-se necessário despertar novamente a capacidade de maravilhar-se.
José era um pobre noivo, pertencente a uma nação oprimida e a uma categoria social esquecida, mas conservava límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber a maravilha que estava acontecendo na sua vida e na vida de Maria. Nele, devemos recobrar o sentido da expectativa, da novidade, da coragem.

Deus é encontrado, não na estrada suntuosa do domínio e do triunfo, mas na estrada do desapego, da doação, do despojamento e da fragilidade. Para entrar em sintonia com sua Vontade e deixar-se conduzir pelo seu Anjo, não é preciso estar coberto de títulos honoríficos, nem envolto pelo manto de obras realiza-das; é preciso, isto sim, ser como José, sem títulos e sem riquezas, mas justo e humano, como o seu Filho que “não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida”.
Como costuma acontecer com todas aquelas pessoas às quais lhes são confiadas missões importantes, José é um homem discreto. Sua presença é silenciosa. Na relação de José com Jesus, poderíamos aplicar a ele estas palavras: “é preciso que ele (Jesus) cresça e que eu diminua” (Jo 3,30).
Não podemos entender a presença de José em função de si mesmo, mas a serviço de Jesus e de seu mistério. Saber estar em função de outro não é fácil, mas é um dos modos mais belos de amar. O silêncio de José não tem nada de ingênuo. É o silêncio daquele que escuta atentamente para assim poder servir melhor.

José, “homem justo”: para alguns o têrmo é sinônimo de “delicadeza ou piedade”, para outros signi-fica “respeito, reverência” em relação ao mistério de Maria; para outros ainda, é um título jurídico, ou seja, “obediente à lei”.  Sabemos que o “Justo” por excelência é Deus, fiel à Aliança e que, com constância, continua seu projeto salvífico, apesar das rupturas provocadas pela infidelidade humana.
O “homem justo” é aquele que, como Abraão, na fé acolhe o plano de Deus e com Ele colabora. José é “justo” porque adere ao misterioso desígnio de Deus, é justo porque confia em Deus, arrisca com Deus, ainda que os contornos do Seu Plano permaneçam obscuros e, em certos aspectos, incompreensíveis.
José e “justo” porque se ajusta ao modo de agir surpreendente de Deus. É “justo” porque se abre para o infinito, inspirando-se em Deus mesmo, o Justo; à justiça exterior, farisaica, ele opõe a justiça da fé e do coração. Portanto, o termo justo quer indicar a abertura e a adesão à ação suprema de Deus.

Nesse sentido, José se coloca na linha das grandes figuras da história da salvação. Sua vida é um exemplo de silenciosa dedicação ao Reino.
Este José é hoje o homem do Advento, e nos alegramos que ele tenha se mantido firme e mudado seus critérios para estar a serviço da Vida. Também nós somos “josés”, neste domingo final de Advento. Também nós, algumas vezes, nos encontramos em momentos de obscuridade, marcados por dúvidas e crises, pensando em fugir, abandonar a missão. É normal que, ao adentrar-nos em nosso próprio mistério, nos encontremos com nossos medos e preocupações, nossas feridas e tristezas, nossa mediocridade e incoerência.
Mas Deus quer atuar em nós e através de nós; Ele sempre conta conosco para uma nobre missão.
Não devemos nos inquietar, mas permanecer no silêncio. A presença amistosa, que está no mais íntimo de nós, irá nos pacificando, libertando e sanando. “Esta experiência do coração é a única com a qual se pode compreender a mensagem de fé do Natal: Deus se fez homem” (Karl Rahner).
Este mistério último da vida é um mistério de bondade, de perdão e salvação, que está em nós: dentro de todos e cada um de nós. Se o acolhemos em silêncio, conheceremos a alegria do Natal.
Na vida, há muitos momentos nos quais só cabe o silêncio, em vez do alvoroço, só cabe a serenidade, em vez da precipitação; cabe a nós renunciar aos nossos próprios critérios e esperar que Deus fale.
Isso pede de nós confiança total, muitas vezes sem compreender nem conhecer o “por quê e o como”; o decisivo é “deixar-nos fazer” por Deus, deixar-nos conduzir por Aquele que, a partir do mais profundo de nós mesmos, abre um horizonte de sentido e de surpresas. Aprendamos de José a abrir nosso interior e deixar-nos surpreender por Deus.

