“Pois Deus
amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito...” (Jo 3,16)
O evangelho
indicado para este 4º. dom. da Quaresma nos faz retomar o verdadeiro sentido do
Mistério da Encarnação. Pode parecer
estranho, uma vez que a liturgia quaresmal nos motiva e nos prepara para viver
os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Mas os
“mistérios” da vida de Jesus não estão separados: trata-se de um só e único
“Mistério”, qual seja, do “Deus que se humaniza” para redimir a humanidade
perdida.
O que
aconteceu no mistério da Encarnação é algo surpreendente e cheio de novidade.
Não só
Deus ama radicalmente a sua criatura, senão que se “abaixou” e se fez um de nós
em Jesus: a carne é digna de Deus, o mundo é digno de Deus, a Encarnação é a expressão mais profunda
de que somos de Deus. Com isso, rompe-se o medo do corpo, o medo do humano, o
medo do diferente, o medo do mundo, o medo de sentir e experimentar a condição
humana, com sua grandeza e fragilidade.
Ao se revelar Manancial e Fonte de nossa
humanidade, não é mais possível crer que o Criador seja nosso
rival, mas amigo; não é possível mais aceitar que Ele seja insensível, mas
providente; que seja nossa ameaça, mas alívio; que seja nossa diminuição, mas plenitude;
Ele não é o “juiz distante” mas o “Deus encontro”, fonte de nossa liberdade...
O relato do
Evangelho de hoje nos revela a atitude de Deus no seu encontro com o mundo, marcado por uma atitude amorosa.
Em Jesus
Cristo, nos fazemos conscientes da relação que há entre todos os seres humanos
e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou
próximo um Deus cuja essência é encontro
(cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude
e a transformação humana consiste “entrar no fluxo do encontro intra-trinitário”, fazendo-nos encontro e re-construindo as relações rompidas.
Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu
mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para
expandir-se em direção a um novo encontro com tudo o que existe; tal encontro é o prolongamento do encontro
trinitário e concretização do sonho do Reino de Deus.
Inspirados
no evangelho deste domingo, contemplemos, com o olhar do Deus Amor,
nosso mundo fragmentado, vendo as diversidades em conflito que geram o
sofrimento, a exclusão, a morte...
Entrar no
fluxo do “amor
compassivo e descendente de Deus” ativa
também em nós uma maneira cristificada
de ser e de estar no mundo; nossa
presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente,
santo e luminoso em Deus. O “amor descendente” nos expande e nos lança em
direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para
sermos “contemplativos nos encontros”.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê.
Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor,
a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida
com os irmãos e irmãs no mundo, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos
e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.
O Tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos capacita
para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa.
Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um
olhar novo, entramos em comunhão com
a realidade tal como ela é. É olhar o
mundo como “sacramento de Deus”; um olhar gratuito e desinteressado,
que nos abre a uma atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta
encontros instigantes.
O (a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do
mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra,
aí se encarna e aí revela os traços
da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como ameaça
ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz
encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o
lugar da receptividade,
da oferenda e do encontro
inspirador.
Para realizar esta nobre missão, não podemos
permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica continuada, um
colocar-nos a caminho em direção às margens.
A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade
são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em
mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de
hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de
situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional.
Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente
corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais
impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas
pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo,
complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como
notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas
não sente e nem se compadece por elas.
Encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar
outros relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar a partir
de um horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e
deixar-nos impactar pelos valores presentes no outro. Escutar de tal maneira
que o que ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos
afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa
própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos e
diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso
coração.
O encontro com o diferente
possibilita também o encontro consigo
mesmo, ou seja, encontrar a própria verdade. Isso implica em se perguntar pela
própria identidade, por aquilo que dá sentido à própria vida, o impulso por
viver de uma maneira cristificada, conforme os valores do Reino.
Para que haja verdadeiro encontro
com o outro, o deslocamento ex-põe quem se desloca, deixa-o vulnerável e “contaminado”
pela realidade que encontrou. Quando alguém se desloca e se aproxima de
realidades diferentes, é para encontrar, encontrar-se e encontrar
Aquele que veio iluminar todo encontro.
Como
seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas
aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e
contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença
ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para encontrar-nos com Ele
e trabalhar juntos por seu Reino. O mundo precisa de místicos(as) que
descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o
seu Reinado, trabalhando cada dia como ami-gos(as) de Jesus que passam, observam,
curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os es-forços humanos. Apaixonados por Deus, nos
apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, simplicidade,
profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala do novo rosto do Deus que
buscamos com desvelo. E amando e investigando tudo o que é do mundo, adoramos o
Deus que habita em tudo.
Texto
bíblico: Jo 3,14-21
Na oração:
“Pai de bondade,
para descobrir tua proposta original, ensina-nos a contemplar o mundo
inteiro com o teu próprio olhar, respeitoso e fiel à nossa realidade”. (Benjamin Buelta)
-
Evangelizar nossos sentidos, muitas vezes atrofiados e limitados, para que eles
sejam mediação cristificada e assim viver encontros verdadeiramente
humanizadores.
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