“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
Os relatos das Aparições nos advertem de
que não se trata de uma crônica de acontecimentos. O que João quer nos
comunicar são vivências internas dos discípulos reunidos; o que
ele quer nos transmitir está mais além daquilo que entra pelos sentidos ou
podemos imaginar.
Destacamos algumas das expressões
do relato de João para formular a fé no Crucificado/Ressuscitado.
O relato deste domingo se revela como uma
catequese muito rica em conteúdo. Por uma parte, vincula a ressurreição
com a
paz, o dom do Espírito, o perdão, a fé, a missão... Por outra, parece querer responder aos cristãos da “segunda geração”, que
já não haviam conhecido o Jesus histórico, nem haviam participado daquela
primeira experiência “fundante”. É a eles, representados na figura de Tomé, que
lhes é dito:
“Bem-aventurados
aqueles que creram sem terem visto!”
São muitos os que se sentem escandalizados com o
Evangelho deste 2º. Dom. de Páscoa. Não é possível que Jesus Ressuscitado
conserve as chagas no seu corpo! Pode-se tocá-lo como se tocam as feridas
sangrentas de um torturado, as mãos frias de um moribundo, os pés feridos de um
imigrante?
Frente aos riscos de um falso espiritualismo que
quer esquecer-se da “carne”, frente a todas as tentativas de entender a Páscoa
como pura mudança de consciência, o Evangelho de João quis ressaltar a corporalidade
do Cristo Ressuscitado e o faz desta forma, ou seja, dando um destaque especial
às chagas das mãos e do lado aberto; o mesmo corpo do amor vivido e da entrega,
o corpo ferido com cravos e lança, se converte assim em um sinal visível de
Ressurreição, sinal que continua presente na realidade das pessoas.
A morte de Jesus não foi um acidente
de percurso, não é algo que se esquece, sinal de sua condição humana; o Senhor
ressuscitado continua sendo Aquele que leva em suas mãos e em seu lado as
feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da
humanidade. O Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que sofre em todos os
que sofrem no mundo.
Como cristãos, professamos: “o
Ressuscitado é o Crucificado”; por isso é necessário “tocar suas feridas”,
ali onde Ele sofre naqueles que sofrem. Portanto, contemplar o Ressuscitado
chagado impulsiona a continuar encontrando o mesmo Jesus nas chagas de todos os
sofredores da história.
É surpreendente que o evangelho de João tenha
conservado o registro da experiência de Madalena;
mas, mais surpreendente ainda é o fato de que tenha recolhido a experiência de Tomé, para assim revelar-nos que a
Páscoa significa tocar com mais força, de um modo mais profundo, as chagas de
Jesus ressuscitado.
Maria Madalena havia “tocado em Jesus” no horto
pascal, porque o amava e pela alegria de saber que Ele estava vivo. Mas, depois
teve que deixar de tocá-lo fisicamente (“não me toques”), a fim de tocá-lo e
conhecê-lo de um modo diferente, levando a mensagem da Vida de Jesus aos
discípulos, fechados numa casa. Ela que o tocou com amor, foi a primeira das
ressuscitadas com Jesus no jardim de Vida da Páscoa.
À diferença de Madalena, Tomé
precisou aprender a ativar os sentidos: olhar, escutar, tocar...; precisou descer do pedestal dos seus dogmas, das
ideias separadas, para retomar a experiência concreta do amor de Jesus, que é a
vida entregue pelos outros, amor chagado. Não basta crer em Jesus, separado de
sua vida de compromisso em favor da vida; para crer nele é preciso querer tocar
suas chagas, que são as chagas do mundo ferido por falta de amor.
Tomé começou sendo o apóstolo de
uma espiritualidade sem compromisso social, sem entrega profética, sem
solidariedade com os pobres e excluídos. Não era um apóstolo “cristão” de Jesus
crucificado, mas um praticante da religião desencarnada que alguns, ainda hoje,
continuam defendendo.