Texto bíblico: Mt 1,18-24

Na oração: 
Durante a oração devemos nos deter particularmente na figura de José. Ele teve seus pensamentos próprios, suas preocupações e suas provações, suas perguntas dilacerantes e suas dúvi-das angustiantes.
Mas Deus nunca deixa de atuar no meio das nossas noites, dúvidas, provações. Ele conhece nossos pensamentos e temores. E, no momento certo, nos liberta dos  nossos medos e nos dá a conhecer sua Vontade.
- Recordar momentos de dúvidas, incertezas, desolações..., mas que lhe ajudaram a amadurecer na fé e na adesão ao projeto de Deus.

domingo, 15 de dezembro de 2019

ADVENTO: cristificar os sentidos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo de Advento.


“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4)

O evangelho de Mateus nos apresenta a chamada “prova messiânica”. João Batista, a partir do cárcere, envia emissários para perguntar a Jesus se é Ele o esperado ou se devem esperar um outro. Jesus não responde com alguns argumentos teológicos, nem com citações bíblicas, ou com alguns dogmas e doutrinas, mas remete os discípulos de João aos puros fatos, que podem ser “vistos e ouvidos”: “os cegos vêem, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”.
Estas “obras”, estas boas notícias, são a prova de identidade do Messias; e deverão ser a prova de identidade dos seus seguidores. Só quando nossa vida prolongar e atualizar estas mesmas obras, só quando formos “boa notícia para os pobres” é que estaremos sendo seguidores(as) daquele Messias.
Por que Jesus fala de cegos, surdos, coxos, inválidos, leprosos..., e muitos outros coletivos que continuam sendo marginalizados? O texto quer dizer que a chegada do Reino terá ressonâncias vitais para todos, mas sobretudo para os mais desfavorecidos, que tinham perdido a esperança; quer dizer que aquele que acolhe o Reino, sairá da dinâmica da morte e entrará na dinâmica da vida.
É interessante que, entre os sinais da presença do Messias não há referência a um só sinal “religioso”: nem culto, nem orações, nem sacrifícios, nem doutrinas. Isto nos deve fazer pensar. Nós cristãos, com frequência, nos esquecemos que, para Jesus, o primeiro é o ser humano, a prioridade é a vida.

As “obras” que Jesus realizava, desconcertaram o Batista porque este, em sua pregação junto ao Jordão, o que na realidade anunciava era a chegada de um Messias ameaçante e justiceiro. João Batista, portanto, falava à multidão da “perdição eterna”, na linha do juízo mais severo. Por isso, o Messias viria a este mundo para remediar o problema do “pecado”.
Ainda hoje na Igreja, em muitos ambientes mais fechados e conservadores, prevalece a figura de João Batista, com julgamentos, medos e ameaça do juízo final. Com isso, a religião e suas observâncias deixam de ser fonte de esperança e nos distanciam do compromisso com os “últimos e excluídos”.
Jesus corrige João. Ele não veio para impôr medo e anunciar ameaças aos pecadores e às pessoas “perdidas”. Ele veio a este mundo para aliviar o “sofrimento humano”, para incluir quem estava excluído, para ativar a dignidade dos mais carentes, para abrir um horizonte de esperança a todos...
Dito isto, com facilidade compreendemos onde, em quê e como encontramos e vivemos o centro mesmo do Evangelho. O decisivo e determinante, na Igreja e na vida cristã, não é a doutrina, nem as práticas religiosas que alimentam a culpa doentia, nem o legalismo estéril, nem o ritualismo que afasta da vida... Há algo que é mais simples, mais claro e que está ao alcance de todos, a saber: o central e determinante da vida cristã é o compromisso contra todo tipo de sofrimento e contra tudo aquilo que exclui e gera desumanização.
Dito de outra maneira: seguir Jesus é contagiar vida plena e felicidade aos outros. Tanto mais, quanto mais limitadas e desamparadas são as pessoas com as quais convivemos. Somente o “projeto com vida”, que Jesus traçou em seu Evangelho, é a luz e a esperança que tanto aspiramos.

