Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Sagrada Família.
“Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
É
profundamente inspirador que a liturgia cristã una intimamente estas duas
realidades: família e Natal. Nestes dias, todas as pessoas,
mesmo que a situação sanitária não permita, tem a instintiva necessidade de
agrupar-se, encontrar-se e celebrar. Brota em todos nós uma compaixão solidária
para com aqueles que, no tempo natalino, não tem com quem compartilhar. Natal e
solidão são conceitos contraditórios.
Naquela noite de Belém, Deus não só
se humanizou, mas entrou em uma família humana; “Deus se fez família”. Com sua
presença, diviniza a família. E toda família é divina se é verdadeiramente
humana.
A
família de Nazaré é a escola do
Filho do Homem, rodeado de gente comum, com sua paisagem natal, como um entre
tantos; sua linguagem, seu modo pessoal, sua conduta, sua fé...
Para Jesus, Nazaré é um tempo de aprendizagem: observar o que acontece ao seu redor: cala, vê, escuta nesta escola. Exercício de preparação diante das urgências do Reino. “Tempo de guardar no coração”.
Sabemos
muito da vida pública de Jesus: nazareno, filho de um carpinteiro, pobre,
livre, compassivo, comprometido com a vidar, que fazia milagres e falava com
uma autoridade inegável, que anunciava a utopia do Reino, que logo foi
crucificado como o pior dos criminosos, e cujos seguidores asseguraram que
tinha ressuscitado... Não podemos negar que Ele mudou a história da humanidade.
Mas, antes de tudo isto, houve 30 anos de vida desconhecida,
escondida, silenciosa.
Temos
poucos dados sobre grande parte de sua vida no seio de uma família humilde em Nazaré,
um povoado que não gozava de boa fama. Assim
viveu Jesus, aprendendo a ser humano na escola da família e da comunidade. Se
não entendemos que Jesus foi plenamente humano é que não aceitamos a
encarnação.
Mas, há algo que podemos trazer à
luz daqueles 30 anos “ocultos”: que na lentidão do dia-a-dia, da monotonia e do
lar, Deus preparava o caminho. Pouco a pouco, a fogo brando. Em meio à rotina
de uma vida simples, Jesus foi fazendo-se perguntas, esperando as respostas,
ouvindo o que seu coração lhe dizia e discernindo o que o Pai queria dele. Ano
após ano, em um pequeno lugar, detrás de uma vida que nada tinha de diferente
das outras vidas. Até que chegou o momento de Deus.
Cozinhar a fogo lento é bem difícil neste mundo de pressas e imediatismos. E hoje, mais do que nunca, se fazem necessários os “tempos de Nazaré”, esses tempos de aparente rotina nos quais se alimentam os sonhos, onde se forjam as vontades, se domam as impaciências, se aclaram os caminhos, se discerne a Voz, se dissipam as névoas do caminho... Em definitiva, esse tempo onde nosso canto e o de Deus se afinam juntos para formar uma única melodia e fazê-la soar no mundo.
As grandes histórias são tecidas na trama do cotidiano; os “tempos”
de Deus não são os da eficácia, da produção, do ritmo estressante... Também são
os tempos do silêncio, da rotina inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo
crescimento pessoal demanda previamente tempo, ritmo, reconhecimento e
aceitação da própria verdade, sólidos fundamentos sobre os quais podemos
construir nossa pessoa.
Jesus desenvolveu sua vida humana como qualquer outro ser humano. Como homem, precisou passar pelo processo do amadurecimento lento, lançando mão de todos os recursos que encontrou em seu próprio interior e ao seu redor. Foi um homem inquieto que passou a vida buscando, procurando descobrir quem ele era em seu ser mais profundo. Sua experiência pessoal o levou a descobrir onde o Espírito do Pai estava fazendo brotar o “novo” da Salvação, e entrou por esse caminho de libertação.
Jesus,
no cotidiano familiar, nos revela que Ele é o homem das “grandes sínteses”: entre
o particular e o universal, entre o Deus da intimidade e os irmãos da
convivialidade, entre os momentos de cuidado de si e as ocasiões de solidariedade,
entre sua interioridade e sua abertura a todos sem restrição, entre ação e
contemplação...
