“Pois é de dentro, do coração humano,
que saem as más intenções...” (Mc 7,21)
Depois de um parêntesis de cinco
domingos dedicados ao cap. 6 do evangelho de João, retomamos o percurso de
Jesus seguindo o evangelista Marcos. Após a multiplicação dos pães, Jesus se
encontra nos arredores do lago de Genesaré, um lugar afastado de Jerusalém,
onde era menor a vigilância em relação ao cumprimento das leis e das normas de
purificação.
O texto de hoje contrapõe a
prática dos discípulos com o ensinamento dos letrados e fariseus. Jesus se
coloca a favor dos discípulos, e aproveita a ocasião para nos mover a ir mais
além; Ele nos adverte que toda norma religiosa, escrita ou não, tem sempre um
valor relativo.
A Lei deve ser cumprida quando nos leva à
plenitude humana. Para os fariseus, é preciso cumprir o preceito por ser
preceito e não porque ajuda a ser mais humano. Todas as normas que podemos por em
conceitos, são preceitos humanos; não podem ter valor absoluto. Um preceito que
pode ser adequado para uma época, pode perder seu sentido em outra. Mais ainda,
as normas morais estão mudando sempre, porque o ser humano vai conhecendo
melhor seu próprio ser e a realidade na qual vive. As normas antigas não servem
para as situações novas que vão aparecendo. Algumas coisas que eram importantes
para o ser humano no passado, perderam agora sua força quando se trata da
plenitude humana.
Em todas as religiões, as normas
e preceitos são dadas em “nome” de Deus. Isto pode ter consequências
desastrosas, se não é entendido bem. Todas as leis são humanas. Quando essas
normas surgem de uma experiência autêntica e profunda do que deve ser um ser
humano e o ajudam a atingir sua plenitude, podemos chamá-las divinas.
O preceito de lavar as mãos antes
de comer não era nada mais que uma norma elementar de higiene, para que as
enfermidades infecciosas não fizessem estragos entre aquela população que vivia
em contato com a terra e os animais. No instante em que uma tradição se
converta em um entrave que impeça a pessoa ser mais humana, deve-se abandoná-la.
É o que quer dizer Jesus: “deixais de lado
a vontade de Deus para apegar-se às
tradições dos homens”.
O que Jesus
critica não é a Lei como tal, mas a interpretação que faziam dela. Em nome
dessa Lei oprimiam as pessoas e lhes impunham verdadeiras torturas com a
promessa ou a ameaça de que só assim Deus estaria a seu favor. Davam valor
absoluto à Lei. Todas as normas tinham a mesma importância, porque seu único
valor estava no fato de que eram “dadas” por Deus. Isto é o que Jesus não podia
aceitar.
Toda norma, tanto
ao ser formulada como ao ser cumprida, deve ter como fim primeiro o bem do ser
humano. Nem sequer podemos colocá-la à frente de Deus, porque o único bem de
Deus é o ser humano. A base de todo fundamentalismo está em propor o bem de
Deus, inclusive contra o bem do ser humano.
Deus é Pai/Mãe de
Misericórdia e nunca vem complicar nossa vida com uma carga de preceitos, leis,
tradições... O que Ele deseja é que vivamos intensamente; as leis e normas são
só uma mediação para possibilitar mais vida. No momento em que elas bloqueiam o
fluir da vida com o peso dos sentimentos de culpa, não devem ser cumpridas.
O segundo ensinamento é
consequência deste: não há uma esfera sagrada na qual Deus se move e outra
profana da qual Deus está ausente. Na realidade criada não existe nada impuro. Tampouco
tem sentido a distinção entre o ser humano puro e o ser humano impuro, a partir
de situações alheias à sua vontade. Por isso, a pureza nunca pode ser
consequência de práticas rituais. A única impureza que existe é quando o ser
humano busca seu próprio interesse à custa dos outros.
Todo aquele que
pretende nos impor leis em nome de Deus, está nos enganando. A vontade de Deus
é encontrada dentro de nós. O que Deus deseja de nós está inscrito em nosso
mesmo ser, e nele temos que descobri-la. A prioridade não corresponde,
portanto, às doutrinas, mas ao coração. Porque costuma ocorrer algo que é
chamativo: quanto maior a insistência nas doutrinas e nas leis, mais frieza e
petrificação no coração. Isto parece ser a reprovação que Jesus dirigia aos
fariseus, ou seja, às pessoas que tendiam a absolutizar a religião: “honra-se a Deus com os lábios”, mas o coração
está apagado.
