“Ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43)
Celebramos neste domingo a festa de “Cristo Rei”, cume do Ano Litúrgico.
Muitos se sentem incomodados com essa imagem. Não
querem que Cristo seja “rei”, não suportam a imagem de um monarca governando a
partir de cima. De fato, quando o Papa Pio XI (1925) proclamou esta festa,
havia um interesse nada evangélico: a Igreja estava perdendo seu poder e seu
prestígio, acossada pela modernidade. Como pura imitação dos reis deste mundo,
a Igreja desejava reconquistar sua influência, correndo o risco de utilizar
este título para manipular ideias, dominar consciências, alimentar sentimentos
de culpa, impor o servilismo e o medo...
Mas, esta festa de “Cristo Rei”, pode ser
ocasião propícia para “transgredir” nossa concepção de “rei” e “reinado”, e
evitar um triunfalismo religioso, pura imitação dos reis deste mundo que vivem
às custas de seus súditos.
Jesus, no seu anúncio e vivência,
desencadeou um movimento de Reino, sem tomada de poder, sem palácios e
riquezas, sem cetro de comando, sem instituições militares de domínio, sem
meios de imposição econômica, sem títulos de nobreza. Mas sua visão de Reino
não foi acolhida; por isso foi rejeitado pelos sacerdotes do templo e pelos
representantes do poder do império romano.
Evidentemente se trata de um rei muito estranho, em discordância
total com os reis de então e os de hoje.
É chamativo este rei ser
crucificado entre dois “malfeitores”; não se tratava de criminosos comuns, mas
de homens que se haviam levantando contra o poder de Roma.
Algo havia em Jesus que permitia
interpretá-lo como um perigo para o poder imperial. Um poeta que canta a beleza
dos lírios do campo ou dos pássaros do céu não terminaria sua vida dessa
maneira.
A piedade cristã procurou cobrir Jesus de Nazaré
com títulos de glória tão pomposos que quase o sepultou de novo. Ao elevar o
carpinteiro da Galileia até a mais alta dignidade, ao fazê-lo subir até o mais
alto dos céus, ao coroá-lo rei dos reis e senhor dos senhores..., quase
conseguiu silenciar por completo o Jesus dos pobres, das multidões famintas,
dos marginalizados, o Jesus rodeado de “más companhias e de pecadores”. Pintaram-no
tão acima no céu e tão cheio da deslumbrante luz divina, que quase não somos
mais capazes de contemplar Jesus percorrendo os caminhos poeirentos da Galileia,
em meio aos mendigos, leprosos, pobres e excluídos, no empenho por tornar
presente o sonho de Deus para este mundo.
Enfim, acabamos por esquecer o que
é nuclear em nossa fé cristã: em Jesus, Deus se faz homem, mas homem pobre;
nasce em um estábulo, não tem onde reclinar a cabeça e morre desnudo numa cruz,
o suplício dos últimos, dos mais pobres daquela sociedade. Jesus sempre viveu
voltado para aqueles que sofriam e necessitavam de ajuda. Não ficou alheio a
nenhum sofrimento. Sua missão era essa: “aliviar o sofrimento humano”. Por isso
se identificou com todos os pobres e excluídos da história.
A narrativa lucana deste domingo é muito
provocativa: o único que o reconhece Jesus como rei é um condenado à morte, um
maldito, um marginalizado da lei. Este está mais perto do reinado de Deus que
as autoridades religiosas e as demais pessoas. Por isso Jesus o acolhe como
companheiro inseparável. Juntos morrerão crucificados e juntos entrarão no
Reino de Vida.
Jesus sempre viveu “em más companhias” e agora
morre entre dois malfeitores. Mais uma vez, não assume o papel de juiz sobre os
outros, mas oferece uma nova chance de salvação. O moribundo que dá vida:
presença solidária, vida des-centrada que, mesmo em meio ao pior sofrimento,
oferece companhia e consolo a outros sofredores.
Um dos malfeitores, impactado pela
serenidade e testemunho de Jesus “rouba o paraíso”.
Em meio aos escárnios e zombarias,
brota do seu coração uma surpreendente invocação: “Jesus,
lembra-te de mim quando entrares no teu reinado”.
Não se trata de um discípulo ou
seguidor de Jesus. Lucas nos apresenta um malfeitor como admirável exemplo de
fé no Crucificado, e que no último instante de sua vida “roubou” a promessa de Vida que acontece no “hoje”.
“Hoje estarás comigo no paraíso”.
À primeira vista parece um paradoxo que dos
lábios de um homem aparentemente derrotado e praticamente moribundo, brote uma
palavra de vida, acompanhada de uma
certeza que a faz eterna, ou seja, válida para todo momento, em um presente
sempre atual: o “hoje” de Lucas
significa “todo momento”, qualquer instante em que ouvintes ou leitores se
abrem à Palavra.
Jesus revela uma promessa que muitas pessoas
precisam ouvir hoje, sobretudo aquelas que carregam cruzes injustas e pesadas, que vivem realidades
atravessadas pela dor, pela solidão, incompreensão ou pranto...
Desse
modo, o evangelista parece estar nos dizendo: “Essa
Palavra é válida também para ti, hoje, desde que sejas capaz de abrir-te a ela e acolhê-la.
Também para ti há uma promessa de vida, que não se acaba na fronteira da morte.
Tu também ‘hoje estarás comigo
no paraíso’”
Assim
compreendida, a narração nos apresenta uma dupla questão: por um lado, como
pôde Jesus pronunciar essa Palavra de Vida nessas circunstâncias de morte?; por
outro, como podemos acolhê-la, de modo que sejamos alcançados e vitalizados por
ela?
A festa de “Cristo Rei” nos convida também a tomar a Cruz
da fidelidade e do serviço solidário, e “descer” com Jesus até à cruz da
humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à
vida evangélica, nos fazem descer aos porões das violências sociais e
políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados pelo preconceito
e intolerância, às periferias insalubres da miséria das quais todos fogem e
onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o
Crucificado, identificado com os crucificados da história.
Entende-se,
assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na
Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Nele se condensam todos os
gritos da humanidade sofredora.
Ao
ecoar seu grito junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito
que não fica no vazio, mas aponta para a vida.
Texto bíblico:
Lc 23,35-43
Na
oração:
O
Crucificado desmascara nossas mentiras e covardias; pendente na Cruz Seu grito
denuncia o aburguesamento de nossa fé, a nossa acomodação ao bem-estar e nossa
indiferença diante daqueles que sofrem. Celebrar a festa do “Cristo Rei” é
aproximar-nos mais dos crucificados da nossa história e comprometer-nos a
tirá-los da Cruz.
Como
soarão estas palavras no interior de cada um de nós: “Hoje estarás
comigo no Paraíso”
+ Hoje: porque as mudanças, a nova criação,
a humanidade reconciliada, não tem que esperar mais; hoje, agora, já...; talvez
esse “hoje” não chega é por causa de tantas pessoas que não decidem, não optam,
esperam sentadas...
+ Comigo: promessa de viver em sua companhia
e desperta ecos de uma plenitude que não conseguimos entender.
+ No paraíso: que não é um mítico Éden, mas
lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais pranto, nem dor; realidade já
presente onde habitará a justiça e a paz.
- Deixar
ressoar esta expressão de Jesus para construir, hoje, o Paraíso em nosso
cotidiano.
Que a festa de Cristo rei seja uma ocasião privilegiada que nos ajude a des-velar
a verdadeira realeza de Jesus, o carpinteiro de Nazaré, para poder segui-Lo de
perto, comprometendo-nos com seu modo de ser e viver.
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