“Tocar” em Jesus, colocar o dedo em suas chagas e
a mão no seu lado aberto, é descobrir a ferida sangrenta da história humana,
vinculando assim a ressurreição com a dor dos homens e mulheres oprimidos(as),
torturados, enfermos, assassinados...
Jesus Ressuscitado continua levando em suas mãos
e em seu peito a ferida da história, não só as chagas dos cravos e o corte da
lança em seu próprio corpo, mas a chaga dos enfermos e expulsos, dos famintos e
oprimidos e a infinidade de pessoas que continuam sofrendo ao nosso lado.
O
Ressuscitado se faz reconhecível, é o mesmo Jesus, é o crucificado, é seu corpo
chagado. Trata-se de crer no Crucificado. Suas feridas são inseparáveis da
morte e da entrega a uma causa: o Reino. Não é a passagem a uma condição
superior à do ser humano, mas a mesma condição humana levada a seu cume,
assumindo sua história anterior.
As chagas, sinal de
seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Já não há lugar
para o medo da morte. Ninguém poderá tirar de Jesus a verdadeira Vida, nem
tirá-la dos seus discípulos.
A permanência dos sinais de sua
morte indica a permanência de amor; elas são as cicatrizes de um compromisso
com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do Ressuscitado
com o Jesus Crucificado.
Concluindo, podemos dizer que a experiência de
Tomé, que é também a nossa, tem um valor importante para nós, seguidores(as) do
Ressuscitado.
Hoje, ressuscitado, Jesus continua expondo-se,
deixando-se tocar sem resistências, mostrando suas feridas, permitindo que,
como Tomé, “coloquemos o dedo na ferida”. Quê paradoxo! Os sinais da
Ressurreição se encontram aí onde antes se encontravam os sinais de dor e
morte. Só quando assumimos esta realidade, poderemos testemunhar, como os
primeiros discípulos, que o “Crucificado
ressuscitou!”
São estas suas feridas e chagas nas
mãos e no lado aberto os sinais que o Ressuscitado nos mostra para que possamos
reconhecer as cicatrizes que também
nós carregamos em nossos corpos. São estes os sinais que Ele nos mostra para
que possamos pôr também nossas mãos nas feridas que continuam abertas em nosso
mundo, nas mãos e lados de tantas irmãs e irmãos, de tantos povos, de nós
mesmos. O Ressuscitado continua carregando todas as chagas e convida-nos a
tocá-las, a acariciá-las, a acolhê-las, a reconciliar-nos com aquelas que ainda
não foram integradas e pacificadas, a empenhar-nos na transformação daquelas
que são fruto da injustiça e do mal.
Páscoa é tocar e acompanhar Jesus nos
chagados da vida.
Páscoa é também (ao mesmo tempo) sentir
nas mãos e nos dedos, no coração e no olhar, o abraço de amor de todas as
pessoas. Não há Páscoa de Jesus sem corpo-a-corpo de intimidade e proximidade,
de homens e mulheres, de crianças e idosos, nos diversos tipos de encontro e
comunhão, não para possuir mas para compartilhar, não para impor-se, mas para juntos
abrir caminhos sempre novos de respeito e admiração. Assim nos toca Jesus,
assim se deixa tocar por nós.
Texto bíblico: Jo
20,19-31
Na
oração:
Trazemos gravadas em nossa geografia corporal infinitas pequenas mortes
e feridas; às vezes tão pequenas que não deixam cicatrizes visíveis, mas estão
aí, cravadas em nosso corpo.
Contemplando as chagas do Ressuscitado, seremos capazes de reconhecer
que fomos criados para ressuscitar, com as nossas feridas integradas,
pacificadas, iluminadas...; nossa sensibilidade será ativada o suficiente para
poder reconhecer esses mesmos sinais de dor em outros corpos e rostos.
- “Fazer memória” das cicatrizes na sua história corporal, unindo-as às
“feridas do Ressuscitado”.
Isso
já é ressurreição, plenitude do
mistério da comunhão
através dos gestos, da proximidade, do abraço...
A cada abraço sentido, uma
ressurreição também vivida!