“... quando se aproximaram de Jerusalém” (Mc 11,1)
A experiência
espiritual da Quaresma implica a travessia do deserto: tempo de despojamento,
de pobreza, de confiança em Deus, de esperança e horizontes abertos... O deserto
quaresmal desemboca na cidade.
E todos sabemos que
a cidade é o contrário do deserto:
autossuficiência, segurança, limitação de horizontes, acomodação, conflitos... Cidade moderna, globalizada pela tecnologia fria e
sem alma, amordaçada pela funcionalidade e pela utilidade, com uma política
submetida ao mercado, à produção e consumo, cidade estendida e sem muros de
contorno, mas com horizonte atrofiado, aparentemente sem Reino de Deus à
vista...
Hoje temos esvaziado a dimensão do deserto
em nossas vidas e nos adaptamos de tal maneira à cidade e às suas exigências
técnicas, produtivas, aos seus programas e solicitações... que acabamos nos
sentindo passivos diante dela.
O tempo quaresmal nos possibilita manter aberto o acesso ao deserto, que
cria um espaço interior vazio, onde se faz realidade um encontro surpreendente
com Deus; a partir daí, mesmo em nossa atribulada vida na cidade, podemos
recuperar a liberdade do chamado profundo e redescobrir o caminho do Seguimento
de Jesus, que começa e termina nos “aforas” da cidade.
Jesus entrou na
cidade de Jerusalém com seus(suas)
seguidores(as) e não foi uma decisão fácil porque implicava o alto risco de ser
incompreendido e rejeitado.
Como bom judeu,
Jesus subiu a Jerusalém, cidade de Davi (do Messias) em nome dos pobres, com um
grupo de galileus, para anunciar e preparar o Reino. Subiu na Páscoa, porque
era o momento propício (hora do Reino), tempo para que os homens e as mulheres
pudessem se encontrar a se comunicar, em gesto de paz, a partir dos mais
pobres. Subiu a Jerusalém porque estava convencido de que sua mensagem era de
Deus e porque Deus lhe havia confiado a missão de instaurar, com sua palavra e
com sua vida, o novo Reino dos pobres, que já havia começado na Galileia e que
devia estender-se, desde Jerusalém, passando de novo por Galileia, para todos
os homens e mulheres da terra.
Jesus tinha a
certeza de que Deus falaria através do que fizessem (ou não fizessem) com Ele
em Jerusalém, pois esta era a última oportunidade para a cidade da promessa e
do templo.
Entrou na cidade santa para que finalmente ela se transformasse na “cidade de Deus”, o lugar de encontro
do ser humano com Deus, de Deus com todos os seres humanos, e estes como
irmãos.
E pela primeira vez Jesus se deixa aclamar: “Hosana ao filho de Davi”. Desta vez não recusou o papel de liderança, mas deu um outro sentido,
porque não se valeu disso para conquistar o poder e sim para desmascará-lo. Não
fez pactos militares ou políticos, porque Deus não atua por meio do poder, mas
de um modo gratuito. Dessa forma entrou na cidade de Jerusalém, desarmado e
cheio de esperança, renunciando todo poder sobre ela, todo domínio, toda força,
sem espadas, sem exército... Não entrou montado a cavalo como os grandes, mas
num jumentinho; não entrou rodeado das grandes autoridades religiosas e
políticas pois Jesus se sentia muito
melhor acompanhado das pessoas simples do povo; não usou traje de gala, mas as vestes rudes de
um peregrino; não lhe fizeram nenhum arco de flores pois a Ele lhe bastavam os
mantos do povo e os ramos cortados das árvores; entrou provocativamente como
mensageiro da concórdia e da paz em meio a aplausos e hosanas do povo peregrino
que veio à festa.
Jerusalém inteira fica alvoroçada. Os donos do poder, político e
religioso, sentem-se ameaçados.
Não devemos perder o deserto que carregamos dentro de nós;
por isso, só podemos “entrar na cidade” seguindo a Jesus
Cristo que é fiel à causa do Reino, com o risco da Cruz (Semana Santa), porque
a Cruz assume, radicaliza e eleva o deserto. Jesus vai morrer nos “aforas” da
cidade, nesse limite fronteiriço entre o deserto e Jerusalém, nesse espaço que
só Deus pode preencher e onde podemos enraizar nossa confiança n’Ele. A Cruz se
eleva e abraça ambas realidades.
