Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo do Tempo do Advento (Ano C).
“Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor’” (Lc 3,4)
Estamos no tempo do Advento,
alimentando uma esperança ousada; para isso, é preciso fazer descer ao nível do
chão o orgulho de nossos montes elevados, a presunção de nosso ego inflado, a
altura de nossa vaidade...
O pano de fundo deste tempo litúrgico é a experiência bíblica do deserto, lugar onde podemos nos sintonizar com Deus, escutar melhor o seu
chamado para sermos presenças inspiradoras neste velho mundo.
Deserto passa a ser tempo de purificação e de vida
em marcha: somos povo peregrino deixando-nos conduzir somente por Deus. O deserto é
território da verdade, o lugar onde vivemos do essencial. Ali não há lugar para
o supérfluo; ali não podemos viver acumulando coisas sem necessidade; ali não é
possível o luxo nem a ostentação.
O decisivo é discernir e buscar o melhor caminho para orientar nossa vida em direção à “Terra Prometida”.
De maneira solene, o
evangelho deste domingo apresenta o início da atividade de João Batista,
situando nas coordenadas concretas de tempo e lugar, os acontecimentos que
marcarão a história da humanidade. O evangelista Lucas tem interesse em
destacar os nomes dos personagens que controlavam, naquele momento, as
diferentes esferas do poder político e religioso; são aqueles que planejam e
dirigem tudo.
No entanto, o
acontecimento decisivo de Jesus Cristo foi preparado e aconteceu fora dos
espaços de influência política e religiosa, sem que os poderosos percebessem o
que estava acontecendo nas periferias da história.
Assim, a Graça e a
Salvação de Deus banham a história a partir de baixo, dos últimos. O essencial
não está nas mãos dos poderosos; eles que controlam as diferentes esferas do
poder político e religioso, aqui não decidem nada.
É nesse contexto
que Lucas afirma com toda firmeza que “a Palavra de Deus foi dirigida a João,
filho de Zacarias, no deserto”. Não em Roma, nem no recinto sagrado do
Templo de Jerusalém,
mas no deserto. João Batista não é um funcionário do Templo, é um
profeta. As instituições e o poder não querem profetas em suas fileiras: homens
que pensem, que anunciem, dêem ânimo ao povo, ou que denunciem as mazelas do
poder desumanizador.
Por isso, muitos profetas aspiravam tanto o deserto, símbolo de uma vida mais despojada e melhor enraizada no essencial, uma vida ainda sem estar “distorcida” por tantas infidelidades a Deus e tantas injustiças com o povo. Neste marco do deserto, o Batista anuncia o símbolo grandioso do “batismo”, ponto de partida de conversão, purificação, perdão e início de vida nova.
Voltar ao deserto: esta é a mensagem chave deste segundo domingo do
Advento. Trata-se de aprender a simplificar, centrando-nos no essencial, pois
só com o essencial podemos viver no deserto, sem adornos falsos, sem complexos
de superioridade. Esta é a maior graça que Deus pode nos comunicar:
conduzir-nos de novo ao deserto, para simplificar, para dialogar, para
partilhar... Voltar ao deserto para renunciar as comodidades falsas, para
sermos nós mesmos, esvaziar-nos e assim poder viver simplesmente como humanos.
É do
deserto que surge uma nova “voz”: desafiante, mobilizadora, que nos traz
para o essencial; voz que tem forte ressonância em nosso coração.
Estamos
imersos numa confusão de vozes que nos distraem, nos saturam e nos fazem viver
na superficialidade. As vozes barulhentas que procedem dos grandes centros de
poder e dos meios de comunicação são vozes ocas, estéreis, sem consistência, e
que se dispersam no ar. Com isso vamos perdendo a sensibilidade para captar as
vozes delicadas que procedem do mais profundo de nós mesmos.
A realidade na qual vivemos clama por vozes corajosas, que despertem a vida, as consciências e apontem para um horizonte de sentido. Estamos saturados de vozes carregadas de morte, de ódio, de intolerância...
O Tempo do Advento
é um forte apelo de retorno ao coração. Só a voz que vem “lá das quebradas do
deserto” é capaz de sintonizar-se com as tênues vozes que brotam do nosso ser
profundo; “Voz divina” que desperta nossas vozes. Só ela é capaz
de ativar nosso ser original, mobilizar nossos recursos, desbloquear nossa
vida, desencadeando um movimento inovador que nos faz entrar em comunhão com
todos e com o Todo.
Para ouvir a desafiante voz do Batista é preciso deslocar-nos para o deserto, sair dos espaços fechados e atrofiados. O lugar determina nossa maneira de pensar, de sentir, de amar. A voz que vem dos amplos espaços do deserto tem um impacto rompedor nos nossos espaços rotineiros (físicos, afetivos, psicológicos, sociais, religiosos...); assim, somos impulsionados a sair daquilo que nos dá a sensação de segurança e conforto. Advento não é para acomodados! É para os(as) inquietos(as).
Só o encontro com a
“voz” do Precursor pode quebrar o modo arcaico e petrificado de pensar, viver e
amar. Só o encontro das duas vozes reacende em nós o desejo de uma transformação
contínua.
Sabemos
que a “voz” não é só expressão de uma interioridade, articulando sentimentos,
pensamentos, sonhos...; toda voz particular também carrega em si a dimensão
comunitária; a voz de cada um é caixa de ressonância da voz da humanidade.
Nesse
sentido, o Advento é um tempo privilegiado para unir nossas vozes, para fazer
emergir uma voz solidária, que assume a voz sufocada de tantos sofredores e
excluídos. São tantas as vozes travadas nas gargantas de muitos e que não
encontram meios para se expressar. Com isso, a “voz” que nos chama à Vida acaba
caindo “no deserto”, ou seja, não encontra destinatários, porque nos
encontramos dispersos, distraídos em mil ocupações, vivendo na
superficialidade.
Sejamos “voz” dos “sem voz”!
Somos chamados ao deserto onde a voz da Vida ressoa com mais intensidade, sem ser sufocada pelo
“vozerio crônico”. Com sua austeridade e simplicidade, o deserto não é lugar de experiências
superficiais. A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e
experimentada no deserto.
O deserto é o grande auditório para ouvir
Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos
solidários, em comunhão com todos. A proximidade de Deus vai ser sentida e
percebida.
Ao tomar distância do estressante ritmo cotidiano, teremos a possibilidade de reconhecer a voz de Deus em nós com outra intensidade e com outra força. Assim, a experiência de deserto passa a ser “tempo e lugar” de decisão, de orientação da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é o silêncio; o deserto tem valor porque revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela Deus e a nós mesmos.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração:
“Preparem
o caminho do Senhor, endireitem suas estradas...”
- O que está “torto” em minha vida
pessoal, relacional, espiritual... que precisa ser endireitado?
- Quais são os grandes caminhos tortos,
presentes na sociedade de hoje, que clamam por minha presença e meu
compromisso, para endireitá-los?
- Que caminhos posso ajudar a construir
para despertar uma nova esperança nestes tempos tão sombrios? Como endireitar
os caminhos para que chegue mais rápido o Reinado de Deus?
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