O Advento nos revela que a mística cristã é uma mística de olhos e ouvidos compassivamente abertos. Temos de aguçar a vista e afinar os ouvidos para sermos capazes de contemplar as obras de Deus em favor da vida, que se visibilizam na história da humanidade, sobretudo entre os mais pobres e excluídos.
Este tempo que vivemos e este lugar no qual estamos imersos, requer de nós novos olhos e novos ouvidos para facilitar a convivência, a transformação social e aceitar a nova visão da existência humana.
É preciso sair dos sentidos estreitos, auto-referentes e centrados em nós mesmos..., para os sentidos contemplativos, oblativos, capazes de nos deixar impactar pela realidade e entrar em sintonia com ela, vibrando e nos alegrando com as surpresas que daí brotam.

O tempo do Advento chega ao mais profundo, transforma nosso coração e nossos sentidos, e nos leva a um mundo novo de possibilidades inéditas, descobre e revela o melhor em cada um de nós. Quem se unifica e se dilata em seus sentidos, encontra seu verdadeiro rosto, porque a beleza do rosto é “epifania da pessoa”. O verdadeiro rosto deixa transparecer o coração quando este é carregado de compaixão.
O olhar de Jesus é reflexo do olhar do Pai, pois Ele se fixa sobretudo nas pessoas concretas e, com particular atenção, nos mais pobres e necessitados, aqueles que eram “invisíveis” para a sociedade de seu tempo: os enfermos, as viúvas, as crianças, o estrangeiro...
Estamos vivendo um tempo litúrgico privilegiado onde o trato íntimo com o Senhor nos transforma, nos inspira a assumir suas atitudes profundas e a “cristificar nossos sentidos”, para segui-Lo em sua encarnação no nosso mundo.  
Através dos nossos sentidos, o modo de ser e de agir de Jesus entra em nossa intimidade e, por meio deles respondemos também à realidade de um modo novo.
A contemplação do mundo da dor e das sombras de nossa realidade implica uma compreensão responsável que olha, escuta, sente, se encarna e se encarrega das realidades de sofrimento. É uma contemplação que nos enraíza na realidade da exclusão para descobrir como o rosto ferido e maltratado de nosso Deus se transforma em narrações de resistência e esperança para seu povo.

O tempo do Advento também deixa transparecer um grande obstáculo, que acaba reforçando o impulso possessivo dos nossos sentidos: vivemos numa cultura de imagens artificiais, não escolhidas, arremessadas contra nós, com fins mercantilistas. Nossos olhos e ouvidos estão saturados, nossas retinas estão fatigadas, nossos tímpanos perderam sua vibração. Estar submetidos a tal impacto, visual e sonoro, nos faz perder a inocência, ou seja, a capacidade de estar simplesmente numa atitude receptiva e de acolhida; também esvazia a contemplação desinteressada e distendida, aquela que nos dispõe para sentir e captar a presença divina na realidade e nas pessoas.
Nossos sentidos estão se tornando filhos da necessidade ou do interesse, esvaziando-se de toda gratuidade e atitude receptiva. Sentidos petrificados e possessivos acabam por bloquear também o nosso interior. Dos sentidos petrificados brotam atitudes de julgamento, de intolerância, de violência, de preconceito..., nos distanciando daqueles que são “os preferidos de Deus”.
Nossa civilização, que já ultrapassou a era do trabalho escravo, ainda está na era dos “sentidos escravos”.
Estão comercializando com nossas pupilas e nossos tímpanos; nas publicidades comerciais, temos os olhos e ouvidos vendidos e não levamos nenhuma “comissãozinha”.
Só os sentidos contemplativos deixam de ser possessivos e devoradores, para se tornarem oblativos e abertos; e, quando são oblativos, eles nos unificam por dentro e nos movem a viver em profunda sintonia com a realidade, carregada de presenças.
O Advento é oportunidade única para recuperar a capacidade do assombro e da admiração, e assim, viver os sentidos de maneira agradecida, gerando comunhão. E a conversão começa pelos sentidos.
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Texto bíblico:  Mt 11,2-11

Na oração:
Através dos “sentidos cristificados” alcançamos uma forma de olhar, escutar, sentir, apalpar, saborear... que nos abre à percepção da Presença divina e à revelação do sacramento do irmão.
- Quê novos sinais e vozes você está captando no seu interior e na sua realidade cotidiana, manifestação da surpreendente ação de Deus em favor da vida?
- De quê maneira você prolonga as “obras” de Jesus no seu ambiente?

domingo, 8 de dezembro de 2019

Em Maria, descobrimos que todos somos Imaculados (as)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Imaculada Conceição de Maria.


