Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo da Páscoa (Ano B) 2021.
“Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem...” (Jo 10,14)
Todo quarto domingo do Tempo Pascal a liturgia busca
inspiração na alegoria do Bom Pastor;
ela não apresenta outros relatos de “aparições” do Ressuscitado, mas realça o
que é central na experiência pascal: “viver como ressuscitados” é
deixar-nos inspirar por Aquele que é Vida em plenitude.
Para começar, é compreensível que imagens próprias
de uma cultura agrária não sejam significativas para quem vive nos espaços
urbanos e numa sociedade tecnologicamente avançada; para muitos, a imagem do Bom Pastor perdeu a referência e deixou
de ser significativa; ela acaba provocando indiferença ou rejeição porque, em
nosso ambiente sociocultural, a imagem do “pastor e das ovelhas” evoca atitudes
de domínio, de controle, de paternalismo e do correspondente súdito “cordeirinho”.
O “rebanho” é visto como constituído de ovelhas que não podem dirigir seus
atos, não sabem onde encontrar as pastagens e, se não é a presença controladora
do pastor, elas acabam se perdendo e morrendo nas garras dos lobos.
No entanto, a resistência à imagem do “pastor e das ovelhas” acaba “trazendo à luz” esta realidade que não mudou: muitos afirmam que não tem “vocação de ovelhas”, mas se comportam como “gado” no curral da alienação; sem uma visão crítica, deixam-se levar e vão aonde todos vão, “pastam” nos campos envenenados das “fake-news”, aceitam que “falsos messias” (seja no campo político ou religioso) controlem suas vidas, permitem que os “pastores” da “mídia interessada” propaguem a “sua verdade”... As redes sociais estão aí para demonstrar as atitudes alienadas do “rebanho” que se transforma em “massa de manobra”, onde é proibido “pensar, sentir e amar” de maneira diferente.
Apesar das considerações anteriores, a imagem do “Bom Pastor” pode ser inspiradora se
ela nos conduz ao centro da vida que
é dom e se faz continuamente dom.
Como toda imagem é ambígua, devemos salvar o
sentido nobre que ela desvela quando nos aproximamos da inspiração primeira
anunciada por Jesus. Esta alegoria abriu caminho a uma espiritualidade e a uma
devoção extensa e profunda ao longo de toda a história cristã. Guia,
cuidado e proteção conectam profundamente com as necessidades básicas
do ser humano. É inegável, também, que essa devoção produziu frutos abundantes
de confiança e compromisso.
Jesus se apresenta como o
verdadeiro Pastor porque não nos
considera propriedade sua, respeita-nos, ativa nossa autonomia ...; Ele é o
verdadeiro pastor porque é pura transparência do Pai, providente e cuidador,
que não controla, não manipula, nem tolhe nossa liberdade. Ele se apresenta
como verdadeiro pastor porque ativa as nossas potencialidades humanas e nos
instiga a viver de modo criativo. Seu “rebanho” é constituído de diversidades
que se enriquecem e se comprometem com a causa da vida.
Jesus é Pastor fazendo com que
todos sejam pastores. O rebanho de ovelhas se converte em comunidade de
pastores, dialogando-se mutuamente, onde cada um é porta de vida para os
demais.
O encontro com o Bom Pastor ativa em nós o “pastor
escondido” para que possamos ser a presença de vida que faz a diferença e indique
a todos a porta de liberdade; todos somos chamados a ser pastores, ajudando-nos
mutuamente a encontrar o caminho e o sentido para nossas existências.
Queremos ser “bons pastores” que se ajudem a sair do aprisco onde estamos fechados (moralismo, legalismo, ritualismo, religião sem vida...), para assim buscar a liberdade e celebrar a vida, com o Bom Pastor e com todos os homens e mulheres de boa vontade.
Inspirados
no Bom Pastor somos chamados a viver
uma Vida maior, que é uma vida de qualidade,
de harmonia interior e comunhão com todos; é aquela vida na qual vivemos de
acordo com nosso projeto pessoal, na qual reservamos todos os dias um tempo
para refletir como queremos viver, quanto tempo investimos com os outros,
quanto trabalhamos para levar à sociedade o nosso melhor, quanto praticamos a
justiça nos pequenos detalhes cotidianos, familiares, sociais, quanto
partilhamos daquilo que somos e temos, quanto amamos gratuitamente, sem esperar
que o outro nos corresponda, mas aceitando-o empaticamente, permitindo-o ser
diferente e expressar seus afetos, como pode e como sabe.
E, por último, quanto vivemos a vida como uma festa e se a tornamos festiva, agradável e humorada aos demais; se, além disso, tudo isto é vivido e acompanhado na presença e fortaleza de Deus, que nos cumula de energia, nos impulsiona à vivência da misericórdia, da justiça, do cuidado... e nos indica o caminho para viver uma existência apaixonante.
Também na imagem do “Bom Pastor”, Jesus deixa
transparecer, na sua relação com os mais frágeis e excluídos, a imagem do Deus ternura e cuidado.
Recuperar o sentido da ternura exige de
nós contemplar a vivência da ternura de Jesus de Nazaré, e não só como um mero
modelo ético de atuação, senão em sua profunda intimidade e filiação referida a
um Pai materno cujas entranhas se estremecem e sente ternura por seus
filhos e filhas.
Recuperar a imagem esquecida do “Deus de
ternura”, supõe enraizar-se no coração do Bom Pastor, imagem que revela
a capacidade do ser humano de abraçar amorosamente a situação de fragilidade e
dor do outro, com uma compaixão que se faz vida, nos gestos revitalizadores e
humanizadores, cheios de ternura.
Só quem experimentou a ternura
de Deus, revelado em Jesus, sabe-se possuidor de uma “segunda pele” que
certamente o faz mais vulnerável, mas ao mesmo tempo mais humano ou mais apto
para penetrar no secreto de uma humanidade capaz de sentimento e estremecimento
até os limites não imaginados. Nele pulsa o coração de Deus que se sintoniza
com a pulsação do coração do mundo.
Com razão afirmava Abrahán Heschel, que “o grau de sensibilidade diante do sofrimento humano indica o grau de humanidade que temos atingido”. E é a ternura aquela que desperta em nós essa sensibilidade e mede, por isso, o grau de humanidade alcançado.
A ternura vital é sinônimo de cuidado
essencial.
O cuidado nos torna pessoas abertas, sensíveis, solidárias, cordiais
e conectadas com tudo e com todos no universo. Sem o cuidado, nos fazemos
desumanos; sem o cuidado nos definhamos e morremos.
O cuidado vive do amor primeiro, da ternura, da carícia, da
compaixão, da benevolência acolhedora...
A arte do cuidado confere a cada um de nós
a capacidade de exercer o “pastoreio espiritual”; cuidar é sentir o
outro, é verdadeiramente escutar, é ter um olhar desarmado,
eliminando todo preconceito. Cuidar é dar atenção com
ternura, isto é, descentrar-nos de nós mesmos e sair em direção do outro,
participando de sua existência; é esvaziamento de nós mesmos para deixar o
mistério da fragilidade do outro, que também trazemos em nós,
encontrar abrigo no coração.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na
oração:
Quem
já foi afetado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora,
e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai
“ileso” desta expe-riência; algo mudou dentro de si: a ternura é despertada
e o cuidado é mobilizado.
O
modo-de-ser-ternura e cuidado do Bom Pastor se prolonga em nós, seus
seguidores.
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