O(a) seguidor(a) de Jesus é um(a) apaixonado(a) do deserto e que nunca
se “encaixa” nas estruturas da cidade; sua presença sempre rompe com as
muralhas, alargando espaços e acolhendo o diferente.
Se carregamos o deserto dentro de nós, estaremos vazios de nós mesmos,
de nosso ego, de nossas visões fechadas, de nosso monopólio da verdade. Só
assim nossa presença na cidade vai se revelar inspiradora e provocativa, como a
presença de Jesus em Jerusalém.
Embora
muitas realidades urbanas nos queiram impedir o encontro com Deus, devemos
reconhecer na cidade a presença d’Ele, muitas vezes de um modo imperceptível,
como o sol está presente nos dias nubla-
dos.
Deus está sempre presente na histórica e na cultura de nosso tempo. Ele
continuamente vem ao nosso encontro. O cristianismo é a religião do Deus com
rosto humano e urbano que nos busca apaixonadamente em Cristo. Por isso, não é
necessário que levemos Deus para a cidade; Ele já está ali presente, em meio às
alegrias e dores, esperanças e sofrimentos nela.
A presença de Deus não é percebida à
plena luz do dia; uma pessoa pode viver na cidade e perfeitamente ignorar,
negar, desmentir ou simplesmente desconhecer a presença divina nela.
É preciso buscar a Deus, “descobrir
Deus na cidade”, como se estivesse encoberto, oculto, escondido no espaço
urbano. Uma aguda sensibilidade religiosa capta a presença de Deus também nos
sinais de sua ausência. O “Deus escondido” se apresenta onde é marginalizado.
Deus acompanha a todos em seu aparente ocultamento; pronuncia sua voz em seu
silêncio; revela sua onipotência em seu despojamento; mostra sua máxima bondade
em sua mínima expressão, do presépio à Cruz.
Este
é um dos grandes desafios na grande
cidade. Romper com o individualismo e o poder que marcam as relações entre
os homens e as mulheres, para criar um marco novo, humanizador e aberto a
Deus Pai, através de pequenas comunidades. Comunidades
daqueles que confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas – as mesmas esperanças, os mesmos sonhos, a
mesma utopia do Reino.
É,
sobretudo, em torno da mesa que as
comunidades se constituem; com o gesto do “re-partir”, estabelece-se uma rede
de relações entre as pessoas que
aceitam conspirar, co-inspirar, em torno do fascínio da proposta de
Jesus. Na verdade, a Eucaristia vivida é o sal, o fermento, a luz e a alma da cidade.
Assim
é a cidade que Deus deseja: uma praça de encontro e uma mesa celebrativa para
todos.
Texto
bíblico: Mc
11,1-10
Na
oração:
As
cidades não são pessoas, mas tem sua identidade e personalidade próprias;
algumas tem múltiplas personalidades. Elas existem no espaço e no tempo.
Há
cidades acolhedoras, que dão as boas-vindas, que parecem se preocupar com cada
habitante, alegram-se com o fato de que os moradores ali se sintam bem; são
cidades humanizadoras...
Há
cidades indiferentes, aquelas que dá no mesmo que as pessoas estejam ou não
nelas; cidades que seguem seu rumo, que ignoram seus habitantes...
Há
cidades que são más, violentas, que parecem perdidas, que dão a sensação de que
seriam mais felizes em outro lugar... Algumas grandes cidades se propagam como
um câncer que devoram tudo em sua passagem, absorvem cidades pequenas e povoados,
destroem culturas e hábitos de vida, esvaziam regiões que em outros tempos eram
prósperas... Cidades desumanizadoras.
Mas
somos nós que damos uma feição às cidades; cada cidade revela o rosto e o
coração de seus moradores... Como é sua cidade? É espaço de encontro, de
comunhão, de qualidade de vida?
Diante
dos dramas de sua cidade (violência, exclusão, divisão...), qual a sua reação?
acomodação, alienação? Indiferença? Ou, compromisso? Envolvimento em projetos
humanizadores? Presença inspiradora e facilitadora de encontros?...
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