“Derramou água numa bacia, pôs-se a lavar os pés
dos discípulos e enxugava-os com a toalha que trazia à cintura” (Jo 13,5)
No
Evangelho desta Quinta-feira Santa, Jesus, com sua original sabedoria, nos
oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus era um provocador, no sentido etimológico da
palavra, (provocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a
verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente da que era
habitual.
Mas,
custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo
fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua
plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e
atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à
realidade que nos cerca.
Ver as coisas “por uma outra perspectiva”
é muito mais instigante.
Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande
ajuda para uma vida sadia.
O que Jesus pretende, no gesto do
“lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto
de vista, um novo ângulo, uma nova perspectiva, fazendo-nos ver a
realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude
compassiva.
Na
noite em que ia ser entregue, Jesus realizou um gesto provocativo: levantou-se da
mesa, distanciando-se do lugar reservado àqueles que a presidem e se situou no
lugar daqueles que pertencem à categoria dos “servidores”. Jesus sabia que o lugar em que estamos situados
condiciona nosso olhar e nossa atitude; por isso, tomou distância e adotou a
perspectiva que lhe permitia perceber outras dimensões da vida.
A partir desse lugar tocou de perto
o barro, o pó, o mal odor, a sujeira..., tudo isso que aqueles que estão
sentados à mesa acreditam estar a salvo ou simplesmente ignoram e desprezam.
Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realizou uma mudança e
uma amplitude de visão que lhe fazia perceber tanto as riquezas e dons de cada
um como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações da corporalidade das
pessoas. E, olhadas a partir daí, Ele deixa transparecer que qualquer pretensão
de superioridade ou domínio se revela como ridícula e falsa.
Nesse
deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro
àqueles que os outros consideravam distante e fora. Porque para Ele, os maiores
e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são
contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem a “revolução nas
relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos.
Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos
tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que
não coincidem com os que consideramos evidentes.
Com o gesto do lava-pés e ao
deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação
senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando,
assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável.
Ali também Ele nos revela-nos um
rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos
e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando
deste modo a horizontalidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão
de poder-dominação.
“Eu estou entre vós como aquele que serve”. Jesus não renuncia a nenhuma grandeza humana, mas
denuncia a falsidade da grandeza do ser humano que quer se apoiar no poder ou
no domínio sobre os outros. A verdadeira grandeza humana está na identificação
com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas.
Como aconteceu com Pedro, o gesto de
Jesus no Lava-pés continua nos provocando, porque se há algo que incomoda é
deslocar-se até os últimos e colocar-se no lugar deles.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado
pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber,
delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira
tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São
grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza
aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social,
à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar
se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de
tudo aquilo que se faz.
Compreende-se
claramente que o que ali estava em jogo não era a humildade – nem a de
Pedro, nem a do próprio Jesus -, nem sequer uma boa exortação para praticar a
caridade. Porém, a intenção de Jesus ia muito mais longe, tão longe que Ele
mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos
fiz?” Efetivamente, o que Jesus estava dizendo a seus
apóstolos era o seguinte: “Eu, que sou o Mestre que ensina o que é preciso
saber, e que sou o Senhor-Deus que dispõe o que se há de fazer, não me
relaciono convosco com base no poder, mas na exemplaridade”.
Daí
Jesus termina dizendo: “Pois é um exemplo que eu vos dei: o que eu fiz por vós,
fazei-o vós também”.
Com
isso, Jesus estava afirmando que eles, os apóstolos, não podem compreender sua
missão com base no poder que se impõe, mas sim na exemplaridade que convence.
E Ele exigirá isso a todo aquele(a)
que queira segui-lo: terá que estar disposto, o mesmo que Ele, a “não ter onde
reclinar a cabeça”, a ir mais além de tudo aquilo que a nossa cabeça se
inclina, descansando naquilo que acredita saber, controlar ou dominar.
A reação de Pedro expressa bem o escândalo
que este gesto produz, porque Jesus revela que a autoridade - ser Senhor – é
um serviço, não uma dominação.
Pedro fica desconcertado e em dilema. Sua
imagem do Messias seguro e vencedor não combina com a vulnerabilidade de um
servo; ele comungava com a mentalidade hierarquizada da época, a qual determinava
a cada um o seu devido lugar. A relação entre mestre e discípulo era regulada
pela superioridade, sapiência, respeitabilidade de um, e pela inferioridade,
ignorância e submissão do outro. O gesto de Jesus pareceu inaceitável para
Pedro, pois rompia a hierarquia, podendo gerar indisciplina. A mentalidade de
Pedro era perigosa. Agindo assim, corria o risco de introduzir na comunidade
dos seguidores de Jesus o esquema senhor-escravo que Ele viera abolir.
Em muitas culturas e tradições espirituais
(como no Evangelho), o Mestre lava os pés
dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém
é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enraizado, é recolocá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que
possa dar direção à sua vida.
A
palavra “pé”, “podos” em grego, está
estreitamente relacionada à palavra “paidos”,
usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida
dos pés do ser humano, desde que
cuidar dos pés de alguém significa
cuidar da criança que está nele.
Eis a
missão do(a) seguidor(a): ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as
em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.
Não cabe ao cristão carregar as
pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por
seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.
Texto bíblico:
Jo 13,1-5
Na oração: “Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento
de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de
Jesus. Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.
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Como você pode prolongar nos seus ambientes cotidianos o gesto de Jesus no
“lava-pés”?
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