“Senhor,
quantas vezes devo perdoar...?” (Mt 18,21)
Pouca gente, mesmo
entre cristãos, compreende o sentido profundo do perdão.
A maioria pensa que é
forma de anistia do sentimento, esquecimento, ato interno capaz de compreender
o ofensor e desculpá-lo no fundo do coração misericordioso; para uns o perdão significa passar por cima de um
erro ou violência; para outros, o perdão é próprio das pessoas frágeis...
De fato, o perdão não
se encaixa confortavelmente dentro dos
padrões naturais do comportamento humano. Ele não nasce espontâneo dentro do
coração do ser humano.
A capacidade de perdoar
a si mesmo ou aos outros é a marca registrada de uma personalidade madura.
Representa considerável
avanço em relação ao mais primitivo desejo de vingança, retaliação e revide.
O perdão ataca, com todo vigor, aquilo que parece ser uma lei de
nossa história. Isso porque a lógica que regula as relações inter-humanas é
regida pela lei do mais forte, ou, no melhor dos casos, pela lei da
reciprocidade, da equivalência, como norma de justiça.
No perdão, assume-se uma atitude que não contabiliza mesquinhamente o
que se fez; deve-se ter um gesto inovador, um gesto criativo. Caso contrário,
fica-se prisioneiro da lógica repetitiva da violência.
Perdoar é ir além do
princípio de retaliação. Por isso é uma atitude atrevida e ousada.
O perdão representa a inovação: cria espaço onde já não
impera mais a lógica da norma judiciária.
Perdão não é esquecimento do passado, é o risco
de um outro futuro que não aquele imposto pelo passado ou pela memória ferida.
É convite à imaginação. É preciso aventurar-se no encontro com o outro.
Quem perdoa sabe estar
correndo um risco, abandonando o ajuste de contas pela força ou então
renunciando à força do direito. Mas sabe também que, sem esse risco, a história
não terá nenhum futuro e a violência irá se repetindo indefinidamente.
Sabemos que a violência não
tem regra em si mesma, é pura repetição. Já o perdão quebra a lógica do “olho por olho, dente por dente” e
cancela o movimento repetitivo da violência.
Quem perdoa sai fora desse
jogo, arriscando a própria vida. O perdão
quebra a cadeia lógica própria das relações humanas, submetidas ao sistema de
equivalência da justiça (cf. Mt. 5,38-42).
O seguidor de Jesus, ao entrar em sintonia com o
Deus fonte do perdão, ultrapassa toda imposição da justiça legal e abre espaço
a uma nova relação com o outro. Assim, o perdão,
transformando as relações humanas, possui a capacidade para revelar o rosto
original de Deus.
O perdão é
um ato não-humano, parece mesmo ser um ato puramente divino.
Joan Chittester chama o perdão
“
o mais divino dos atributos divinos”.
“Perdoar - ela afirma
-é
ser como Deus”. Mas
este ato divino nos é revelado que ele está ao nosso
alcance, porque Deus nos convida a ele. O
perdão é divino porque, para o ser
humano, ele é verdadeiramente divino em seus efeitos e em seu próprio processo.
Por isso, Jesus insiste
fortemente sobre o perdão, porque este é uma necessidade vital quando a
vida foi ferida. Como presença visível do perdão, Jesus se dirige a cada
um com a força da torrente que jorra para a vida eterna e quer conduzir a todos
para aquela Fonte de comunhão que o Pai deseja, a fim de que toda a vida esteja
exposta ao Seu Amor.
Perdão é, em última análise, uma forma de amor, um amor que acolhe o outro na sua
fragilidade.
Vai ao encontro do causador da ofensa com uma compaixão
que brota de uma consciência das próprias limitações, abrindo um novo tempo,
sem o veneno do ressentimento e da amargura.
O perdão é
superlativo do amor.
Reinhold Niebuh descreveu o perdão como a “forma final do
amor”. Perdão é amor que
reconstrói o passado.
Só quem doa amor ao ofensor dá-lhe
as condições profundas de contrição, compunção, compaixão e arrependimento, as
quatro vias através das quais o ser humano pode renascer de si mesmo e das
trevas, trocando a morte pela vida.
Por ser o gesto mais difícil e elevado, o perdão é a única forma de permitir ao
ofensor a entrada de amor no seu
coração. Qualquer forma de cobrança, punição e vingança reforça a crueldade do
ofensor e, de certa forma, vai fazê-lo sentir-se justificado.
Por isso, a originalidade do cristianismo está na
descoberta da grandeza do ser humano, no exercício da única força capaz de
mudar o mundo: o amor real. Não há
revolução maior.
O perdão, então, re-situa as pessoas na grande corrente da vida;
busca restabelecer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem
e a vida que as rodeia.
O perdão é uma experiência forte que
re-conecta com a vida; ele quer abrir uma porta à vida, em um muro fechado de
dores, de sentimentos feridos, de auto-agressividade. O perdão busca
estabelecer uma aposta pela vida. É um ato de realismo, em profundidade e a
longo prazo.
Podemos
falar, então, que o perdão ativo é terapêutico pois desencadeia um processo de conversão, mobiliza todas
as dimensões da pessoa, reestrutura o universo relacional e abre a
interioridade à alteridade.
O perdão reconstrutor, libera
em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, in-tuições... e
nos faz descobrir em nós, nossa verdade
mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagra-das, responsáveis... É ele que
“cava”
no nosso coração o espaço amplo e profundo para desvelar nossa própria interioridade.
A força criativa do perdão põe em movimento os
grandes dinamismos da vida; debaixo
do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Por isso, o perdão é expansivo, ele abre um novo futuro e desata ricas
possibilidades latentes em cada um. Ele não se limita ao êrro, mas impulsiona
cada um a ir além de si mesmo; ele destrava a vida, potencia o dinamismo do “mais” e o coloca em
movimento em direção a um amplo horizonte de sentido.
É gesto gratuito e positivo de
encontro,
de acolhida, de cordialidade,
que se torna hábito de vida: até
“setenta vezes sete”.
O
perdão é aquele que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita
bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por
isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas. Não apenas afetivo, mas efetivo. Não apenas implica
mudança na disposição da pessoa que perdoa, mas leva também a modificar a
situação da pessoa perdoada. O perdão
liberta as pessoas para poderem cuidar de outras questões importantes na vida;
é uma obra de amor para com o outro
e para consigo mesmo.
O ser humano é quebradiço
por dentro e por fora. Mas o perdão
o redime, depositando nele algo que é maior que sua fragilidade. Trata-se de um
dinamismo que o ressuscita, o vivifica e o resgata.
O que era sucata, torna-se
material para a construção do ser humano novo; o que era motivo de vergonha,
agora é impulso confiante e esperançoso; o que era sinal de morte, agora
ressurge para uma vida nova. A novidade interior se dinamiza para fora e configura,
por sua vez, a modalidade do comportamento diante dos outros.
Em última análise, o perdão é um ato de fé na
bondade fundamental do ser humano.
Texto
bíblico: Mt 18,21-35
Na oração:
O caminho para a libertação, a conversão e a
reconciliação conduz a uma nova identidade.
Esta se revelará e será experimentada no “colóquio de misericórdia”, com os
olhos fixos no Crucificado: Que fiz? Que faço? Que farei por
Cristo?
-
Fazer “memória” dos momentos em que você experimentou a força criativa do
perdão do outro, ou foi presença por onde fluiu o verdadeiro perdão.
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