Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º. Domingo da Páscoa (2022 - Ano C).
“Saíram e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite” (Jo 21,3)
A vida é constituída de
momentos de luta e de coragem, de sonhos e de esperança, de vitórias e de
derrotas. Este é o material com o qual são construídas nossas histórias,
pessoais e coletivas.
Todos nós já vivemos experiências de fracassos, quando tudo desmorona, quando tudo nos é tirado, quando
perdemos o chão, quando parece que evapora tudo aquilo sobre o qual tínhamos investido
todo o nosso amor e toda a nossa energia e criatividade.
Mas, no horizonte da Ressurreição, o fracasso tem seu lugar. Ele pode ser percebido como chance para
crescimento ou amadurecimento, ou pode ser integrado à luz de outras
experiências positivas. Aprendemos mais pelos nossos fracassos do que pelos nossos êxitos.
O fracasso pode ser, à luz da
Ressurreição, des-velador da natureza do ser humano, que vai amadurecendo,
superando o sentimento infantil de onipotência, descendo do pedestal de sua
soberba para tornar-se mais humano, mais amoroso, mais confiante... Os
fracassos podem se revelar como ocasião privilegiada para ativar outros
recursos humanos que não tiveram chance de se expressarem.
Integrar
os fracassos
significa assumir as perdas ou carências que aparecem como uma negação de vida,
mas que contém potencial de nova vida, de crescimento, de maturação pessoal. Em
definitiva, de criatividade humana, base da evolução pessoal e social.
Em nosso contexto social, o fracasso é
vivido como uma perda de prestígio e poder. Mas se o situamos no horizonte da
Ressurreição, ele pode ser elaborado saudavelmente e, então, poderemos
descobrir que o fracasso pode ser fonte de fecundidade. A Ressurreição nos
ajuda a re-siginificar, a re-ler, a re-interpretar todos os nossos dramas,
crises, feridas, fracassos... Tudo é acolhido, tudo é integrado, tudo é
mobilizado para dar um novo passo em direção a um novo futuro de vida.
Há um relato que sempre nos impacta
muito e que aparece no capítulo 21 do evangelho de João. Trata-se da aparição do
Ressuscitado aos discípulos no lago da Galileia.
Normalmente nosso imaginário
concebe a Ressurreição como uma grande “apoteose”; mas, se algo
está ausente nas aparições do Ressuscitado, tal como os evangelhos nos relatam,
é precisamente a apoteose.
O dicionário Houaiss da língua
portuguesa a define como o ápice, o momento mais importante de um
acontecimento, o apogeu, a glorificação, o júbilo, o entusiasmo, o cume... Mas,
por mais que busquemos algo disso nos relatos pascais, não é possível encontrar
nenhum rastro de semelhantes exaltações, resplendores, arrebatamentos...
Ao relatar como o Ressuscitado se
conectava com os seus amigos e amigas, o que nos assombra é sua discreta
maneira de fazer-se próximo, de surpreender-lhes em seus trajetos habituais, de
lhes saudar com o “Shalon” de cada dia, de apresentar-se sob as aparências mais
comuns: um trabalhador de parques e jardins, um forasteiro desinformado a quem
é preciso atualizá-lo sobre os últimos acontecimentos, um desconhecido ocioso
que, a partir da margem do mar, pergunta como foi a pescaria.
Mas há um
dado constante nos relatos das Aparições do Ressuscitado: Ele se faz presente
no meio do fracasso, da dor, da tristeza, da ferida..., e, aos poucos, vai
iluminando a situação dramática de cada pessoa ou do grupo, vai reconstruindo
vidas despedaçadas, vai abrindo horizonte de sentido e confirmando a missão de
prolongar o “movimento de vida” iniciado na Galileia.
No relato pascal deste domingo, o evangelista
João revela que, à primeira vista, parece que a situação dos discípulos não
tinha mudado; eles tinham perdido sua condição de seguidores, tocaram fundo na decepção
que a morte lhes produziu e atrofiaram o sonho no qual acreditavam que estavam
fundadas suas vidas.
