“Vai lavar-te na piscina de Siloé” (Jo 9,6)
Tem-se dito, e com razão, que a espiritualidade
cristã é uma “espiritualidade de olhos abertos”.
Na realidade, isso vale para toda espiritualidade
genuína, ou, em outras palavras, não seria verdadeira aquela espiritualidade
que nos alienasse ou nos isolasse da realidade, em particular da realidade mais
dolorida e sofredora. Há motivos para suspeitar de uma espiritualidade que não
desemboca na compaixão, entendida esta como a capacidade de entrar em sintonia
com o outro que sofre, e que se traduz numa ação eficaz a seu favor.
A CF deste ano nos apresenta o samaritano como
personagem inspirador na nossa vivência da espiritualidade cristã: “Viu, sentiu
compaixão e cuidou dele”.
Todos nós, de uma maneira ou de outra, somos cegos
de nascimento, porque nascemos e crescemos em meio a sistemas sociais e
religiosos que domesticaram nosso olhar, nos educaram a ter um olhar avesso e
atrofiado. A cura do cego de nascimento,
apresentado pelo evangelista João, é o sinal que nos fala daquilo que o Senhor
nos oferece: caminhar na claridade do dia.
Este homem está cego, já que nasceu no mundo
fechado e ao longo de toda a sua vida aprendeu a ver com o olho cego da sinagoga.
Jesus vai curá-lo através de um gesto de íntima proximidade; não realiza um
espetáculo para provocar espanto, nem diz palavras ininteligíveis. Simplesmente
agachou-se, cuspiu no chão e com sua própria saliva fez um pouco de barro; com
a gema de seus dedos tocou com ternura os olhos do cego e o enviou a lavar-se
na piscina de Siloé. É uma cena de re-construção de uma pessoa quebrada e que
nos recorda o primeiro barro com que Deus oleiro criou o primeiro ser humano.
No cego curado se revela a ação permanente de Deus:
despertar a luz escondida em nosso interior, ativar a vida para dar-lhe
amplitude maior.
Com
o relato do cego de nascença, o evangelista João está propondo um processo
catecumenal que conduz o ser humano das trevas à luz, da opressão à liberdade,
da identidade ferida à identidade reconstruída, da exclusão à participação.
Mas, para isso, é preciso deslocar-se, fazer a travessia e descer em direção a Siloé, lugar das águas re-criadoras. Este texto remete à experiência
fundante da vida.
O
caminho de “descida” é o caminho da vida. Siloé está situada na parte
baixa da cidade, afastada daqueles que, na parte alta, controlam e manipulam
religião e as pessoas, através da centralidade da lei, do culto, da tradição...
Ali não há possibilidade da vida se expandir e se expressar em todas as suas
potencialidades.
O reservatório de Siloé estava
situado fora das muralhas, na parte baixa de Jerusalém e recolhia a água da fonte
de Guijón e que chegava até ele conduzida por um canal-túnel (daí o nome
aramaico de “siloah”= emissão-envio, água emitida-enviada). Era uma maravilha
de engenharia, mandado construir pelo rei Ezequias no ano 700 ac, para fazer a
água chegar à cidade.
No final daquele túnel o cego se
faz presente, lava-se, assume sua vida, torna-se independente: um novo
nascimento. Agora ele começa a acreditar em si mesmo, em seu valor como
ser humano, em sua capacidade de ver e de dar direção à sua vida; assume sua
condição humana e deixa de se sentir escravo dos outros, controlado por pais e
mestres, como um mendigo inútil; na sua liberdade, ele agora pode assumir sua
vida, decidir, dizer, afirmar-se...
Inspirados
no evangelista João poderíamos dizer: a doença é a manifestação da perda do
contato do ser humano com sua fonte divina. As duas narrativas de cura mais
importantes no 4º. evangelho, ocorrem no tanque de Betesda e no reservatório de
Siloé. Quando o ser humano é separado de sua fonte divina, ele adoece, e a cura
acontece, quando esse contato com a fonte interior é reestabelecido.
Para
que isso aconteça, Jesus não precisa levar o doente até a piscina de Siloé;
bastam o encontro com Ele e a força de Sua palavra para reconectar o enfermo
com sua fonte profunda, da qual estivera separado.
Jesus reconstrói o cego quebrado em
sua dignidade, mas motiva-o a assumir sua responsabilidade, deslocando-se ao
reservatório de água de Siloé e rompendo sua dependência para com os fariseus e
sacerdotes que o oprimiam, mantendo-o preso à sua situação de cegueira
existencial.
O apelo de Jesus é para que o cego
seja ele mesmo, em liberdade; com seus gestos e com a força
de sua palavra, Jesus despertou no cego a mobilidade
e independência.
Nesse sentido, caminhar em direção
a Siloé é descer em direção à própria humanidade, ao mais profundo de si mesmo,
para lavar-se no manancial das águas puras.
O cego seguiu as instruções, recuperou a vista e atingiu a integridade humana: passou da morte à vida, da
opressão à liberdade.
Todos sabemos que o ser humano é dotado
de recursos internos inesgotáveis. Cada um possui dentro de si uma fonte de
forças reconstrutoras, renováveis, resilientes. Mas, muitas vezes, é preciso de
um estímulo externo para reconectar-se com essa fonte.
Sabemos e sentimos, no mais profundo, o
que é mais saudável e vital para nós, porém precisamos do encorajamento externo
para voltar a confiar em nossas próprias potencialidades.
O evangelho deste domingo nos ensina o caminho através do qual descemos
a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui
experimentamos a unidade de nosso
ser; aqui é o lugar da transcendência, onde
nossa transformação realmente acontece.
Tal experiência significa abertura, dilatação do
coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do
rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
A experiência
de oração, junto à Piscina de Siloé, nos conduzirá à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida,
impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água
viva.
Sentados à beira da fonte silenciosa, poderemos, também nós, atingir experiências imprevistas
e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes
novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do
nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o
outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão
sentido e consistência ao nosso viver.
O
manancial de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-lo,
abrir-nos a ele, fazer-nos transparentes a ele e vivê-lo cada dia...,
constituem a plenitude de nossa realização.
A “descida” até o
mais profundo de nós mesmos, requer que deixemos para trás um contexto de
competição, de rivalidade e vazio, de fechamento e rigidez, de superficialidade
e isolamento...
O encontro com a “água
viva” abre futuro novo,
motivando-nos à tomada de decisões, a
assumir um estilo de vida coerente com aquilo que encontramos no fundo do nosso
próprio coração.
Texto bíblico: Jo 9,1-38
Na oração:
Sente-se junto à sua
Siloé interior; mergulhe na “fonte” que corre, desça às “águas” do
amor do Pai, deixe-se molhar pelas Palavras do Filho e receba a força
e a luz do Espírito.
- Na sua vida, o que
está bloqueando, impedindo a manifestação das melhores forças, inspirações,
criatividade?
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