Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo da Quaresma.
“Todo aquele que bebe desta água terá sede de
novo”
(Jo 4,13)
Diante
da imagem do deserto, muito presente
durante o tempo quaresmal, a sensação é de sede.
O
deserto evoca nossa sede de água e de plenitude. Onde encontrar a água? Como
saciar nossa sede?
É cada vez maior o número de
restaurantes que dispõem de “menu de águas”. Águas dos mananciais mais puros,
dos aquíferos mais profundos, das nascentes mais cristalinas... Água abundante
e ao alcance daqueles que podem pagar por ela. Uma água para cada sede e uma
sede para cada água.
No entanto, no mais profundo de
nosso ser, somos habitados por uma sede
que nenhuma água pode saciar: sede de sentido, de plenitude, de vida inspirada
e criativa...
Bendita sede que nos mantém abertos
a Deus e aos outros! As pessoas que fizeram diferença e mudaram o mundo foram
aquelas profundamente sedentas. Amaram essa sede de que fala Jesus:
“Se
tu conhecesses o dom de Deus...” Pessoas que ativaram a sede de
justiça, no deserto de uma injustiça asfixiante; pessoas que suportaram a sede
de paz sob forte pressão das fábricas de armas; pessoas que viveram a fundo sua
fé em uma Igreja que, com frequência, as deixava sedentas e as colocava à
margem. Pessoas que se encheram de Deus porque renunciaram saciar aquela sede
com qualquer água.
Precisamos de pessoas, como a
samaritana, que nos deem as coordenadas d’Aquele que pode despertar nossa sede,
antes de nos dar água.
Jesus, junto ao poço de Jacó, é a viva
imagem de um “Deus sedento”, que ama a humanidade até morrer de sede por
ela, e que uma esponja molhada em vinagre não conseguirá apagá-la.
Junto ao poço, nossa pequena sede e a sede de Deus se encontram. Sua sede de
justiça confrontada com nossa sede de harmonia; sua sede de misericórdia
confrontada com nossa sede de reconhecimento; sua sede de compaixão confrontada
com nossa sede de segurança. Não para diminuir nossa sede, mas para ampliá-la;
não para menosprezá-la, mas para dignificá-la.
A vida, carregada de obrigações,
compromissos, preocupações, rotinas..., onde investimos tanta atenção e
energia, pode maquiar ou bloquear as sensações profundas, fazendo-nos perder o
contato com nossa sede original e criando um deserto existencial.
Jesus assume nosso deserto;
acolhe-o, fazendo-se presente em seus recantos de dúvida, de medo, de solidão. “Dá-me de
beber”, ressoará
no nosso eu mais profundo. E poderíamos lhe dizer: com a sede que temos, nos
pedes que sacie a tua sede? A resposta não se faz esperar: é Deus quem tem sede
de nós, é Jesus que nos convida a partilhar de nossa água com Ele.
Jesus
cansado e sedento, sentado à beira do poço; uma mulher com sede que acode com
seu balde para tirar água. Dois sedentos e com a água no poço. Sedentos os dois de água, mas, possivelmente,
os dois também sedentos de algo mais que água. Jesus sedento quer encher de
água viva aquele coração cheio de “maridos”; uma mulher sedenta de algo mais
que pudesse apagar a sede que seus maridos não conseguiam.
A samaritana chega ao poço, alheia
ao que ali lhe esperava e que, na trivialidade de sua vida cotidiana, tudo fazia-se
previsível: vai somente buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua
casa com ele cheio. Não há mais expectativas, nem outros planos, nem mais
desejos.
Mas o imprevisível está esperando
por ela, na pessoa daquele galileu sentado na beira do poço, que inicia uma
conversação sobre coisas banais, talvez para não assustá-la: falam de água e de
sede, de poços e de velhas desavenças entre povos vizinhos, coisas de todos os
dias.