É o que sai de dentro
que determina a qualidade de uma pessoa. O que comemos pode fazer bem ou mal,
mas não afeta nossa atitude espiritual A armadilha está em confiar mais na
prática externa de uma norma que na atitude interna que depende só de nós. As
práticas religiosas, muitas vezes, são um álibi para dispensar-nos da conversão
do coração.
A contaminação e a poluição do
meio ambiente são realidades por demais conhecida. Nas grandes cidades, o ar
está cada vez mais irrespirável. Em algumas delas já se começou a regular o
tráfego para diminuir o ni-
vel de poluentes, através da
proibição de circulação de automóveis com determinados números de placa. Tal
situação, juntamente com a mudança climática e a ecologia, é uma das
preocupações dominantes das pessoas que vivem no mundo considerado
“desenvolvido”.
Mas, junto à contaminação
ambiental, que também afeta os povos em desenvolvimento, transformados em
lixões dos países ricos, há outra contaminação mais profunda que temos
esquecida. E, no evangelho de hoje, Jesus nos fala da necessidade de cuidar da ecologia interior.
Assim como está
sendo proibida, cada vez mais, a circulação de veículos contaminantes, também
se deveria impedir a saída às ruas de pessoas com mentes contaminadas, cheias
de sentimentos poluídos, palavras ácidas, gestos agressivos, carregada de
entulhos – mágoas, ira, inveja – que se acumulam no próprio coração. Seus passos sujam os caminhos de lama,
deixando um rastro de tristeza e desalento; seu humor intoxica-se de raiva e
arrogância; seu temperamento explode com frequência, expelindo tanta fuligem
pelas chaminés da intolerância e do preconceito.
O termo “ecologia” não se
refere apenas a uma “ecologia exterior”, ou seja, aos
ecossistemas em seu instável equilíbrio. Engloba também toda uma “ecologia
interior”, própria do ser humano, ou seja, o “mundo” de sua psique, de seus afetos, de
seus dinamismos, de sua espiritualidade, de suas relações básicas, quer consigo
e com os outros, quer com o mundo e com Deus.
Para ordenar a fragmentação
interna precisamos dialogar com as energias instintivas e que se tornaram
energias “dia-bólicas” (que dividem). Cada uma delas representa
os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos...
que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior.
São os
chamados “pecados de raiz”, ou seja,
endurecimentos, fechamentos e fixações... que impedem a energia vital, a
misericórdia de Deus fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados por
nós mesmos e que interceptam a relação com Deus, com os outros e com as
criaturas, portanto, com a plenitude da vida, e cortam nossas próprias
potencialidades de vida.
Quando
falamos de “pecados de raiz”
queremos destacar a necessidade de uma conversão radical.
O convite a “ter
um coração próximo a Deus” poderia traduzir-se deste modo: viver conscientes de
nossa verdadeira identidade, em conexão com o que realmente somos – essa é a
dimensão especificamente espiritual – o qual nos abrirá a uma vivência aberta e
inclusiva, humilde e tolerante, prazerosa e compas-siva..., a partir da
sintonia radical com Aquele em quem nos desvelamos e nos reconhecemos.
Texto
bíblico: Mc
7,1-8.14-15.21-23
Na
oração:
Diante do Evangelho deste domingo, pare
por uns instantes, esqueça a poluição do ar e do mar, a química que contamina a
terra e envenena os alimentos e medicamentos, e pergunte a si mesmo(a):
- Como anda o meu equilíbrio ecobiológico?
- Tenho dialogado com meus órgãos
interiores?
- Acariciado o meu coração? Respeito a
delicadeza de meu estômago?
- Acompanho mentalmente meu fluxo sanguíneo?
- Tenho consciência de onde nascem minhas
palavras?
- Tenho queimado a minha língua com as
nódoas dos comentários maldosos da vida alheia?
- Meus olhos estão sujos pelas ilusões de
poder, fama e riqueza? (Frei Betto)
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