“E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a
recompensa”
(Mt 6,4)
Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso
Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2020, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de
viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar.
Quaresma
pode ser escola de vida para o restante do ano; é tempo favorável para “ordenar a
própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a
humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o
tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações
vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
Nem sempre sabemos viver de maneira
intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo,
carregada de “murmurações”...
O dinamismo do seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade
mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração. O seguimento proporciona vigor inesgotável, a vida
se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de
liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão....
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no
Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de
viver como viveu Jesus de Nazaré.
Distanciar-se da vida
superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida: aqui está
o sentido do “percurso quaresmal”
Em sintonia com toda as comunidades cristãs somos chamados a viver o
“tempo quaresmal” sempre de maneira nova e inspiradora. O centro de nossa vida
é Jesus Cristo, sua pessoa, sua
mensagem, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu
seguimento é sempre rico e surpreendente. Muitas vezes, corremos o risco de
viver o tempo litúrgico da Quaresma como uma celebração rotineira, algo já
conhecido.
Contemplando Jesus Cristo, descobrimos também quem somos nós. Ele nos
interpela: que queremos fazer de nossa vida? Como queremos viver? Para quê e
para quem vivemos?...
Nesse sentido, através da Campanha da Fraternidade, a Igreja no Brasil
nos motiva a viver a Quaresma como um tempo privilegiado para dar um novo
sentido à nossa vida. Através do tema “Vida, dom e Missão” e do lema “Viu,
sentiu compaixão e cuidou dele”, somos movidos a desatar todas as ricas
possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais
profundo de nossa interioridade.
A imagem de Jesus, presente junto
às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade
e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus
limites estreitos e constituindo-a como vida
expansiva em direção a novos horizontes.
Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” para, como Ele,
dar a Deus o lugar central de nossa vida. A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir
em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de re-construção de nós mesmos
(conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão,
mais partilha, mais solidariedade...).
O Evangelho da 4ª.
feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e
jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo
modo de viver e de proceder de Jesus.
São
três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles
condensam o sentido da vida cristã e apresentam-se como uma alternativa
privilegiada para viver com mais intensidade.
A vida é um abrir-se aos demais (esmola), sintonizar-se com o coração
de Deus (oração) e colocar ordem na
própria existência (jejum).
É
preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas
aconteçam.
Sintonizados com o lema da CF – “viu, sentiu compaixão e cuidou dele” – a Quaresma é também um tempo privilegiado para re-educar a olhar: superar o olhar possessivo,
interesseiro, frio... e entrar em sintonia com o modo de olhar de Jesus, ou
seja, olhar carregado de admiração, compaixão, calor humano... Este tempo
litúrgico nos move a fixar o olhar naquilo que vivemos, a contemplar tudo o que
compõe nossa existência, para dar um novo sentido e significado.
Como o bom samaritano, precisamos
re-aprender a olhar, para nos deixar impactar pela situação dos outros,
sobretudo dos mais carentes e excluídos. Nesse sentido, as três práticas
quaresmais – “jejum, oração e esmola” – implicam também uma
conversão do olhar, para captar o mistério da vida que nos envolve e nos
aproximar d’Aquele que é Fonte da Vida.
A
liturgia quaresmal nos propõe o jejum;
aqui, a novidade não está tanto em reduzir o que comemos, o que ingerimos de
uma maneira quase mecânica. O jejum também tem a ver com o sentido da visão: olhar a nós mesmos, fixar a
atenção naquilo que nos alimenta, ativar a prática de nos olharmos com mais
compaixão; talvez, afastar de nós aquele olhar que nos destrói por dentro, que
nos causa dano, que bloqueia a expressão de nossa verdadeira identidade.
O
olhar é o reflexo de nossa
interioridade; ele tem um grande poder porque deixa transparecer o que acontece
e o que sentimos por dentro.
A
outra prática quaresmal proposta é a esmola;
dar o que temos, não o que nos sobra; aqui significa compartilhar um olhar
novo, que eleva o outro, que consegue perceber nele um tesouro escondido, olhar
humanizante e humanizador; tem a ver com o presentear ao outro um olhar de
consolo, de acolhida, de cui-dado, de sorriso...; acostumamos a “ver” as
coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade
de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo
de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai
se estreitando e tudo se torna rotina.
É
salvífico ativar o olhar mais expansivo e contemplativo, um olhar que nos faz
sair de nós mesmos, conduzindo-nos à admiração e ao encantamento diante do dom
maravilhoso da vida, em suas múltiplas expressões. Olhar que desperta a
gratidão e o louvor. Um olhar que deixa transparecer, neste tempo propício, que
a Vida com maiúscula é possível.
E,
finalmente, a prática quaresmal por excelência: a oração. Deixemos retumbar dentro de nós a pergunta: “a partir de onde você olha?” A liturgia nos pede,
neste tempo litúrgico, que sejamos capazes de olhar a partir de Deus; que
fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capazes de olhar-nos com mais
bondade, de olhar os outros com mais carinho, de olhar a criação com mais
admiração. Só assim teremos olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
Quaresma
é um tempo para nos deixar olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão
e aprender a olhar como Deus olha, porque um olhar Seu, bastará para nos fazer “converter e crer no evangelho”.
“Um olhar contemplativo percebe sinais de evangelho
nos acontecimentos mais simples” (Ir. Roger).
Quaresma
é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e a nos
deslocar em outra direção. Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma
verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso
ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a
seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma
existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência
fixos, definitivos, tranquilizadores... É vida em movimento,
gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e
sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação,
comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que
desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa,
é convocação...
Texto bíblico: Mt
6,1-6.16-18
Na oração:
-
Torne o seu coração vulnerável ao olhar
do Pai, receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de
Deus.
-
Evangelizar
o olhar: aprender a olhar como Jesus, ultrapassando as aparências.
-
Como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?
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