“Quem perder a sua vida por causa de
mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8,35)
O Seguimento
é tema central em todos os evangelhos, ou seja, “fazer o caminho” com Jesus,
identificando-se com Ele na entrega aos outros, sem buscar para si poder ou
glória.
Ao longo de todo seu escrito, Marcos manifesta
uma prevenção especial frente a qualquer ideia de um messianismo triunfalista,
centrado no poder e na glória. O caminho do Messias – repetirá diversas vezes –
passa pela entrega e pela cruz. Os discípulos, pelo contrário, aparecem
obcecados, “surdos e cegos”, discutindo habitualmente por questões de poder, de
importância e de privilégio, enquanto que Jesus lhes fala de serviço e doação.
Neste sentido, é sumamente
significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho
de Jesus e o caminho dos discípulos: nos três anúncios da
paixão, quando Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles
manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos
caminham em direções diametralmente opostas: o caminho serviço X o
caminho da ambição.
Mas,
para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o
“pensamento de Deus”.
A
vontade do Pai nunca passará pelo caminho do poder sobre os
outros, senão pelo caminho do serviço.
No evangelho deste domingo, a divergência entre
ambos caminhos fica explicitada tanto na reação de Pedro como na resposta dura
de Jesus. O caminho dos discípulos reflete os
mecanismos próprios do ego, que não
busca outra coisa a não ser a auto-afirmação a qualquer preço, apegando-se ao
ter, ao poder e ao aparentar, ao mesmo tempo que foge de tudo o que soa a
desapego e entrega.
Para o ego,
a entrega desinteressada é uma loucura, que é preciso evitar a todo custo. Para
Jesus, pelo contrário, o impulso do ego se opõe frontalmente a Deus.
A resposta de Jesus a Pedro é a
mesma que Ele deu ao diabo nas tentações; nem aos fariseus, nem aos letrados,
nem aos sacerdotes dirige Jesus palavras tão duras. Quer com isso indicar que a
proposta de Pedro era a grande tentação, também para Jesus. A verdadeira
tentação não vem de fora, mas de dentro. O difícil não é vencê-la, mas
desmascará-la e tomar consciência de que ela é a que pode arruinar a Vida.
Pedro é “Satanás” na medida em que
espera que Jesus siga o caminho do messianismo convencional, glorioso, vencedor
dos inimigos do povo, que estabelece seu próprio reinado, e não aceita o
caminho que Jesus começa a propor, o do serviço que acaba na cruz.
Mas Jesus não rejeita Pedro e nem
pede a ele simplesmente que se vá ou se afaste (costuma-se traduzir por
“aparta-te de mim...”). Diz-lhe “põe-te detrás de mim”; a mesma expressão que utiliza no versículo seguinte: “se alguém
quiser vir atrás de mim...”.
Ou seja, Jesus está repropondo a Pedro e aos discípulos o seguimento e que se ponham
atrás d’Ele, agora que o caminho vai passar pela cruz.
E aquí vem a frase que fecha, como chave de ouro,
toda a cena: “Se
alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”.
Uma consideração superficial destas palavras deu
margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor
e a negação da própria vida e da própria identidade.
Jesus vive na sabedoria de onde brota a
fidelidade. Não vive para o ego, que
busca sempre seu interesse e comodidade, mas está ancorado naquela identidade
profunda, na qual permite que a Vida flua, numa atitude de serviço ou de
entrega sábia.
Aquele que quer salvar seu ego,
perde a Vida, porque se fecha numa jaula estreita e se introduz em um labirinto
de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma
existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o ego, não pode
evitar uma sensação de profunda insatisfação.
Todos os caminhos autênticos de espiritualidade
começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia de si mesmo, não para negar-se
como pessoa, mas, pelo contrário, para crescer ao recuperar sua verdadeira
identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, então me encontro; quando meu
ego diminui, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus. A “renúncia a si mesmo”, que Jesus propõe, não é um exercício de masoquismo,
mas uma maneira mais profunda de realização humana.
Portanto, a
expressão “renunciar a si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos,
acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do
falso “eu” é imprescindível para poder entrar no caminho de vida que Jesus
propõe.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu
superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de
nossa identidade mais profunda, a vida que somos.
Essa é a
Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele
estava identificado (“Eu
sou a Vida”)
e que buscava despertar em todos os seus seguidores(as).
O ego compara-se com os outros e
compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo
dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação
aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade
e pela desonestidade.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e
nem da centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que,
superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado e
oblativo”, vivendo em favor dos outros, dará pleno sentido a toda sua
vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana.
Precisamos reconhecer que, aquilo que para nosso
ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação.
“Renunciar a nós mesmos” não é cair em um auto-menosprezo,
nem anulação daquilo que somos, mas descobrir que há valores que estão mais
além de nós mesmos. É tomar consciência que há recursos e capacidades superiores
pelos quais vale a pena investir a vida, assumindo as consequências.
“Tome
sua cruz e me siga”:
tampouco Jesus quer apresentar-nos um cristianismo e um seguimento doloroso. A
verdadeira cruz do cristão não está no sofrimento, não está na dor de
privar-nos de tudo, não está nas penitências e sacrifícios... A verdadeira cruz
do seguimento de Jesus é a da fidelidade
ao evangelho, ao amor, ao compromisso, à própria vocação de serviço.
A cruz do cristão não pode ser outra que a Cruz do mesmo Jesus. Ele
nunca amou a cruz como cruz. Mas tampouco fugiu dela por manter-se fiel ao
Reino e ao Evangelho que anunciou. Ele nunca amou a dor pela dor, ao contrário,
sempre buscou aliviar a dor dos outros. Mas tampouco fugiu, negando sua própria
verdade, sua própria missão e sua própria identidade.
A cruz para todo(a) seguidor(a)
nunca pode ser uma meta; ela é sempre uma consequência. A cruz para o cristão não
é algo que se busca, mas uma realidade que chega a partir de fora, como
consequência da verdade e da autenticidade evangélica.
Texto bíblico:
Mc 8,27-35
Na oração:
Nosso coração
se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizado
na identidade do próprio
Jesus (“quem
sou eu para vocês?”).
A contemplação
de Jesus é também revelação do eu
“escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação
da verdade do meu eu profundo, onde descubro os traços
de minha própria fisionomia.
Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus
para mim” – se não me pergunto ao mesmo tempo:
“Quem sou eu, diante do Senhor”?
Sem
identificação não haverá um encontro
profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me
aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha
própria identidade.
- Sua vida cotidiana é:
Descentrada?
Oblativa? Aberta ao diferente?...
Ou: auto-centrada,
“buscando o próprio amor, querer e interesse”?
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