Jesus mesmo foi este personagem
instigante, que fez brilhar a “novidade” de Deus nas vilas e
campos da Palestina. Ele nos fala de “sínteses” com o vigor de alguém que
é inspirador para todos nós: Ele sintetiza a ternura de um irmão, a lucidez
de um profeta e a revolução de um
Messias.
Foi
no cotidiano familiar que Ele
aprendeu, aos poucos, a ampliar seus horizontes, seus interlocutores e o
sentido de sua missão. É a vida
cotidiana que nos revela que Jesus foi uma pessoa profundamente humana
e humanizante,
que vivenciou um processo de maturação, de releitura de suas tradições e
assimilação do novo, até chegar à proposta original da Boa-Nova.
Ali, no ambiente familiar Jesus se destaca por sua docilidade, discrição, familiaridade, aprendizagem, bondade, sensibilidade, vivência da fé no Deus Providente... que aprendeu de Maria e de José.
Jesus, em Nazaré, continua sendo luminoso e inspirador
para todos nós, num momento em que as transformações são rápidas e exigem de
nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé...
A família
de Nazaré evoca o dia-a-dia do nosso seguimento de Jesus, onde os
acontecimentos extraordinários são pouquíssimos. Chega um momento em que a vida
cristã parece muito rotineira. Nazaré alimenta o seguimento de Jesus no
cotidiano e comum da vida. Nazaré é a escola na qual aprendemos a descobrir a
presença de Deus na vida “tal como ela é”, no trabalho das pessoas e nos rostos
daqueles que estão ao nosso lado. No lugar onde nos cabe viver é onde o Senhor
nos ama e nos convida a descobri-Lo.
São muitos os lares que vivem a dor
da ruptura e separação. No entanto, a casa familiar continua sendo o lugar
entranhável, a referência segura, a possibilidade restauradora.
Lar: lugar da surpresa, do novo, do desafio... onde a interação
pais-filhos possibilita o desenvolvimento e amadurecimento natural de todos.
Lar: do “lugar estreito” ao “lugar
amplo” onde é possível a expansão de todos.
Regado pelo amor, o lar torna-se espaço aberto ao futuro.
Mas Nazaré
é também um alerta contra a rotina. Cada dia é preciso renovar o seguimento.
Por isso Nazaré é o lugar da perseverança, da fidelidade, de dizer cada dia um
novo “sim” ao Senhor. No cotidiano há momentos favoráveis e momentos de crise.
Mas o cotidiano é a oportunidade para ampliar o olhar para a frente. Nazaré
pode ser um lugar de esperança, de onde se pode vislumbrar um futuro melhor.
Nazaré evoca também a comunhão dentro da diversidade. Num pequeno povoado as pessoas são tão diferentes como numa cidade grande, mas a vulnerabilidade delas nos faz despertar a consciência da necessidade que temos uns dos outros. Numa comunidade pequena os problemas de um afetam os outros. Suas fragilidades se fazem fortes quando se apoiam mutuamente; suas solidões que se unem criam comunhão. Vivamos em nossas famílias a grandeza de sermos plenamente humanos!
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na
oração:
- Descubra o significado profundo da sua
vida cotidiana mais simples:
trabalhos, relações, família...
O ambiente familiar, quando espaço
humanizador, integra a vida cotidiana de Nazaré com os desafios de Jerusalém
(família que se alarga, sai de si, se compromete, abre-se às causas humanas...)
- Como é sua família? Vive
comprometida buscando uma sociedade melhor e mais humana, ou fechada
exclusivamente em seus próprios interesses? Educa para a solidariedade, a paz,
a sensibilidade para com os necessitados... ou só ensina a viver para o consumo
insaciável, o máximo lucro e o esquecimento dos outros?
- No seu ambiente familiar cuida-se da fé, dos valores do Evangelho... ou se favorece apenas um estilo de vida superficial, sem metas nem ideais...? É espaço instigante, de crescimento, aberto ao novo e diferente... ou ambiente atrofiante, sufocante...?
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