“Certo proprietário plantou uma
vinha...”
(Mt 21,33)
Segundo o relato da Criação, nós
viemos da argila, do húmus... Por isso carregamos em nosso corpo os mesmos
elementos físico químicos da natureza: minerais, plantas, animais...
O universo inteiro mora,
adormecido, dentro de nossos corpos. Cada ser humano carrega latente em seu
íntimo toda a sabedoria do universo. O poeta americano Walt Whitman nos legou
uma frase maravilhosa e emblemática sobre este tema: "Eu
sou contraditório, eu sou imenso. Há
multidões dentro de mim".
Há multidões dentro de nós, não
só de animais, plantas, pássaros, peixes, minerais... como também de homens e
mulheres de todas as etnias, os jardineiros da criação divina. Há um universo inteiro dentro do corpo, universo mais fantástico, mais
colorido, mais belo que o universo que
existe do lado de fora.
E o maior desafio é,
justamente, a convivência e a harmonia com todo o universo que carregamos em
nosso próprio interior.
Partindo do evangelho de hoje, podemos dizer que há
uma vinha em nosso interior, plantada
com todo cuidado. A vinha interior é plantada por Deus em função da vida; por
isso ela é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador;
ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.
Ela deve ser o lugar da fecundidade, da convivência e da celebração.
A vinha interior é o “mundo” de nossa psique, de
nossos afetos, de nossas energias, de nossa espiritualidade, de nossos
sentimentos e desejos, de nossas relações básicas, quer conosco mesmos e com os
outros, quer com as criaturas e com Deus. Quando todos estes dinamismos estão
pacificados e integrados, cria-se um “cosmos” interior, expressão da “vinha
secreta” que todos carregamos.
Esta vinha é expansiva, acolhedora, aberta a todos,
compartilhando seus frutos abundantes. Ela é lugar de movimento, de encontro,
de desafio, lugar provocativo e criativo..., enfim, lugar carregado de presenças.
Somos a verdadeira vinha a partir da qual Deus nos encontra e se dá a conhecer;
cada um de nós é autêntica vinha da eterna presença de Deus.
Na perspectiva bíblica, a imagem
da vinha nos fala de convivência,
harmonia, alegria, de acolhida e da gratuidade, por ela ser dada em herança.
Os homens e as mulheres de todos
os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de
sua interioridade, sonhos de rara beleza. São desejos de convívio, de superação
da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e da harmonia... O “eu interior” é uma vinha que se des-vela e se re-vela aos
olhos encantados.Toda pessoa possui, nas profundezas de si mesma, um lugar misterioso onde a vinha se esconde, muitas vezes em meio
a entulhos de feridas, traumas, rejeições.... Ela deve reencontrar a “vinha perdida”, não fora mas nas
profundezas de si mesma. Há
dentro dela uma vinha secreta,
fechada, que precisa ser aberta.
Caminhar pelo
vinha interior é uma aventura, um desafio... Essa é a peregrinação interior:
ampliar o espaço da vinha para que ela seja sempre lugar da acolhida e da
festa.
É nesta direção que a imagem bíblica da vinha
também aponta: torná-la uma fonte de bênçãos, de comunhão com as outras pessoas
e estreitamento de relações com o próprio Criador. A vinha é o lugar no qual
não só existimos e revelamos nossa verdadeira identidade, mas onde somos
chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com Deus e com todos.
No entanto, há sempre em nós uma tendência a delimitar,
defender e fechar-nos em nossa própria vinha. Isso fazemos de maneira tão
zelosa que nem vemos aquilo que está para além da nossa vinha. São grandes os
riscos de vivermos em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza atrofia a
solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de
compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. A própria vinha se torna uma
“bolha de proteção” e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo
aquilo que fazemos.
Contemplando o cenário do nosso
interior vamos também tomando consciência que perdemos o sentido da corrente da
vida e de sua imensa diversidade. Esquecemos a teia das inter-dependências e da
comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.
Segundo a imagem bíblica da Vinha,
quando rompemos a aliança com Deus e nos afastamos d’Ele, ela fica estéril. Por
nossa atitude de arrogância e de autossuficiência, nós nos fazemos centro e
vamos deixando que nossos instintos de poder, vaidade, prestígio... ocupem o
espaço da vinha interior. Este auto-centramento se revela como uma força de
desintegração de nós mesmos com nossa fonte Original, como força de
auto-destruição e, por fim, como ruptura de comunhão com o Todo.
A “centração em nós mesmos”, sem
levar em conta a rede de relações que nos envolve, provoca a quebra da
“religação” com tudo e com todos. Este é o veneno que nos corrói por dentro: a
petrificação de nossa interioridade, o embrutecimento de nossa sensibilidade, a
perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da
transcendência, a atrofia da comunhão com todos...
E nossa vinha interior deixa de ser
fecunda e oblativa.
Deus investiu pesado no plantio e no cuidado
desta vinha interior, esperando frutos saborosos.
Uma leitura honesta do texto do evangelho de hoje
nos move a fazer-nos graves perguntas: Estamos produzindo em nossos tempos os
frutos que Deus espera de sua vinha: justiça para com os excluídos,
solidariedade, compaixão para com quem sofre, a vivência do perdão...?
No entanto, quê coisas horríveis fizemos com a
vinha interior!
Ferir nossa vinha é ferir o próprio Criador, é
atrofiar a vida e suas possibilidades.
Quando observamos esta vinha outra verdejante,
lugar da criatividade, da relação, da comunhão... e agora entulhada de lixo, de
contaminação... uma sensação de violação, de sacrilégio, se manifesta em nosso
interior. E uma voz ecoa das profundezas de nosso ser: “Que fizestes de minha vinha!”
Deus não tem por que abençoar uma
vinha estéril da qual não recebe os frutos que espera. Não tem porque
identificar-se com nossa mediocridade, nossas incoerências, desvios e pouca
fidelidade. Se não respondemos às suas expectativas, Deus continuará abrindo
caminhos novos para seu projeto de salvação com outras pessoas que produzam
frutos de justiça.
Ampliar a vinha do coração implica agilidade,
flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas
descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando a “vinha
interior”, abrasada e iluminada pela força do Espírito, começa a romper as paredes
de proteção e se conecta com a grande “vinha exterior”: lugar da missão, do
compromisso, do empenho em favor do Reino.
Não tem sentido ampliar a “vinha externa” se
nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas
mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Vinha ampla
é convite a sonhar alto, a pensar grande..., ousar ir além, rompendo o modo
rotineiro de viver.
Por isso, nós e o universo só seremos felizes quando todos formos uma
grande vinha, por onde o Senhor
passeia, à hora da brisa fresca da tarde (Gen 3,8) . A
vinha é a face graciosa que Deus oferece à humanidade. Na vinha, Deus realiza
seu sonho. E fica feliz.
Texto bíblico: Mt 21,33-43
Na oração: deixe o Espírito transitar pela sua
vinha interior, para que aí Ele estabeleça o “cosmos” (harmonia e
beleza”) e crie um coração novo, de onde brotarão frutos de refinado sabor.
- Dê nomes aos
“frutos” de sua vinha interior.
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