Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo da Páscoa (2022 - Ano C).
“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20)
O relato
pascal deste domingo é chave para entender o sentido de todas as aparições do
Ressuscitado aos seus amigos e amigas. Ele não tem a intenção de nos querer
dizer o que “aconteceu”, mas transmitir-nos uma vivência, uma
experiência.
Ao refletir
sobre os relatos das Aparições padecemos de um míope e estéril realismo:
Quê
viram? Quê aconteceu? Como Ele aparceu?... Interessa-nos muito
mais a curiosidade do investigador. Lemos os Evangelhos mais como jornalistas
do que como pessoas de fé. Nosso desejo era ter estado ali e ver tudo com
nossos próprios olhos.
Mas,
se tivéssemos estado ali, teríamos acreditado no Crucificado? Esta é a pergunta
decisiva.
Esta é a finalidade do relato de João, especialmente do conjunto Paixão/Ressurreição:
“que creiais
no Crucificado”. Aquele que não sente sua fé interpelada pelo
crucificado e pelos crucificados do mundo, não tem uma fé bem enraizada.
A
experiência pascal dos(as) seguidores(as) de Jesus revela que é na comunidade
onde se pode descobrir a presença do Ressuscitado. A comunidade é a garantia da
fidelidade a Jesus e ao seu Espírito; sobretudo, é a comunidade que recebe a
nobre missão de expandir a grande surpresa realizada pelo Pai em Jesus.
Jesus aparece no centro da
comunidade dos seus amigos e amigas, como presença de unidade, porque, agora,
Ele é para eles e elas a única referência e fator de comunhão. A comunidade
cristã está centrada em Jesus: sua saudação elimina o medo; as chagas, sinal de
sua entrega, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz; o sopro do seu
Espírito lhes reacende a alegria e a coragem; desaparece o medo da morte...
A verdadeira Vida não pode
ser tirada de Jesus nem tirada dos seus seguidores. A permanência dos sinais
de sua morte (chagas) indica a permanência de seu amor. Além disso, garante a
identificação do Ressuscitado com o Jesus crucificado. A comunidade tem agora a
experiência de que Jesus vive e lhe comunica essa mesma Vida.
O
evangelista João é o único que divide em dois o relato da aparição aos
apóstolos reunidos. Com isso personaliza em Tomé o tema da dúvida, que é
capital em todos os relatos de aparições.
Bastavam
os sinais anteriores: o dom da paz, a memória de sua entrega (mãos e lado), o
perdão, o sopro do Espírito. Mas o texto joanino continua dizendo que faltava
Tomé, precisamente um dos Doze. Não é um cristão comum aquele que estava
ausente da comunidade, mas um dos antigos companheiros de Jesus, um de seus
doze seguidores. Precisamente Tomé, um dos líderes da igreja primitiva, corria
o risco de entender a ressurreição de um modo “espiritualista”, “desencarnada”,
fora da comunidade.
Não há
experiência pascal sem um retorno à corporalidade do Cristo, que
continua sendo o mesmo Jesus da história que morreu por sua fidelidade à causa
do Reino: trazer vida em abundância a todos.
Neste
segundo encontro do Ressuscitado com os discípulos, João destaca a exigência de
“tocar”
as feridas de Jesus, para conservar assim a memória de sua paixão, descobrir
sua presença pascal e encontrá-lo nos feridos da história. “Tocar” em Jesus
significa tocar e curar as feridas da humanidade que sofre.
A fé
pascal expressa-se, dessa forma, como experiência mística (mas realíssima) do
sofrimento e morte do Messias, que continua morrendo nos crucificados e
enfermos deste mundo.
O
Ressuscitado não se apresenta com força e poder, mas com amor e a partir do
amor, exercendo o “ofício
do consolar” (S. Inácio). Por isso,
às vezes não é fácil reconhecê-lo. E, no entanto, é Ele mesmo. Aquele que foi
crucificado é o que Deus ressuscitou.
