“Se a vossa justiça não for maior que
a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus...” (Mt 5,20)
Na
Bíblia, a justiça é um dos conceitos
centrais, com uma diversidade de sentidos e, por isso mesmo, difícil de ser
definido. Em todo caso, trata-se de um conceito que inclui “relação”.
Nas
“antíteses” – “ouvistes o que
foi dito..., eu, porém, vos digo” – do Sermão da
Montanha, somos colocados diante de cinco casos concretos que tem a ver com a
vida relacional e comunitária: a reconciliação, o olhar puro que não se apossa de
outra pessoa, a veracidade e transparência no falar, a não violência (ou
mansidão bíblica) e o amor gratuito que inclui o “inimigo”.
Em
todos eles, podemos crescer sempre mais, graças à compreensão de quem somos no
nível mais profundo; o “eu, porém, vos
digo” de Jesus nos inspira a descer até às raízes de
nosso ser, esvaziando-nos progressivamente de nosso ego e ativando todos os
recursos humanizadores aí presentes.
Na
perspectiva bíblica, “justo” é aquele que, perante Deus e
os homens, se “ajusta” ao modo de agir do mesmo Deus, vivendo e agindo com a
marca da bondade.
Visto que justiça designa o comportamento do ser
humano em conformidade com a Vontade de Deus, pode-se falar de “praticar
a justiça”; ou de “cumprir toda a justiça”.
Portanto,
a expressão “justiça de Deus” não tem nenhuma relação com o julgamento de
Deus; ela é, antes de tudo, misericórdia e fidelidade a uma vontade de
salvação. O conceito descreve uma maneira de ser ou de agir de Deus. Deus
é justo porque é bondade e misericórdia. Por isso, também do lado humano a justiça deve significar uma maneira de
prolongar o ser e o agir de Deus.
O problema da relação entre misericórdia e justiça está em considerar como rivais ou como incompatíveis esses
dois atributos de Deus. É preciso afirmar os dois ao mesmo tempo e procurar
compreender como ambos estão em Deus, sem que um anule o outro, mas reforçando-se
mutuamente. Poderíamos formular assim: Deus é justo em sua misericórdia e
misericordioso em sua justiça. Segundo o Papa Francisco, “a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de
tudo, temos que dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a
manifestação mais luminosa da verdade de Deus”.
Já no Primeiro Testamento
encontramos afirmações deste tipo: a justiça de Deus é sua misericórdia. A
justiça de Deus coincide com sua misericórdia, sua bondade, sua santidade. São
Paulo, em sua carta aos romanos, afirma que a justiça de Deus se manifesta na
justificação do pecador, de modo que o Deus justo é justificador. Podemos
concluir, pois, que Deus é justo porque quer que todos se salvem. É de esperar,
portanto, que esta vontade de Deus se cumpra. É claro que, diante do dom da
salvação intervém a liberdade humana, porque salvação é acolhida do Deus que é
Amor, e não há amor sem recíproca acolhida.
Jesus veio expandir o horizonte do comportamento
humano; veio nos libertar dos perigos do moralismo e do legalismo. À luz da justiça de Deus (“força que salva”),
Jesus nos apresenta um modo de proceder mais radical, relendo os mandamentos.
A justiça de Deus não é poder que se impõe, mas
amor aberto e libertador, a partir dos últimos e dos excluídos da humanidade. A
liberdade criadora de Deus, que é amor aos pobres, se torna princípio de justiça,
pois o evangelho chama “justos” precisamente aqueles que acolhem os exilados,
visitam os encarcerados, dá pão a quem tem fome..., ou seja, àqueles que
colocam suas vidas a serviço dos excluídos e vítimas das instituições sociais e
econômicas injustas.
O
único fundamento de qualquer justiça
é Cristo. N’Ele nós nos tornamos justiça de Deus (2Cor 5,21).
