“Perto
da Cruz de Jesus, estavam de pé a sua mãe, a irmã de sua mãe e Maria Madalena”
(Jo 19,25)
Na história do cristianismo tivemos sempre duas
grandes tentações: eliminar a cruz
ou exaltá-la. A cruz não tem a última palavra no Evangelho, mas é uma página
incômoda que não podemos saltar, como tampouco podemos negar nem ocultar a
densidade do sofrimento. Negá-lo é negar o humano.
Há algo muito perturbador na ideia de um “Deus
crucificado”. Escândalo para uns, contradição para outros, absurdo para
muitos... Onde fica a grandeza, a força, o poder? Que sentido tem ainda hoje em
dia ajoelhar-se ou fazer reverência diante do crucificado? Como olhar a face da
derrota? Como aceitar a morte do Justo? Como compreender o silêncio do Pai
diante da morte do Filho?
E aí surge a eterna pergunta pela questão do mal, pelo sofrimento dos inocentes,
pela tragédia que atravessa a criação. Como é possível? E um grito se eleva ao
céu, entre a queixa e a incompreensão: “por que?”
O Deus crucificado é, junto à ressurreição,
a intuição mais radical de nossa fé. Fala-nos da fragilidade humana, assumida
pelo mesmo Deus; fala-nos da paz como único caminho, frente a outras sendas
construídas sobre o rancor, a violência ou a lei implacável; fala-nos do amor
como a maior transgressão em um mundo que etiqueta muitas pessoas como indignas
de serem amadas; fala-nos da dor de Deus, um Deus que não é distante, alheio nem
indiferente à criação que saiu de seu coração; um Deus próximo até o ponto de
esvaziar-se em nós, conosco, por nós; fala-nos das entranhas de misericórdia
d’Aquele que se comove diante dos sofrimentos humanos; fala-nos de compromisso,
de uma aliança inquebrantável, e de risco; fala-nos de vítimas inocentes e
verdugos inconsciente que não sabem o que fazem.
Mas, nem para verdugos nem para as
vítimas a Cruz há de ter a palavra
definitiva. Tudo isso, e muito mais, é o que podemos ver quando contemplamos o Crucificado.
Gólgota, o monte da Cruz, do Amor
e do pranto. Um lugar carregado de densidade. Nele está o amor fiel e
atravessado de uma mãe, a fidelidade de um discípulo e a coragem das mulheres
que não abandonam nem fogem; ali se expressa a esperança ferida de um bom
ladrão, o reconhecimento assombrado de um centurião, a zombaria daqueles que
não são capazes de compreender e pedem provas, a indiferença daqueles que
repartem as roupas do crucificado; e, sobretudo, Gólgota desvela uma morte que
é consequência de uma vida de entrega, feita de gestos, palavras e obras; desvela
uma vida que se fez doação radical nas mãos daquele que se revela Misericórdia.
A vida de Jesus é inseparável de
sua execução, de sua morte. Estas são consequência de seu modo de ser e de estar
na vida e com as pessoas, sendo misericórdia em ação, misericórdia em relação.
O Crucificado é a expressão máxima da ternura entregue até o extremo
na missão de aliviar o sofrimento dos últimos. Por isso, a ternura é também
subversiva, porque inverte a ordem “colocando como primeiros os últimos”
(Mt 20,16). A ternura vivida até o extremo, à maneira de Jesus, tem
repercussões sociais e políticas e por isso se faz insuportável para aqueles
que “fazem
de sua força a norma da justiça”
(Sb 2,1-17) e “reprimem a verdade com a injustiça” (Rom 1,18).
Jesus é condenado porque sua
atuação e sua mensagem sacodem na raiz o sistema organizado a serviço dos
poderosos do império romano e da religião do templo. A vida de Jesus se havia
convertido em um estorvo que era necessário eliminar, como as vidas de tantas
pessoas que hoje se tornam molestas ao sistema ou que são consideradas
“presenças perigosas”. Este é o mistério que hoje estamos contemplando.
A liturgia da Sexta-feira Santa nos ajuda a abrir os olhos diante dos
crucificados de hoje e a impotente proximidade de Deus com eles.
