“...que eu não perca nenhum daqueles
que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,39)
Ao celebrar o “Dia dos mortos”, todas as
culturas e religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se pode dizer,
ou o que só pode ser dito com muito recato: que a morte é passagem,
eclosão, nascimento; que nela entramos nesse processo definitivo de libertação,
de transformação, de acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à
Santidade de Deus...
Este dia, em que fazemos “memória daqueles(as) que já vivem a Páscoa
definitiva”,
é uma ocasião privilegiada para considerar a morte como evento humano e cristão; sabemos do seu aspecto
doloroso, mas, a experiência cristã insiste que ela deve ser entendida também
como um gesto de generosidade: “morrer é deixar um lugar para os outros”.
Participando da morte de
Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de decisão, de
entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos
ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança,
a ilusão de sermos imortais, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer
de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
O Evangelho nos ajuda a descobrir que o cuidado
doentio da própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma
vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade
da vida à medida em que ela é entregue para dar vida a outros.
O ser humano não deve admitir sua morte
como uma derrota humilhante, mas, do mesmo modo que pode dar direção à sua
própria vida, deve também incluir o ato de morrer, o último ato de sua vida, o
ápice de sua existência temporal.
A morte somente pode ter um sentido e
significação se a vida também os tiver; quando alguém sabe “para quê e para quem vive”, realizando sua original missão, pode morrer em
paz.
Aqueles que vivem intensamente enfrentam com grande
serenidade seu envelhecimento e a proximidade da morte, vendo nela mais uma
etapa no processo normal de seu amadurecimento e de sua realização.
Conscientes de ter vivido por alguma causa, de
ter levado uma vida plena, podem dar sentido e significado espontâneos ao
último ato de sua existência, a morte. É o modo como
alguém vive que qualifica a morte. Há mortes que, para além da inevitável dor
que causam aos familiares e amigos, provocam paz, agradecimento, vontade de
viver seriamente, despertam impulsos para se levantar e sair da
superficialidade e da mediocridade.
Sabemos que toda expressão de vida flui para a morte.
No entanto, porque sabemos que somos mortais e dotados de liberdade,
nós, seres humanos, nos interrogamos sobre o sentido da vida;
somos capazes de vivê-la como um projeto, fruto de nossa decisão e podemos
transformar a morte no último e supremo ato de nosso viver.
A consciência de que se morre por alguma grande e
nobre causa despoja a morte de seu caráter de catástrofe absurda, não somente
aos olhos de quem vai morrer, mas também aos olhos dos que o amam.
A morte se transforma em “fator de criação
de vida”, em “boa notícia” para aqueles que se atreveram a viver como Jesus
viveu. Viveram para dar vida e morreram para defendê-la. Viveram a vida
como entrega e sua morte foi uma consequência lógica de seu modo de vida.
Levaram a existência até os limites de suas possibilidades e fizeram dela uma
semente permanente de vida. A lembrança da vida e da morte dessas pessoas
continua semeando vontade de viver com autenticidade. Elas derrotaram a morte.
De fato, o modo de viver de Jesus recebe o sim
definitivo de Deus e nos mostra que a vida entregue para dar vida é o
caminho para derrotar a morte e continuar vivendo. No acontecimento
infinitamente doloroso da morte de Jesus se revela e se promete o sentido
último do viver e do morrer humano. “Jesus morreu de tanto viver”.
Fazer “memória” desta morte é abrir-nos para a
vida, não somente para aquela vida plena do mundo futuro, mas também à mais
profunda qualidade desta vida presente: bondade e esperança lúcidas,
solidariedade alegre, compaixão ousada, liberdade arriscada, proximidade
santificadora...
Como seguidores(as) de Jesus, não nos limitamos a
assistir passivamente o fato da morte. Confiando n’Aquele que é Fonte de Vida,
acompanhamos nossos entes queridos com amor e com nossa oração, nesse misterioso
encontro com Deus. Na liturgia cristã pelos mortos não há desolação, rebelião
ou desesperança. Em seu centro, só uma oração de confiança: “Em vossas mãos,
Pai de bondade, confiamos a vida do nosso ser querido”.
E afirmar a ressurreição não é consolo
ilusório, nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão
firme de continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja
ameaçada, de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida,
curando feridas, levantando corações, semeando esperanças, tirando da Cruz aqueles
que nela estão dependurados...
A ressurreição
nos faz experimentar que esta vida peregrina revela-se como tempo da gestação
concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, quer
na vida ou quer na morte, nos sintamos sempre envolvidos pelo Amor criativo
d’Aquele que é sempre Vida. Nesse sentido, “ninguém morre”, pois todos “vivem n’Aquele que vive”.
Portanto, “re-cordar” (visitar de novo com o
coração) os entes queridos que já fizeram a “grande travessia”, nos capacita a
uma nova visão da morte e a
assumi-la como acontecimento que faz parte de nossa vida. Afinal, todos morrem,
mas nem todos sabem viver.
- A primeira consequência positiva
do “fazer memória” é que a morte nos faz viver agradecidos: quando
tomamos consciência da morte, nós nos damos conta de que a vida é um verdadeiro
milagre, que cada instante aqui deve ser vivido como um presente e devemos
saboreá-lo o máximo possível, porque não sabemos quando se acabará.
- A segunda, é que a morte põe as
coisas em seu devido lugar: a morte desloca, sim, mas também realoca, porque nos
faz tomar consciência daquilo que é o mais importante em nossa vida e o que de
verdade merece a pena. Ela nos faz repensar como nos relacionamos, como usamos
as coisas, o dinheiro, onde investimos a vida, quais são os verdadeiros
valores, etc...
- E por último, a morte nos ajuda a
tomar decisões em favor da vida e a nos comprometer. S. Inácio de
Loyola, nos Exercícios Espirituais, aconselha, como critério para decidir,
imaginar-nos à hora da morte e pensar qual decisão gostaríamos de ter tomado.
Essa decisão leva irremediavelmente a um compromisso por toda a vida, pois ela
nos torna conscientes de que esta vida passa, e passa rápido, e não queremos
ficar preso às afeições desordenadas, mas desejamos investir toda nossa vida em
um projeto que nos dê sentido e nos implique totalmente.
A fé cristã não é masoquista ou sádica quando
nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade diante da nossa própria
vida.
Texto bíblico: Jo
6,37-40
Na
oração:
“Fazer
memória agradecida” de tantos familiares, amigos ou pessoas mais próximas que
viveram intensamente e que, generosamente, partiram e “deixaram um cantinho
deste mundo” mais iluminado.
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