“E todos os que ouviram os pastores
ficaram maravilhados com aquilo que contavam” (Lucas 2,18)
Mais um novo Ano de Graça se inicia, agora sob
o impacto de uma proclamação: Deus é
Misericórdia e nossa vocação cristã é viver
misericordiosamente.
Embora a compaixão e a misericórdia não estejam
de moda na sociedade ocidental, renovemos nossa vida para que ela seja mais
intensa e expansivamente misericordiosa.
O Papa Francisco inaugurou um Ano
Jubilar especial: júbilo e atitude compassiva da misericórdia que perdoa,
renova e facilita a reconciliação. Duas razões que deveriam estar presentes em
quem se diz cristão, algo tão natural no seguimento de Jesus Cristo: alegria pela experiência de que Deus
nos ama com um coração misericordioso e misericórdia
como conduta libertadora que nasce de tal experiência. Aqui nos encontramos
envolvidos por uma mensagem que é essencial e decisiva no nosso “ser cristão”.
Ser misericordiosos e compassivos
é a vocação à qual todos nós, seres humanos, fomos chamados, inclusive aqueles
que ainda não experimentaram o dom da fé ou mesmo a perderam. É o caminho para
conseguir uma convivência leve, acolhedora e aberta. As bem-aventuranças vão
nesta direção, abrindo espaço para que o Amor misericordioso de Deus se
transforme em motor da história.
Misericórdia. É a primeira, a
última, a única verdade da Igreja, de todas as suas doutrinas, cânones e ritos.
É o critério de juízo de todas as religiões. E, - porque não dizer?-, também da
política ou da gestão da vida pública com todas as suas instituições, partidos,
programas e conferências climáticas. Ai das políticas sem entranhas, sem alma,
sem misericórdia!
A misericórdia
é a luz e a chave de nossa vida tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta
tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Misericórdia, segundo sua
etimologia, significa entranha, coração, ternura para com o desfavorecido. Por
isso é um dos nomes mais belos de Deus, que é como dizer “coração da Vida” e de
tudo quanto existe.
Quê é este Ano Jubilar especial que a Igreja celebra? O texto bíblico do
Levítico 25 nos ajuda a compreender o que significa “jubileu” para o povo de Israel. A cada 50 anos os hebreus ouviam o
alegre som do “jobel” (corneta de chifre de carneiro) que ecoava nas montanhas
e nos vales, convocando a todos (“jobil”) para celebrar um ano jubilar. Neste
tempo devia-se recuperar a boa relação com Deus, com o próximo e com toda a
Criação, fundada na gratuidade. Era um ano do perdão, ou seja, os pobres
ficavam livres de suas dívidas, os escravos recuperavam a liberdade, os
camponeses obrigados a desfazer-se da propriedade de sua terra a recuperavam...
Podiam respirar, podiam viver, era o jubileu.
No Evangelho de hoje, os pastores, ao
encontrarem o recém nascido deitado na manjedoura, viram nele o rosto da misericórdia: chegou para eles
um novo Jubileu; por isso, “voltaram
glorificando e louvando a Deus por tudo
que tinham visto e ouvido”. Chegou para eles, e para todos os excluídos da história,
um novo tempo, tempo de libertação do império e da religião, o cancelamento de
suas dívidas, a mesa compartilhada com todos, a festa que nunca se acaba, a
solidariedade humanizadora, a vida expansiva...
Nisto consiste o jubileu da Misericórdia.
Este é o convite que o papa Francisco expressa
em sua Bula “Misericordiae Vultus”:
“Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência
de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais,
que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas
situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas
feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu grito foi
esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste
Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas,
aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las
com a solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na indiferença
que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a
novidade, no cinismo que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias
do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e
sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem
as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença,
da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos,
possamos romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana
para esconder a hipocrisia e o egoísmo” (N. 15).
As consequências práticas do Jubileu
da Misericórdia são imensas: que se eliminem as dívidas das pessoas e
dos países explorados; que se abram as fronteiras aos imigrantes; que abramos
as portas à misericórdia e os corações à esperança; que caminhemos, guiados
pela ternura das entranhas, para a harmonia e o descanso da terra, para a
libertação de todos os que vivem oprimidos; que situemos o amor
e a misericórdia
como centrais na vida cristã, como modo de ser essencial do cristianismo, e
isso implica: amar e perdoar os outros, optar pelos pobres e por nossa casa
comum a Mãe Terra, lutar pela justiça, mudar o sistema atual que só concentra riqueza,
que exclui grande parte da humanidade e destrói a natureza, buscar estilos de
vida alternativos ao atual paradigma tecnocrático patriarcal e consumista; que abandonemos a pastoral do medo, do
legalismo e do moralismo, aproximando-nos do sacramento da Reconciliação como
um espaço de misericórdia e não de tortura; que atualizemos as obras de
misericórdia descritas em Mateus 25,31-46 com reformas sociais estruturais; que
nos desloquemos e nos aproximemos dos lugares de sofrimento e dor: migrantes e
refugiados, indígenas, camponeses, bairros periféricos, mulheres abandonadas,
doentes, idosos, prostitutas, crianças de rua, drogados, inválidos, creches,
cárceres...
Os textos bíblicos nos mostram as “três graças” da
Misericórdia: sua operosidade, ela é uma obra eficaz; sua bem-aventurança: ela
estabelece na terra o Reino do céu; sua alegria: ela alegra quem a exerce e
quem a recebe.
No Documento de Aparecida, as tradicionais obras de misericórdia ganham nova
feição, traduzindo-se em afirmação da dignidade humana, defesa incondicional da
vida, promoção do bem comum, justa distribuição de renda, inclusão social,
defesa dos direitos humanos, acesso aos bens culturais, salário justo e
segurança alimentar (nn. 358-359).
Se recuperarmos as atitudes de misericórdia e
compaixão, teremos entrado na vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que
a Igreja toda se deixe reger pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar reduzida
simplesmente a somar “obras de misericórdia”.
A misericórdia é para os audazes
e criativos, capazes de revolucionar a existência com atitudes maduras de amor
profético, alargando espaços onde imperam somente a doutrina, os esquemas
rígidos e as retóricas de poder e de juízo daqueles que não se deixam conduzir
pela força humanizadora da Misericórdia.
Texto bíblico:
Lucas 2,16-21
Na
oração: Ao longo
deste ano jubilar, deixemos nos inspirar pela oração de Santa Faustina, humilde
apóstola da Divina
Misericórdia de nosso tempo:
“Ajuda-me
Senhor, a que meus olhos sejam misericordiosos, para que eu jamais suspeite ou
julgue segundo as aparências, mas que busque o belo na alma de meu próximo e
acuda em ajudá-lo;
-
a que meus ouvidos sejam misericordiosos, para que leve em conta as necessidades
de meus próximos e não seja indiferente às suas penas e gemidos;
-
a que minha língua seja misericordiosa, para que jamais fale negativamente de
meus próximos mas que tenha uma palavra de consolo e perdão para todos;
-
a que minhas mãos sejam misericordiosas e cheias de boas obras;
-
a que meus pés sejam misericordiosos para que sempre me apresse em socorrer meu
próximo, dominando minha própria fadiga e meu cansaço.
-
a que meu coração seja misericordioso, para que eu sinta todos os sofrimentos de
meu próximo”.
Um inspirado 2016 a todos.
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