Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do primeiro dia do Ano Novo, em que se celebra a confraternização universal e a solenidade da Santa Mãe de Deus. Desejamos a todos uma inspirada "travessia" em direção ao Novo Tempo de Deus.
“Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino” (Lc 2,17)
“Vede
que realizo algo novo; já está brotando, e vós não percebeis?” (Is 43,19)
Foi essa a experiência vivida pelos pastores
quando se deslocaram até à Gruta de Belém: viram a “eterna Novidade
de Deus” revelada no rosto de um recém-nascido; é do interior de uma
gruta que surge um novo tempo, um novo modo de viver, uma nova maneira de olhar
as pessoas e a realidade, um novo compromisso... enfim, uma nova humanidade.
Podemos imaginar o momento do
primeiro olhar dos pastores no encontro com o Menino Jesus... Surpresa,
espanto, comoção, gratidão, alegria…!
Naqueles olhos que se entrelaçam e
se contemplam mutuamente, descobre-se o novo olhar de Deus sobre o ser
humano, e o novo olhar do ser humano sobre Deus e sobre os irmãos.
Deveríamos, ao longo deste novo ano
que se inicia, situar-nos diante de Deus desse modo, com mais frequência,
deixando os olhos, os d’Ele e os nossos, se falarem silenciosamente.
O cristão é aquele que conserva
límpido os seus olhos interiores,
prontos para perceber a maravilha que está sendo gestada em
sua vida e ao seu redor. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto
de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola,
com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
Nesse “estado interior”, tudo é sempre novo. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Não se trata da ação de um Deus que intervém a partir de fora, mas do reconhecimento de que, sempre e em todo momento, tudo é novo, pois “Deus é Presença” em tudo e em todos. Mas só pode saborear isso quem sai do nível da superficialidade, na qual está hipnotizado ou enfeitiçado pelas exigências do próprio ego, e se situa naquela dimensão profunda que é essa mesma Presença.
A capacidade de assombro dos pastores
pode ser uma boa disposição para iniciar o Ano Novo. O contrário do assombro é
a rotina; o “eu já sei” ou “sempre foi assim” nos faz imunes ao milagre cotidiano
da vida e seus sinais. Precisamos continuar aprendendo a olhar com profundidade
a realidade em seus gestos peque-nos e dirigir nossa atenção para aquilo que,
muitas vezes, nossa lógica racional, invisibiliza ou despreza. Talvez, só assim
entraremos em sintonia com o mistério do Amor que tudo habita e faz tudo novo.
A maior “novidade” que ninguém
podia esperar é colocada nas mãos dos pobres e simples, aqueles que nunca
tiveram uma oportunidade de serem escutados e valorizados. Mas,
surpreendentemente, serão eles os mensageiros autorizados da transmissão da
Novidade de Deus.
Aqueles pastores, surpreendidos em
meio ao trabalho, são convidados a sair, a deixar sua cotidianidade para
abrir-se à novidade de um Deus que irrompe em suas vidas para transformá-las.
Ao chegar no lugar onde estão Maria, José e o recém-nascido, imediatamente eles
os reconhecem e sua alegria se converte em proclamação entusiasta daquilo que
viram e ouviram. Seu anúncio é tão convincente que todos aqueles que os ouvem
ficam impactados por seu testemunho.
Aquela noite, à margem dos grandes centros e dos interesses humanos de poder e vaidade, revelou-se como uma noite cheia de “encontros e conexões”, onde deu-se início a uma nova rede de comunicação acessível a todo aquele que, de boa vontade, deseja entrar nela. É um sistema protegido pelo Espírito do Senhor, de alta fidelidade, que nunca cai, mas que é preciso entrar nele livre de vírus: do ódio, da intolerância, do preconceito, da busca de poder, vaidade...
A imagem dos
pastores pede de todos nós uma atitude
de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu
lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois,
re-descobrir com urgência o encontro
humanizador como valor ético e como hábito permanente de vida. Somos cha-mados
a viver o encontro como um estilo de
vida, fundado no encontro de Deus com a humanidade.
O encontro, que nos faz sair
de nós mesmos, nasce da compaixão e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade
criativa para superar toda divisão e conflito
A experiência da Gruta, lugar onde se visibiliza o “novo” de Deus, nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
Esta é a
dura contradição que estamos vivendo neste início de ano: se, estar separados
fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a
pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que
essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância
sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias
que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...
Não podemos deixar que o mistério natalino se dilua
em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca,
devemos celebrar e recordar que juntos, orientados pela Luz que procede de uma
Gruta, poderemos enfrentar, com criatividade, toda e qualquer crise que nos
venha. Talvez, esta pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crer e
viver isso, de verdade: de transformar declarações ocas em atos sólidos, de
resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra: proximidade.
Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que estão à frente no combate à pandemia, com aqueles que foram excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a solidariedade é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
À luz da
Gruta de Belém podemos afirmar: fisicamente distanciados é quando nos sentimos
mais próximos.
Para
realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Aquele que
nasceu nas periferias da humanidade exige de nós uma dinâmica continuada, um
colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos nos situar diante da
Gruta da Vida a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o
despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da
realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para
olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a
presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita.
Neste dia, fazemos memória dos humildes pastores
que se deslocam para uma gruta e vivem um encontro surpreendente; eles se fazem
próximos d’Aquele que tomou iniciativa para se aproximar de toda a humanidade.
Tal mistério deve nos inspira a provocar encontros e diálogos que ajudem a
integrar, a re-unir, a re-ligar, a articular o tecido comunitário. Há tantas
vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade,
o Nascimento de Jesus provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões
alienados de relacionamento para se expandir em direção a uma nova forma
relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho
do “Reino de Deus”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na
oração:
Entrar
na Gruta requer uma atitude de reverência para deixar-se impactar pelo Deus
“que se faz sempre Novo” e que nos move a sonhar e construir o “novo” na nossa
história.
- Qual é o “novo” que você está vislumbrando no seu horizonte pessoal, social, familiar, eclesial...?
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