Jesus começa como o frágil sedento
que se atreve a pedir água. A mulher, muito segura de si, sente-se dona do
poço, da água e do balde. Subitamente, irrompe a linguagem das “coisas do
alto”: o dom, uma água que se converte em manancial vivo, a promessa de uma
sede saciada para sempre, um Deus que nos busca, fora dos espaços estreitos de
templos e santuários.
A
samaritana se defende e procura manter a conversa em um nível de trivial
superficialidade, fugindo da irrupção do “novo” em sua vida. Mas, no final da
cena, o cântaro que era símbolo da pequena capacidade que está disposta a
oferecer, permanece esquecido junto ao poço, já inútil à hora de conter uma
água viva.
E
os dois, Jesus e a mulher, terminam esquecendo-se da sede, da água, do poço e
do balde. Duas vidas que se encontram e se comprometem: Jesus, que vai abrindo
caminho para chegar ao profundo daquele coração feminino; a mulher que resiste,
mas, aos poucos, se abre às palavras daquele homem imprevisível; Jesus, que vai
des-velando a mulher por dentro, fazendo emergir seus profundos vazios; a mulher
que começa a sentir o borbulhar do manancial em seu coração, encontrando-se com
a verdade de si mesma; Jesus que vai se esquecendo do poço de Jacó e vai
abrindo uma nova fonte naquele coração de mulher; a mulher
que
se esquece da água e do cântaro e regressa ao seu povoado gritando o que seu
coração encontrara.
O
encontro com a mulher samaritana é um belo ícone para descobrir o Mestre da Galileia
que, como um grande mistagogo, vai conduzindo-a ao centro de si mesma, à
profundidade de seu mistério pessoal e à consciência de ser uma “mulher
habitada”.
“Descer”
ao fundo do poço é a oportunidade
para descobrir regiões novas e novos horizontes, para conhecer o reino
interior, para encontrar a riqueza profunda e assim experimentar a
transformação.
O caminho para uma nova qualidade
de vida passa pela descida ao mais profundo do nosso próprio poço.
Isso requer coragem para
passar por todas as regiões sombrias e chegar ao fundo. Mas essa descida nos
possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos
perdido.
Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos levar conosco,
que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente íntegros e sãos.
A CF deste ano, com o tema “Vida, dom e missão”, nos motiva a
despertar as potencialidades de vida que ainda permanecem adormecidas. É
preciso “descer” até às profundezas para descobrirmos uma nova riqueza que plenificará nossa vida; é “descendo”
que poderemos revitalizar a vida que
se tornara vazia e ressequida. É preciso despertar, escavar, avançar em direção
ao “manancial” e saber que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido.
Não basta falar de “água viva”, é
também necessário “escavar” nosso “chão interior”, desbloquear e ampliar o espaço do coração para que o manancial
ali presente, encontre chance de emergir e dar um novo sabor à nossa vida.
A vida sempre está oculta nas profundezas.
A pessoa superficial é aquela que se confunde com suas ideias, seus apegos,
suas falsas seguranças.... A pessoa do “eu profundo” é aquela que vive a partir
da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa
vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...
O percurso quaresmal “des-vela”
nosso “eu profundo”, o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa
personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais,
as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as
ideias-força, os dinamismos da vida..., que formam o eixo de nossa existência,
o melhor de nós mesmos, o fundamento de nossa verdadeira identidade.
O “tesouro do ser”
(certezas, intuições, projetos, valores...), ainda que pareça esquecido,
permanece armazenado em sua mensagem essencial, e pode se tornar a força que
orienta toda a vida, a sabedoria da própria vida, um lugar de fecundidade, de
criatividade, fonte de renovação...
Texto bíblico:
Jo 4,5-42
Na oração:
Para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade,
busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raí-zes
de seu ser, o núcleo original de sua
personalidade.
-
Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade
interior, para que venha à superfície aquilo que sustenta e dignifica o seu
viver.
-
Dirija seu olhar para o mais íntimo de si mesmo(a), onde nascem sentimentos e
valores, decisões e gestos..., onde você é convidado(a) a se alegrar com os
rastros da Graça.
-
Deixe-se conduzir pela “sede” de Deus que está enraizada em
seu coração.