Novamente eles se encontram junto à praia e entre
redes, como no começo; o vazio, o abandono, a solidão, a escuridão da noite, a
rotina de um trabalho cansativo e ineficaz, dominam a paisagem do texto;
novamente a dureza de cada dia, em um cotidiano sem a presença de Jesus.
Mas, um “estranho”, muito cedo, da
margem do lago, atreve-se a provocá-los, fazendo uma pergunta onde mais doía: “moços, tendes alguma coisa para comer?”
Diante de um “não” ríspido, o
Ressuscitado faz um convite ousado: “Lançai a rede à direita da barca e
achareis”.
É como se dissesse:
mudem de atitude,
pesquem de maneira diferente, busquem outros lugares, saiam da rotina, sejam
criativos... Também para lançar a rede existem dois lados: um lado conhecido e
rotineiro; e outro lado alternativo e novo. Revendo o passado, os discípulos
reconheceram que estavam trabalhando no lado errado, determinados pelo peso de
uma tradição que não os deixava crescer.
Saber
escutar os outros sempre pode ser útil. O pior é a auto-suficiência que leva a
acreditar que sabe tudo. Até o conselho de um desconhecido pode ser princípio
do êxito.
A nova
consciência transforma tudo. A vida ganha a plenitude da rede, torna-se vida em
abundância.
Uma frugal refeição e a presença que se faz
companhia foram a estratégia encontrada por Jesus para retomar o movimento de
vida que fora bloqueado pela sua paixão; ao mesmo tempo, tornam-se o ambiente
favorável para confirmar a missão dos seus mais íntimos, sobretudo de Pedro,
que passara por uma profunda experiência de fracasso: negara a amizade com
Jesus.
Há algumas brasas, que recordam
aquela fogueira em torno da qual, alguns dias antes, o velho pescador jurou não
conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora, junto ao fogo irmão, Jesus lavará
com misericórdia a fraqueza de Pedro, transformando para sempre seu barro
frágil em pedra fiel.
O relato deste domingo nos revela que é do meio do fracasso que pode
brotar o impulso para uma adesão mais radical Àquele que no fracasso “desceu”
ao mais “inferior” (“infernos”) da condição humana, Àquele que “se fez
fracasso” para se fazer mais solidário com todos os fracassados da história.
Assim aconteceu com Pedro e os seus companheiros. Foi no contexto do
fracasso (morte de Jesus, retorno à profissão de pescadores, pescaria
infrutífera...) que Pedro foi perguntado três vezes sobre o “amor”.
Foi também nesse contexto que Pedro teve chance de se deixar reconstruir
em sua identidade pela presença do Ressuscitado; também por três vezes expressa
a radicalidade de seu amor à pessoa de Jesus Cristo, que se faz visível na
identificação com Ele e na confirmação de sua missão: “apascenta minhas ovelhas”.
As perguntas de Jesus a Pedro nos
revelam que a cura das feridas emocionais é, antes de tudo, um caminho novo que
envolve afeto, amizade, amor.
Antes, um Pedro valente o suficiente para
cortar a orelha do servo do Sumo Sacerdote com a espada, mas que perde a
valentia em seguida, a ponto de negar conhecer o próprio Jesus.
O Pedro que emerge deste contato terapêutico com o Ressuscitado é um Pedro corajoso, decidido, mas também muito mais amoroso, humano, pronto para exercer o “ministério do cuidado” do rebanho, confiado pelo Ressuscitado.
Texto bíblico: Jo 21,1-19
Na oração:
- O
encontro com o Ressuscitado possibilita re-ler a vida, ressignificar fatos,
“reciclar” perdas e feridas, “processar” fracassos..., para sair do “fatal
ponto morto” e entrar no movimento expansivo da Vida.
- Diante
das crises, feridas, fracassos..., qual é a sua tendência? Tentar deletá-los
através do retorno ao cotidiano normótico (voltar a pescar)? Ou oportunidade
para um despertar a outras dimensões da vida, mais ricas e ousadas?
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