É preciso olhar sempre a Cruz por dois lados: o dos crucificadores e o das vítimas. Do lado
dos crucificadores,
a cruz é morte. “Maldita seja a
cruz”.
Nós cristãos já temos nos acostumado a cantar “Ó Cruz, tu nos salvarás”, e
esquecemos que há cruzes que não são cristãs, mas legitimadoras da dor e da
injustiça que recai sobre as vidas as pessoas mais feridas e excluídas. A Cruz
nunca vai nos poupar da dor, mas nos dá lucidez. Ela nos impede cair em
espiritualidades evasivas, depura nossas imagens de Deus, às vezes demasiado
burguesas e light, que não suportam a prova do fracasso, da obscuridade e do
silêncio.
A violência e a injustiça geram
vítimas e contam com nossas cumplicidades. A Boa Notícia do evangelho
se manifesta a partir do reverso da história e assume a miséria, a debilidade
humana, o limite físico e psíquico, o fracasso. Por isso, a sexta-feira santa
nos revela também os aspectos mais obscuros de nossa condição humana.
Há lugares e situações de vida
diante dos quais não podemos deixar de exclamar: “Sempre é sexta-feira Santa!”: miséria, exaltação da violência,
relações centradas na intolerância, solidão, sonhos quebrados...
Aproximar-nos de cada um desses
lugares é tocar as chagas do Crucificado,
chagas que criamos e geramos com nossa indiferença e nossa omissão; chagas que
nos molestam porque cheiram mal, porque gritam e nos desmascaram,
devolvendo-nos à nossa verdade mais íntima.
Adentrar-nos em suas vidas é também
apalpar o mistério, o mistério do mal e da injustiça, o mistério de uma Vida
com maiúsculas que sempre é mais e que brota a partir de baixo e a partir de
dentro para dar à luz a esperança, embora nós, muitas vezes, não saibamos
percebê-la.
No Crucificado,
Deus nos mostra a densidade mais profunda de seu mistério. Um Deus que não só
está a favor das vítimas, mas que, à mercê de seus verdugos, revela sua máxima
solidariedade e proximidade para com “os sem poder”, com aqueles que “desfigurados, nem pareciam homens” (Is. 52,14).
Quando acompanhamos Jesus na paixão,
também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração
aberto à dor e à aflição. Essa dor esvazia nossas auto-suficiências e purifica
nossas auto-imagens triunfais, humanizando-nos. Ao contemplar o amor redentor
de Deus revelado em seu Filho Jesus, nós nos perguntamos onde está Ele
no sofrimento. Há aqui uma inversão de perguntas:
Para responde à interrogação -“Onde está Deus
nas situações de sofrimento e morte?”-, Deus nos desafia a responder à sua própria
questão: “Onde
está você no meu sofrimento?”.
Contemplando o Crucificado vamos pedir ao Senhor neste dia que nos ajude a
permanecer solidários nas situações onde a “Divindade
se esconde”
(S. Inácio), que nos ajude a olhar a Cruz e escutar o grito dos crucificados
nela; escutar os gritos daqueles que vivem na noite do sofrimento, da
violência, da injustiça e do desamor. A Cruz é um grito no qual cabem todos os
gritos da humanidade, desde o primeiro choro de uma criança até o último
suspiro de um moribundo.
Escutemos neste dia os gritos daqueles que vivem na noite do
sofrimento, os gritos dos empobrecidos, o grito dos povos e culturas condenadas
à exclusão...; todos esses gritos unidos ao grito da mãe-terra, destruída em
seus ecossistemas e explorada pela ganância.
Escutemos grito das vítimas do bilionário
negócio da venda das armas; o grito dos “descartados” e de todos aqueles que o
sistema considera como sobrantes: os sem teto, sem terra, sem trabalho; o grito
daqueles que são julgados por leis injustas em tribunais que, como Pilatos,
lavam as mãos...
Texto bíblico: Jo
19,16-30
Na
oração:
Nos
Gólgotas deste mundo, continuar apostando, gritando e proclamando Vida, apesar daqueles que investem na
cultura da morte.
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