“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
No
segundo domingo de Páscoa de cada ano, a liturgia nos apresenta o belíssimo
relato que só se encontra no evangelho de João. Esta dupla aparição do
Ressuscitado aos discípulos, primeiro na ausência de Tomé, e depois na sua
presença, nos diz algo sobre a comunidade cristã primitiva, mas também traz luz
sobre as nossas comunidades hoje.
Aí
está constituída a nova comunidade pascal; uma comunidade em torno à presença de
Jesus; uma comunidade chamada a viver da experiência do encontro com Aquele que
consumou sua vida em favor da vida de todos; suas chagas serão, de agora em
diante, a melhor expressão da identidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Uma
comunidade animada pelo mesmo Espírito de Jesus; uma comunidade não fechada
sobre si mesma, alienada das chagas da humanidade, mas aberta, como Ele, ao
amor universal para com todas as pessoas. Uma comunidade de amor, capaz de
viver o perdão e ser presença misericordiosa.
Somos já “seres ressuscitados”
quando vivemos estes dons do Ressuscitado, comprometidos com o Seu projeto carregado
de vida, para aliviar as dores e as feridas da humanidade.
A CF deste ano, com o tema “Vida:
dom e missão”, nos faz tomar consciência que, aquele(a) que se experimenta a si
mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada”.
Pois a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada
pelo amor.
Quando acolhemos a presença do Ressuscitado, nossa vida
se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de
liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento,
gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e
sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação,
comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que
desperta o olhar para o vasto mundo e move à missão.
Chama-nos
a atenção (sobretudo nos evangelhos de Lucas e de João) que Jesus ressuscitado
tenha tanto interesse em mostrar a seus discípulos as chagas de suas mãos, seus pés e de seu lado aberto. Quê significa
isto, um ressuscitado com chagas? Diante de um martirizado ressuscitado,
qualquer um esperaria ver um corpo totalmente renovado, rejuvenescido, limpo,
sem feridas e marcas do martírio.
E,
no entanto, Jesus ressuscitado toma a iniciativa, deixa-se ver, faz-se
presença, provoca um encontro. Os discípulos e discípulas buscam um cadáver,
para lhe manifestar respeito e carinho. Jesus ressuscitado, como bom pedagogo,
busca aqueles e aquelas que o tinham seguido desde a Galileia e, respeitando a
liberdade e os tempos de cada um(a), os ressuscita também, reconstruindo-os em
sua identidade ferida.
As chagas de Jesus ressuscitado são
algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. Elas são expressão de
identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado. Dito de outro
modo: Jesus, vencedor da morte, não abandona o que é caduco e frágil da
existência mortal. A fragilidade da carne foi assumida na glória do Corpo
ressuscitado. Por isso, suas chagas são terapêuticas, pois curam as nossas
chagas do fracasso, do medo, da tristeza, da solidão, da dor... São feridas que
curam feridas
A ressurreição afeta todo o nosso
ser: tudo é iluminado, re-significado, tudo adquire novo sentido.
Em
meio à comunidade dos discípulos reunida, o evangelho de João destaca a figura
de Tomé, elaborando em torno a ele um
relado de muita densidade e com muita inspiração. Tomé é a expressão do ser
humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus Histórico, do Jesus das
chagas nas mãos e no lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado.
Provavelmente,
ele acreditava em Jesus, mas em um “Jesus espiritual”, puramente interior, sem
necessidade de compromisso comunitário, sem chagas no seu corpo. Talvez, ele
estivesse mais centrado no Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, das
mãos que tocaram os pobres e curaram os doentes, do coração que amou os
excluídos da sociedade, dos pés que romperam barreiras e fronteiras...
Por meio de outros testemunhos da
literatura cristã antiga, sabemos que Tomé queria tocar em Jesus só de um modo
espiritual, criando um tipo de comunidade de feição “quase angelical”,
distanciando-se da humanidade de Jesus e vivendo uma religião desumanizadora,
centrada só em ritos, doutrinas, leis...
Contra isso, a comunidade lhe diz
que é preciso “tocar nas chagas de Jesus”, que o Ressuscitado é o mesmo Jesus
da História, Aquele que foi chagado pela violência e pela rejeição.
