“Conversavam
sobre todas as coisas que tinham acontecido” (Lc 24,14)
Nossa vida é parte da História, e esta,
por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e
marcadas pela presença de outras muitas histórias.
A História, por si mesma, é provocante e
nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias
da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem
somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e
surpresas que a vida nos reserva.
A vida só tem sentido quando
se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas
quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e
saboreada.
É somente no nível mais
profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história
e seu “espaço” em encontro.
No relato dos “discípulos de Emaús”, o encontro
com o Ressuscitado nos ajuda a “ler” a História, pessoal e coletiva, de uma maneira
diferente e instigante. A história triste e fracassada dos dois discípulos
adquire um novo sentido a partir da luz dos relatos bíblicos que o Peregrino
traz à memória.
A partir da “memória bíblica”, eles
são movidos a “re-ler” a própria história com novos olhos,
reconstruindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-se impelir a
escrever uma nova história.
Marcados pelo dinamismo da
Ressurreição, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história;
encontrar-nos com ela significa caminharmos para o interior do mistério da
mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e
mobilizar por ela.
Com isso, re-iniciamos um
novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história,
mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la... Uma história com rosto de
futuro... e um futuro inspirador.
A história se revela,
assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de
graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo
do seguimento de Jesus. Não é fora da História e de sua história
que o(a) seguidor(a) de Jesus pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu
apelo; porque “Deus se fez História” e só o Verbo Encarnado,
agora Ressuscitado, pode ser “o verdadeiro fundamento da história” (S.
Inácio). A
partir do Jesus ressuscitado, a história de cada um e da humanidade
inteira adquire uma nova luz e um novo sentido e se abre a um vasto horizonte
de compromisso.
A história pessoal do
cristão e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar”
habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não
se consome.
Fazer memória das histórias não significa
querer mudá-las, mas adquirir nova perspectiva, um novo olhar. Com frequência,
esta perspectiva nos ajuda a entender melhor nossa situação atual. Trata-se da “memória
agradecida”: tudo tem sentido, nada é desperdiçado...
Quando a história é contada e re-contada,
acontece a cura da memória. Em lugar de uma história opressiva e pesada,
passamos a contar com uma “história redentora”. O momento da
Graça é precisamente esse: quando, de repente, a perspectiva muda, encontramos
um “novo sentido” e surge uma saída do emaranhado de lembranças, emoções
e histórias de fracassos e decepções.
Isso aparece claramente no relato evangélico
deste domingo.
Na narrativa, o Forasteiro
ajuda os dois discípulos a “desatar” o nó de suas lembranças traumáticas e a
compor uma nova história. A história de Jesus, com seu fim
decepcionante, tornou-se pesada e eles procuram fugir de Jerusalém e da
terrível lembrança da morte do Mestre. Mas a história os acompanha na
estrada. Não param de repeti-la. Mesmo quando dizem as palavras certas, a
intensidade emocional da experiência não lhes permite ouvir a história
de uma perspectiva diferente.
Enquanto caminhavam, conversavam e discutiam com tal
intensidade que nem perceberam a aproximação do forasteiro. Falar de maneira
tão intensa de uma experiência recente demonstra que ela teve forte impacto na
vida deles, mas o significado desta dura experiência está envolvido numa
obscuridade.
Para eles, a história não faz sentido. A história de Jesus, com seu fim
decepcionante, tornou-se agora traumática. Esforçam-se para encontrar a única
coisa que vai ajudá-los a superar a dor, transformar a lembrança, permitir que
continuem suas vidas, refugiando-se no passado.
Foi preciso
discernimento por parte do Forasteiro para libertar seus discípulos daquela
interpretação nociva da história. Ele reorienta a história sem diminuir a gravidade do que acontecera.
O Forasteiro não só reconta a história de Jesus, mas também tem de remodelar todas as histórias das relações de Deus com
Israel. A “história pessoal” é “recontada” e considerada no
contexto de uma história muito mais
ampla; há uma ligação profunda entre todas as histórias, constituindo-se na grande História da Salvação. A descoberta desta nova perspectiva acontece
como momento de graça que desce sobre eles.
A história re-contada
começa a reconstruir a humanidade deles, a esperança
vai retornando, os corações vão se aquecendo, a alegria vai
surgindo em seus rostos... O Forasteiro, ao criar um círculo de confiança,
abriu “espaço terapêutico” para que os discípulos contassem sua história
em segurança e começassem a re-alimentar uma nova esperança. Foi criado um
ambiente de hospitalidade que culminou na Ceia.
É nesse ambiente que a taça
do sofrimento transformou-se na “taça da esperança”.
Das cinzas brotaram a
esperança, o entusiasmo e os sonhos... e eles apressaram-se a voltar para
Jerusalém a fim de partilhar a descoberta de um novo sentido da história.
A partir do fundamento da História (Jesus
Cristo), contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história
que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos
ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgotável da vida, nos faz “aquecer
o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas
capacidades para um compromisso de ação transformadora na história
pessoal e coletiva.
A História está sempre aberta,
desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa
criatividade para ser re-escrita de uma maneira diferente.
Nossa história pode ser poderosa
motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção;
ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos
traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade.
Assim, a experiência pascal
significa “conhecer”, “sentir” e “amar” a nossa própria história. É uma verdadeira experiência de Ressurreição.
Só assim a história se
converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e nos permite
compreender, acolher e integrar tudo o que acontece, dentro e fora de nós.
Este é um tempo de Graça:
o encontro vivo da “história” celebrada com o compromisso de
construção da “nova história”, mais ousada e mais criativa. Trata-se de
um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do
que celebramos.
Sem a luz da Ressurreição,
nossa história, pessoal e
coletiva, se reduz a eventos opacos, vazios, tristes...
Com a Ressurreição, a
história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A Ressurreição
plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de
Salvação”. Ela nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo”
diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo...
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na oração:
Diante da
história pessoal e social, sinto-me desafiado? Paralisado(a)? com medo? Inquieto(a)?
- Quanto de
esperança carrego em meu interior?
- O que me
faz abrasar o coração diante de uma história que parece um fracasso?