“Se o grão de trigo morre, então produz muito
fruto”
(Jo 12,24)
Caminhamos para o final da Quaresma, e o
evangelho deste domingo nos situa diante de uma experiência radical de morte
por amor, como o grão de trigo. Esta é uma experiência universal: só o trigo
que “entrega” sua vida é fecundo: multiplica-se em sementes na espiga, transforma-se
em alimento (pão compartilhado), alimenta vidas.
Estamos no cap. 12 de S. João; depois da unção em
Betânia e da entrada triunfal em Jerusalém, e como resposta aos gregos que
queriam vê-lo, João põe na boca de Jesus um pequeno discurso sobre a Vida. Vida maiúscula que só pode ser
alcançada quando se entrega em favor de tantas vidas feridas e excluídas.
O evangelho deste domingo nos situa
diante da lógica inexplicável do Amor: “perder” a vida por amor é a certeza de
“ganhá-la”; morrer a si mesmo é a verdadeira maneira de viver, entregar a vida
é a melhor forma de recebê-la...
Perder-ganhar, morrer-viver, entregar-reter,
doar-receber..., parecem dimensões ou realidades contraditórias, mas captar a
profundidade da verdade contida nesta “contradição aparente” é descobrir o
Evangelho.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque
na vitória da Vida entregue, ela ganha sentido, avança, como uma
torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais
escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas
respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem
a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa
humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude.
Ela é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que
impede o germinar dessa vida, embora ela esteja presente dentro de cada um de
nós. Amar é romper a casca para que a vida se expanda na doação. A morte do falso
eu é a condição para que a vida se liberte.
Participando da morte de Jesus, podemos
também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega,
de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a
tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e
proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma
oferenda gratuita em favor da vida dos outros.
Por si mesma, toda vida humana é fecunda, é
potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente do trigo há
vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano
encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se
plenificarem.
A condição
da fecundidade é saber morrer a muitas coisas: auto-centramento, busca de
poder, vaidade...
E esse processo de mortes de tudo aquilo que
limita, que atrofia e isola..., não é o fim da vida, mas sua plenitude; esse
caminho permanente de esvaziamento do ego, para viver a entrega aos outros, não
significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação; pois a vida não
deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro,
interação, comunhão... Desperdiçar a vida é travar a existência; é trágico que
alguém viva na superficialidade sem ter acesso à sua riqueza interior. Quem
conhece o valor da vida não se limita a viver de maneira “normótica”
(normalidade doentia)
Precisamos abandonar nossas medidas
de segurança, ser liberados do domínio cego do ego, para que possa emergir e
brilhar o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. “Não é o
centrar-se em si mesmo que
confere dignidade à existência, mas o des-centrar-se, o reestruturá-la em favor
dos outros” (L.
Boff). “Não
sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20).
O essencial não é encontrar um caminho para
alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”. A vida aumenta
quando compartilha e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade.
De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são
os que deixam a segurança do conhecido e se dedicam apaixonadamente à missão de
comunicar vida aos outros.
O Evangelho de hoje nos ajuda a descobrir que a
preocupação doentia para com a própria vida atenta contra a qualidade humana e
cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade:
alcança-se a maturidade da vida à medida que ela é entregue para possibilitar
vida a outros.
“Morre e transforma-te” (Goethe) Somos
seres que passamos por contínuas transformações.
Tudo muda. Muda o nosso
coração, nossa mente se abre ao novo, nossos sentidos se expandem, nossos
encontros com os outros revelam-se criativos e inspirados... Reagimos como
aquelas pessoas que tiveram uma experiência limite da morte (por enfermidade,
acidente ou por ter superado uma morte certa); elas experimentam uma mudança
radical em suas vidas. Sua atitude diante da vida é totalmente diferente; vêem-na com olhos novos:
captam muitos detalhes que
antes escapavam de sua atenção, vivem intensamente, amam com mais paixão,
prestam atenção a muitas coisas que lhes passavam desapercebidas; tem um
comportamento diferente para com os outros; há, nestas pessoas, mais ternura,
são mais sensíveis à dor e à injustiça.
Ao apreciar o presente da
vida, vivem como se fossem ressuscitadas; crêem que, amando mais a vida, se
afastarão mais da morte e resistirão às hostilidades do mundo presente.
E, no entanto, continuam
vivendo na mesma casa, fazendo as mesmas coisas..., mas, com outra sensibilidade,
com mais criatividade e doação.
Para quem se deixa afetar profundamente pela
experiência quaresmal, é impossível não ser movido(a) a viver bem a vida,
a valorizá-la e a coloca-la a serviço. O convite de Jesus é para
“perder” nossa vida, não afeiçoarmos egoicamente a ela e abrir-nos para receber
uma Vida maior, nossa verdadeira
vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, deixar de apegar-nos a
nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa autoafirmação... para que Deus possa
entrar e atuar em nós.
Aquele que “quer salvar sua vida”, ou
seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se
envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede
uma presença diferente..., esse “perderá
sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive bem
comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente,
economicamente, socialmente...!
Mas aquele que por amor ao Reino se desinstala,
acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua
a dor do outro... esse “ganhará
a vida”. Sua vida
se transformará em Vida. Libertam o
mundo todos aqueles e aquelas que fazem de sua vida uma doação, um
oferecimento. Assim deixam passar por eles(elas) o que é Deus, puro Dom de Si,
Amor que não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e
mulheres que foram presença compassiva e, à maneira de Jesus, consumiram suas
vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua
presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver
em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem brilho algum,
sem vozes que a proclamassem; foram como o fermento silencioso que se
dissolveram na massa para fazê-la crescer.
Texto bíblico: Jo.
12,20-33
Na oração:
Somos grãos
de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua
entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.
Aprendamos a
morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão
da eternidade.
- “Se
a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
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