A
partir desta perspectiva, podemos entender o que Jesus fez em seu tempo com a
Lei de Moisés. Disse que não vinha abolir a lei, mas plenificá-la, porque foi
acusado pelas autoridades religiosas de ser um transgressor das leis. Jesus não
foi contra a Lei, senão que foi mais além da Lei. Quis dizer que toda lei é
sempre limitada, que sempre podemos ir mais além da letra da lei, da pura
formulação, até descobrir o espírito que a inspira. A vontade de Deus está mais
além de qualquer formulação, por isso, não podemos nos limitar ao que está
escrito, mas precisamos sempre dar um passo a mais. Na vivência do amor, que emana do nosso eu mais
profundo, devemos ser sempre mais radicais, não cedendo diante da mínima
manifestação do nosso auto-centramento. Na realidade, quem ama, não precisa de
leis. Segundo S. Paulo, “quem ama, cumpre toda lei”.
Jesus passou de um cumprimento
externo de leis a uma descoberta das exigências de seu próprio ser. Esta revolução
que Ele iniciou, ainda está por ser realizada. Avançamos muito pouco nessa
direção. Todas as indicações do evangelho no sentido de viver no espírito e não
na letra, parece que estão sendo ignoradas. Caímos facilmente no legalismo, no
farisaísmo que se perde em meio a um emaranhado de leis, desviando-se do
essencial, que é a vivência do amor oblativo, gratuito, expansivo...
“Ouvistes o
que foi dito: não matarás, não cometerás adultério, não jurarás falso; eu,
porém, vos digo...” Não fica abolido o mandamento antigo,
mas elevado a níveis incrivelmente mais profundos. Jesus nos revela que uma
atitude interna negativa é já uma falha contra nosso próprio ser, ainda que não
se manifeste numa ação concreta contra o outro.
Por
isso, segundo Jesus, não basta cumprir a Lei, que ordena “não matarás”. É
necessário, além disso, arrancar de nossa vida a agressividade, o desprezo ao
outro, os insultos ou as vinganças. Aquele que não mata cumpre a Lei, mas, se
em seu coração há resquícios de violências, ali não reina o Deus que busca
construir conosco uma vida mais humana.
Estamos percebendo que está se
estendendo cada vez mais, na sociedade atual, uma linguagem que reflete o
crescimento da agressividade, do preconceito, da intolerância, do fechamento
diante de quem pensa e sente de maneira diferente... Cada vez são mais
frequentes os insultos ofensivos, proferidos só para humilhar, desprezar e
ferir. Palavras nascida da rejeição, do ressentimento, do ódio ou da
vingança...
Por outra parte, as conversações
(sobretudo nas redes sociais) estão tecidas de palavras injustas que espalham
condenações e semeiam suspeitas (fake-news). Palavras ditas sem amor e sem
respeito que envenenam a convivência, causam danos e rompem as relações entre
as pessoas.
Portanto, os mandamentos
continuam tendo sentido. São um mapa de rota, uma proposta, um chamado para
entender a vida. A chave é compreendê-los e vivê-los, não a partir do medo ao
fracasso e ao castigo, mas a partir da disposição de crescer humanamente na relação
com os outros. Quê nos ensinam eles sobre o ser humano, sobre as relações
sociais e sobre nós mesmos? Quê caminho nos propõem para a vida? Quê horizonte
nos mostram?
É necessário dirigir nosso olhar a
Jesus para que, na comunidade cristã, a instituição não seja mais importante
que o Evangelho, nem que a Lei seja mais importante que a misericórdia. O Plano
de Deus e a fé cristã são muito mais que uma adesão doutrinal, é humanizar-se
para amar. “O
cristianismo não é uma
ética
de mínimos de justiça, mas uma religião de máximos de felicidade. Os mínimos de
justiça lhe parecem irrenunciáveis, mas tais mínimos não esgotam o conteúdo da
religião cristã. Suas propostas não competem com a ética cívica, senão que a
complementam. Enquanto que a universalidade dos mínimos de justiça é uma
universalidade exigível, a dos máximos de felicidade é uma universalidade
ofertável” (Adelia
Cortina). A justiça do Evangelho, centrado no amor, é um plus sobre a justiça
humana, centrada na lei.
Texto
bíblico: Mt
5,17-37
Na oração: O empenho em favor da justiça não terá fim. Numa releitura da 4ª
bem-aventurança podemos afirmar:
“Felizes os
famintos de justiça, que nunca serão
saciados”.
-
Frente às pessoas que pensam e sentem de maneira diferente, o que prevalece em
você, o peso da lei ou a força da misericórdia?
-
Como você vive o quinto mandamento -“não matar” - no uso das redes sociais?
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