“Esta é a voz
daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor...” (Lucas 3,4)
Advento nos convida a “fazer estrada”, numa viagem em busca do mundo interior, sede dos desejos,
daquilo que é importante e essencial, o nosso modo de projetar o futuro, as
nossas decisões... Nesse “mergulho” interno cada um pode
construir uma espécie de mapa do “eu”,
com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e
ainda misteriosas.
A figura de João Batista “toca” o coração de cada um e nos
possibilita “entrar” em nosso mundo e captar
em profundidade a nossa realidade, a perceber a raiz do nosso ideal de vida (cada vez mais
atraente-convincente-exigente), como também suas contradições
e ilusões, medos e
necessidades.
Esse processo interior, motivado
pela presença instigante do Batista, nos motiva a elevar
vales e rebaixar montes de nossa paisagem interior: desmontar colinas do medo,
nivelar os acidentados terrenos de esperança, alongar a “pele da alma” para nos
redimir das escleróticas rugas dogmáticas e facilitar os caminhos do Senhor.
Profundidade e amplitude:
são as duas dimensões ativadas neste tempo litúrgico do Advento; elas estão intimamente
conectadas de modo que quanto mais profunda é uma pessoa, mais livre se faz de
seus limites imediatos e mais capaz de olhar amplamente a realidade que a
envolve.
E o percurso do caminho
interior nos ensina muitas coisas.
Aquele que
“desce” em seu interior, é alguém que não tem medo de si mesmo, de olhar para
si em todos os aspectos e dar-se conta do que está acontecendo. Um fio e
intenso raio de luz penetra e ilumina, quase imperceptível, alguns rincões do
seu aposento interior. Em seu silêncio interior, nas profundezas de seu ser, acolhe,
escuta e reconhece o murmúrio de uma voz, chamando-o a engajar-se na
aventura do serviço a Deus e aos outros. Com o passar do tempo, torna-se capaz
de reconhecer a ação de Deus.
É ali que a
pessoa descobre aquilo que podemos denominar a “bússola interior”
do coração, algo capaz de lhe revelar as “moções” de seu íntimo;
“moções” que mobilizam a energia vital mais profunda de seu ser. Esta
interiorização é abertura, é dilatação do coração, é expansão do ser em direção
a um mundo percebido como “morada do Criador”.
No nosso processo espiritual do Advento, devemos também ativar esta
capacidade de ver quem somos nós, onde estamos, para onde
vamos... sem o temor de nos defrontarmos com respostas desagradáveis.
Somente partindo da realidade
de nós mesmos, do conhecimento do nosso terreno interior, poderemos crescer
como peregrinos em direção a um horizonte que progressivamente se
mostrará sempre mais claro. Caminhando por estradas interiores
desconhecidas, poderemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou
reconhecer “vozes novas” que nos
mobilizam na direção de uma causa nobre e divina.
Dizem que há pessoas capazes de
serem curadas por uma voz, pela
sonoridade de uma voz determinada. Vozes que “tocam” e despertam forças
desconhecidas. Certas vozes nos devolvem ao nosso ser essencial. Quanto aspira
nosso coração escutar uma voz que
desate em nós forças libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões,
livres para amar sem defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa
relação nova com a realidade...
Somos seres de palavras
e somos também seres de silêncio. Neste mundo de “palavreado crônico” temos
esvaziado o dom da palavra, as palavras tem pouco valor, as vozes se fazem
estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no calor do
silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Essas
palavras podem curar, elevar, comunicar vida... Vozes que devolvem a dignidade
a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar com seu ser mais
profundo.
Precisamos ouvir vozes
que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que
não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem
considerar a beleza da diversidade e da diferença. Também nós buscamos pessoas
que possam nos dizer palavras para viver e somos também cobrados a entregar aos
outros uma palavra de vida.
Os primeiros cristãos viram na
atuação e na voz do Batista o profeta que preparou decisivamente o caminho para
a chegada do Messias. Por isso, ao longo dos séculos, a voz do Batista continua ressoando com intensidade, despertando-nos para
uma atitude de acolhida d’Aquele que quer fazer morada entre nós.
Lucas resumiu sua mensagem com
este grito tomado do profeta Isaías: “Preparai o
caminho do Senhor”.
O importante é a Voz, uma Voz que grita e diz:
“preparai”. Ela nos define e nos faz ser mais humanos, pois alimenta nossa esperança
e nos abre um caminho de transformação.
É tempo de profetas, tempo para
escutar e discernir as vozes que vem do interior e vozes de outros homens e
mulheres que abrem, com sua palavra, uma esperança de humanidade.
Uma voz que
grita no deserto: nossos “reinos neoliberais” estão demasiados cheios de
propaganda deste mundo, de poder e de dinheiro, de intrigas e invejas, de
corrupção e falsos amores, de puras imagens que passam e morrem, mantendo as
pessoas ocupadas em suas mentiras e ilusões.
É preciso sair
ao deserto, retornar ao silêncio dos grandes profetas para escutar as vozes
verdadeiras, aquelas que brotam do eu mais verdadeiro e que nos fazem mais
humanos.
Fernando
Pessoa nos diz: “Há um
tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os
nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da
travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de
nós mesmos”.
O caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a
meta e simultaneamente é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos
perdidos, interior e exteriormente. Assim se encontra a humanidade, sem rumo e
num vôo cego, sem bússola e sem estrelas para orientá-la nas noites tenebrosas.
Cada ser humano
é “homo viator”, um caminhante pelos caminhos da vida. Assim disse o poeta
cantor argentino Atahualpa Yupanqui: “o
ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência acabada;
devemos construí-la. E para isso é preciso abrir caminho, a partir e para além
dos caminhos andados que nos precederam. Assim, nosso caminho pessoal nunca
está dado completamente: tem de ser construído com criatividade e sem medo.
Esse é o sentido de nossa
existência: escolher quê caminho
construir e como seguir por ele, sabendo que nunca o percorremos sozinhos.
Conosco caminham multidões, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por
Alguém chamado “Emanuel, Deus conosco”.
O cristão é um contínuo peregrino,
enamorado do caminho, não da meta. E caminhando aprenderá a ser feliz com pouco
e a ser companheiro samaritano; aprenderá também que o caminho é a meta e que é
mais importante saber caminhar que chegar. E caminhando, ele se tornará
caminho: um caminho de terra e de ar, de pedra e de fontes, de árvores e
nuvens, de encruzilhadas incertas e horizontes luminosos.
Num albergue
para peregrinos estava escrito: “Tu és o caminho”. Sim, nós também somos o
caminho, a verdade e a vida. Como João Batista, que no caminho deixa ecoar sua
voz que desperta e mobiliza a entrar em sintonia com “Aquele que está vindo ao nosso encontro”.
Neste longo
percurso, os convites de Deus são
absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos
capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Texto
bíblico: Lucas 3,1-6
Na
oração: “Senhor, mostra-nos teus caminhos!”
Esta é a oração
fundamental de Israel, a petição permanente dos Salmos. Para o povo que
peregrina no deserto, é essencial
conhecer direções e entender ventos.
E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da graça.
- Seu caminho tem “alma”? Tem “coração”? Tem “voz”?
Nenhum comentário:
Postar um comentário