Esta igualdade fica expressa por
meio das chagas que o Ressuscitado traz em seu corpo. Mas estas chagas
são algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. As chagas são expressão de
identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado; elas são as “marcas”
da entrega e que nunca desaparecerão.
Dito de outro modo: Jesus, vencedor
da morte, não abandona a fragilidade da existência humana. A fragilidade da
carne mortal foi assumida na glória do corpo ressuscitado.
A ressurreição não O separa da
condição humana anterior. Não é a passagem a uma condição superior, mas a mesma
condição humana levada à sua culminação.
A Jesus e a nós o Pai nos acolhe
com toda nossa realidade, purificada e transformada.
Ao contemplar as chagas do Ressuscitado, somos
movidos a olhar e acolher também nossas chagas: medos, traumas, fracassos,
feridas...
Jesus, que conhece bem nossas obscuridades e resistências,
medos e bloqueios que nos habitam, se faz presente em meio às nossas vidas
abrindo as portas fechadas e pacificando nosso interior: “a paz esteja
com vocês!”.
Assim, no-lo repete, continuamente, insistentemente, pacientemente.
Ele vem ao nosso encontro e se
empenha em re-criar-nos, comunicando seu Sopro sobre nós, como o Criador
fez no princípio de tudo. Ali onde continua habitando o caos, a incerteza e a
desconfiança, Ele nos oferece alegria, paz e fortaleza. Alenta nossa fé e
renova nossas relações pessoais e comunitárias. Gratuitamente; com infinito
amor. Com o mesmo amor com que nos anunciou a Boa Nova e nos libertou de nossas
enfermidades; com o mesmo amor com que se pôs a nossos pés para lavá-los; com o
mesmo amor com que fez de sua vida uma doação radical.
A experiência do encontro com o Ressuscitado nos faz também encontrar o
verdadeiro lugar do nosso corpo em
nossa vida. Normalmente tratamos mal nosso corpo: há muito de stress, de
suspeita, medo e submissão. Sabemos muito sobre nossa mente e muito pouco sobre
nosso corpo; temos uma alma livre num corpo rígido.
A nossa vida é uma bela história de
ressurreição, um milagre de fortaleza na fragilidade que nos impulsiona
continuamente a nos despertar da letargia, a sair de nossos lugares fechados, a
colocar-nos de pé, a pisar firme sobre a terra, abandonando nossos túmulos e
fechamentos, e continuar caminhando, com a cabeça erguida e os olhos fixos no
horizonte da vida, onde se revela a Vida plena do Ressuscitado.
A este Vivente seguimos, pois Ele sempre nos
oferece a oportunidade para nos encontrar com Ele e reconhecê-lo, apesar de
nossas cegueiras, medos e pesadelos. Ele sempre nos toma pela mão para
aproximá-la de suas feridas abertas e mostrar-nos, nas marcas deixadas pelos
cravos, que a morte não tem a última palavra. Aproximar de suas feridas
reacende em nós a solidariedade e o impulso para sair de nossos espaços
fechados e entrar em sintonia com os chagados da história. As chagas do
Crucificado, por graça, nos transformam em testemunhas de sua presença em todos
os feridos e sofredores.
Que sua paz alente nosso anúncio alegre para que outros possam crer e, crendo, todas tenham vida em seu Nome!
Texto bíblico: Jo 20, 19-31
Na oração:
Abrir
espaço interno para que o Ressuscitado tenha liberdade de transitar por suas
feridas
existenciais (traumas,
fracassos, rejeições, crises...) integrando-as, ressignificando-as, iluminando-as...
-
Como ser presença ressuscitada neste mundo onde impera a cultura da morte, do
ódio e da violência...? Como se fazer próximo e “tocar” as vítimas chagadas?
- Sua fé no Ressuscitado tem implicações sociais, políticas, relacionais..., ou se revela mais como uma “espiritualidade desencarnada”, intimista, alienada...?
Nenhum comentário:
Postar um comentário