O Senhor Ressuscitado continua
sendo aquele que carrega em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os
sinais de seu amor crucificado em favor de todos. Este Jesus pascal, continua
estando presente nas chagas dos homens e mulheres de mãos quebradas, na ferida
do lado dos homens e mulheres que sofrem.
As chagas de Jesus, em seu lado e
em suas mãos, são as chagas de um perseguido e condenado pela “justiça” do
mundo. Isso significa que o Jesus ressuscitado não é um “fantasma”, mas o mesmo
Jesus que foi crucificado.
Ao
mostrar suas chagas, Jesus ressuscitado revela que as chagas da humanidade
continuam abertas, esperando que seus(suas) seguidores(as) prolonguem os gestos
de cura e cuidado do mesmo Jesus. São estes e estas que hoje atestam a
vitalidade do Ressuscitado.
No
entanto, não há mais o Cristo visível para tocar. Os únicos traços para ver e
tocar, que confirmam a realidade de sua presença, são as pessoas de cada tempo
que lutam por uma terra onde os pobres e os excluídos terão seu lugar, onde o
ódio não rege as relações, onde a bondade predomina sobre o desprezo, onde o
respeito impede a violência capaz dos piores instintos, onde a acolhida impede
o fechamento em si mesmo.
Portanto, crer na Ressurreição não
é simples adesão a um dogma de fé, é compromisso com a vida.
O “toque pascal” de Tomé (“coloque tua
mão em minha ferida...”)
é o “toque das chagas”, é a experiência dos crucificados do mundo. Só podemos
“tocar” em Jesus de verdade, e confessar sua Páscoa, “tocando” (ajudando) os
enfermos e crucificados da história.
Não há experiência pascal se não
descobrimos Jesus ressuscitado nas chagas dos pobres, doentes e excluídos de
nosso mundo; “tocar” estas chagas vai além de um gesto físico; implica ser
presença solidária, acompanhar, ajudar, alimentar uma sintonia e comunhão com
aqueles(as) que clamam por uma presença consoladora, carregada de ternura.
Enfim,
o evangelho deste domingo nos pede:
-
Que abramos as portas e as janelas das comunidades cristãos, para que todos
possam ver o quanto de vida há dentro dela, para que vejam quem somos, como
vivemos..., de maneira que possamos oferecer e compartilhar espaço de perdão, de
acolhida sem preconceitos, de amor oblativo...; é preciso afastar a pedra do
dogmatismo, do legalismo, do ritualismo... que nos mantém sufocados ou
respirando o ar fétido dos túmulos;
-
Que vivamos em comunhão, que permitamos que Tomé retorne à comunidade. A
transformação de Tomé implica também uma mudança da Igreja, que o acolhe e lhe
oferece um lugar a partir do Jesus crucificado; que ela seja espaço aberto, integrador,
acolhedor do diferente.
-
Que sonhemos também com uma Igreja que rompa os túmulos do conservadorismo, do
legalismo, da apatia, e se abra à desafiante situação de nosso mundo, “vivendo
em saída” para “tocar” os chagados e lhes oferecer o dom da unção e do consolo.
Texto
bíblico: Jo 20,19-31
Na oração:
Nos Exercícios
Espirituais, S. Inácio nos convida a considerar como o Ressuscitado exerce o “ofício
de consolar”.
Somos, pois,
consolados
em nossas tribulações e dores para poder consolar os outros nas suas. Trata-se
de uma experiência transbordante, expansiva, que nos impulsiona em direção aos
outros.
Como seguidores(as) do Vivente, somos chamados(as)
a exercer este “ofício de consolar”; a experiência da Ressurreição nos move a
“descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, enfermidades,
perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador. “Ser vida
ressuscitada que desperta outras vidas”: vida plenificada, iluminada,
integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em
direção às vidas bloqueadas, necrosadas... Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual o Deus da Vida se
comunica e atua em nós, o ofício do consolo é o canal por
onde flui a vida.
- Como ser presença consoladora nestes tempos de
pandemia?
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