“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo! (Lc 1,28)

Celebramos neste domingo a festa de Maria Imaculada. O dogma da Imaculada Conceição foi proclamado pelo Papa Pio IX, na Bula “Ineffabilis Deus”, no dia 08 de dezembro de 1854. Nele se afirma que Maria, à diferença dos demais seres humanos, não se viu alcançada pelo “pecado original”, sendo “imaculada” (“sem mancha”) desde o momento de sua concepção.
Mas, falar de Maria como Imaculada tem um sentido muito mais profundo que a afirmação dogmática de “ser preservada da mancha original”. Falar da Imaculada é tomar consciência de que, em um ser humano (Maria), descobrimos algo, no mais profundo de seu ser, que foi sempre limpo, puro, sem mancha alguma, imaculado. O verdadeiramente importante é que, se esse núcleo imaculado está presente em um ser humano (Maria), então podemos ter a garantia de que está presente em todos os seres humanos.
O próprio S. Paulo afirma que “em Cristo Jesus, Deus nos elegeu, antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados, diante dele, no amor”. (Ef 1,4). Essa eleição é para todos, sem exceção. Não é uma possibilidade, mas a realidade que nos faz ser. Descobri-la e vivê-la, sim, depende de nós.
Essa dimensão de nosso ser que nada nem ninguém pode manchar, é nosso autêntico ser. É o tesouro escondido, a pérola preciosa.

Ao longo dos séculos, temos colocado sobre a figura de Maria uma infinidade de adornos que levaremos muito tempo para tirar e voltar à sua simplicidade e pureza originais. Maria não necessita adornos.
A festa de Maria Imaculada nos revela a presença do divino nela e em nós. Nela descobrimos as maravilhas de Deus. O núcleo íntimo de Maria é imaculado, incontaminado, porque é o que há de Deus nela. Maria é grande porque descobriu e viveu o divino que fez nela sua morada. Não são os mantos luxuosos e os adornos colocados sobre ela, através dos séculos, que a faz grande, mas o fato de ter descoberto seu ser fundado em Deus e ter expandido sua feminilidade a partir desta realidade.
O que devemos admirar em Maria é o fato de ter vivido essa realidade e ter deixado transparecer o divino através de todos os poros de seu ser humano. Ela deixa passar a luz que há em seu interior, sem diminui-la nem filtrá-la. Quando se diz que Maria é Imaculada, quer-se dizer que é no silêncio do corpo, no silêncio do coração, do silêncio do Espírito que o Verbo pode ser gerado.

Como foi possível que Maria alcançasse essa plenitude? Aqui está o verdadeiro sentido do dogma da Imaculada. Ela foi o que foi porque descobriu e viveu essa realidade de Deus nela. Tudo o que tem de exemplaridade para nós devemos a ela, não porque Deus lhe tenha cumulado de privilégios. Ela é referência inspiradora para todos nós porque podemos seguir sua trajetória e podemos descobrir e viver o que ela descobriu e viveu. Se continuamos considerando Maria como uma privilegiada, continuaremos pensando que ela foi o que foi graças a algo que nós não temos; portanto, toda tentativa de imitá-la seria em vão.
Dentro de cada um de nós, constituindo o núcleo de nosso ser, existe uma realidade transcendente, que não pode ser contaminada. O divino que há em nós, permanecerá sempre puro e limpo. Maria ativou esta dimensão de seu ser até empapar tudo o que ela era, “alma e corpo”. O que celebramos é sua plenitude de vida, aberta e expansiva, e não um privilégio que a livrou de uma “mancha”.
Podemos dizer que Maria é imaculada, porque viveu essa realidade de Deus nela. Ela é Imaculada para todos, por todos e em todos; em outras palavras, em Maria somos todos imaculados(as); somos imaculados(as) em nosso verdadeiro ser. O dogma da Imaculada Conceição fala de todos nós: isso é o que realmente somos. Em nossa verdadeira identidade, somos imaculados, limpos, inocentes...
Falamos demais sobre o “pecado original” e muito pouco sobre a “beatitude original”. Existe em nós uma realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os nossos medos e feridas... É preciso encontrar a confiança original.
Maria é o estado de confiança original. Assim, os Antigos Padres da Igreja viam nela o modelo da beatitude original, a mulher da pura confiança, do sim original Àquele que É.
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.

A partir desta perspectiva, Maria nos está recordando que, graças a pessoas parecidas com ela, ou seja, pessoas que se esvaziaram de seu próprio “ego”, é que foram capazes de entrar em sintonia com a Vontade de Deus; é ali, somente ali, no espaço interior, livre de todo resquício de auto-centramento, que Deus pode entrar, continua e continuará entrando em nosso mundo, para trazer sua Boa Nova, traduzida em tantas e tantas realidades concretas.

A afirmação de que ela tenha sido “concebida sem pecado original” corre o risco de situá-la muito distante de nós. Pelo contrário, se a veneramos e nela nos inspiramos para viver o seguimento do seu Filho Jesus é porque a encontramos muito próxima de nossa vida. A vida que temos vivido até agora e a que continuamos vivendo: cheia de luzes e sombras, de esperanças e de desencantos.
Maria é grande por sua simplicidade, porque aceita ser serva, em sintonia com Deus. Maria não é uma extraterrestre, mas uma pessoa humana exatamente igual a cada um de nós. O extraordinário nela foi sua fidelidade e disponibilidade, sua capacidade de entrega. Toda a grandeza de Maria está contida em uma só palavra: “fiat”. Maria não pôs nenhum obstáculo para que o divino que havia nela se expandisse totalmente; por isso, chegou à plenitude do humano. Devemos nos alegrar que um ser humano possa nos ensinar o caminho da plenitude, do divino.

Nesse sentido, Maria é a referência para todos nós porque a vemos como a pessoa que foi crescendo dia-a-dia, sempre aberta ao projeto de Deus. Esvaziando-se de si mesma, renunciando à sua vontade, para que Deus, o Todo-poderoso, como ela mesma cantará no Magnificat, entrasse em nossa história, encarnado na pessoa de Jesus. Um Deus “todo-Poderoso” que não usou seu poder para atuar de maneira impositiva, mas, em Maria “realizou maravilhas” para que, através dela, seu amor e sua misericórdia se fizessem visíveis a toda a humanidade. “Seu amor se estende de geração em geração...”, proclamará também no Magnificat.
Inspirados em Maria, é preciso encontrar, em nós mesmos, este lugar por onde entra a vida, este lugar por onde entra o divino, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de vazio, alguma coisa de mais profundo do que aquilo que se chama o “pecado original”.
É assim que se fala de Imaculada conceição. O Verbo é concebido no que há de mais imaculado em nós, no que há de mais completamente silencioso. Isto supõe que haja no corpo humano um lugar onde não existe memória doentia nem a presença do “ego cheio de si”, mas do eu esvaziado, de onde nasce a vida.
É preciso entrar num estado de silêncio, de vazio de si mesmo, de total receptividade, para que o Verbo possa ser gerado em nós. “Assim novamente encarnado”, nos diz S. Inácio de Loyola.


Texto bíblico:  Lc 1,26-38

Na oração:
No relato da Anunciação, descreve-se um itinerário de iniciação espiritual. É preciso, antes de mais nada, entrar neste estado de escuta, neste estado de confiança, neste sim, pacificar nossas memórias e, então, não ter medo da visita do anjo e da alegria que ele pode trazer.
Mas também não ter medo da perturbação que pode surgir. Tal perturbação é que nos faz descer ao chão de nossa vida, vai nos conduzir até a sombra, até o mais profundo de nosso eu interior, até a profundeza da nossa humanidade. E é ali que que vai brotar o nosso “sim” original; é ali que vai nascer o divino que nos conduzirá à plenitude de vida.
- Fazer memória das experiências de “anunciação” em sua vida: o que mudou? quê movimentos vitais surgiram?