“Somos simples
servidores; fizemos o que devíamos fazer” (Lucas 17,10)
O evangelho de hoje nos propõe uma atitude que, à
primeira vista, parece inaceitável: o empregado não deve reclamar quando,
depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve
servir o jantar. Ele é um simples servidor do Reino, tem de fazer seu serviço,
sem discutir.
Mas a intenção de Jesus é outra: Ele aponta para
a dedicação integral no servir. A parábola desmascara a atitude daquele que, no
serviço do Reino, busca seus próprios interesses, alimenta sua vaidade e busca
ser o centro das atenções. Quem não gosta de receber elogios pelo seu serviço
ao Reino?
No entanto, trabalhar para buscar o
louvor, o interesse próprio, o lucro, o reconhecimento, a fama, o poder...
esvaziam o sentido da missão em favor da evangelização, pois são próprios de
uma mentalidade calculista e materialista da sociedade em que vivemos, que
procura compensação em tudo o que se faz. Na perspectiva de Deus, o fundamental
é ativar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago.
Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os
outros.
Generosidade,
gratuidade, doação: palavras quase desconhecidas do nosso vocabulário e
em nosso contexto social. Mas são elas que nos levam em direção aos
outros, libertando-nos de nosso pequeno eu.
São elas que nos afastam da mesquinhez, da vaidade, do egoísmo, da busca do
“próprio amor, querer e interesse”. Por serem mais afetivas, mais espontâneas,
ligadas ao coração, elas revelam-se na ação, não em função de um mandato,
de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com as exigências do amor, da solidariedade...
São elas que alargam o nosso
coração até dilatar-nos às dimensões do universo, rompendo nossos estreitos
limites e lançando-nos a compromissos mais profundos. Sentimo-nos livres para
qualquer desafio e cada nova entrega é uma libertação maior: são novas
oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para
servir e para dar sua vida pelo mundo.
“Somos simples servidores”. Em algumas traduções da
bíblia encontramos: “Somos servos inúteis”. Tal tradução é muito
limitada, pois fomenta a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil
não serve. Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas,
mas em função da retidão, da fidelidade e da gratuidade, seremos indispensáveis
para o projeto de Deus.
Esta é a grandeza e recompensa do
servidor no grande trabalho que realiza em favor do Reino: ultrapassar-se
sempre, mas no amor; o êxito?
entregue-o a Deus!
Afinal, é o Senhor quem realiza em
nós o querer e o fazer, para além de nossa boa
disposição (Fil. 2,13).
A grandeza, a dignidade, a
capacidade redentora de toda atividade em favor dos outros provém do fato de
ser vivido numa profunda união pessoal com Cristo e com o desejo intenso de que
nossa ação esteja em sintonia com a vontade e a glória do Pai, e não com as
nossas buscas de compensações.
O chamado de Jesus é
para “co-laborar”, para trabalhar com Ele; e deste chamado
ninguém é excluído, porque Ele abriu essa possibilidade para todos (“chama todos e
cada um em particular”).
Qualquer que seja o trabalho , ele se define pelo afeto
pessoal a Jesus, pela identificação com seu projeto libertador.
Por isso, é decisivo algumas indicações que contribuem para
fazer do serviço ao Reino uma “experiência espiritual”: a
pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a
capacidade de “contemplar”, o crescer em gratuidade
e a relativização de compensações, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer...
A atitude de gratidão (consciência
viva daquilo que cada dia nos é dado gratuitamente) nos motiva a viver o trabalho
como serviço, libertando-o radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga,
e esvaziando-o de toda pretensão egoísta.
Quando vivemos nosso trabalho
a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo
mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos...
Se vivemos a partir da gratidão,
ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à
nossa entrega ou ao nosso serviço. Como dizia S. Inácio aos estudantes de
Coimbra, “são outros os soldos” que nos compensam.
Uma tentação
sutil, presente em todos nós, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas
pelo serviço prestado. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo
de gratificação para manter seu entusiasmo e seu élan apostólico. Fica a
impressão que, no apostolado, ao invés de buscar agradar a Deus, busca-se recompensas
humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, interpreta-se isso
como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria
motivação e entrega.
A
verdadeira maturidade espiritual coincide com o sentido da gratuidade, ou seja, ajustar-se ao modo
de agir de Deus, superando todo auto-centramento e todo voluntarismo; quem
assim vive experimenta o consolo de sentir-se amado, perdoado e chamado por
Deus, pois “o ser humano é fundamentalmente
um ser de gratuidade”.
A gratuidade só pode ser vivida equilibradamente em toda sua profundidade e intensidade por
aquele que é plenamente consciente de
sua pobreza
e indignidade
radical, por aquele que, por ter-se sentido pecador e amado ao mesmo tempo,
não deseja ser nem melhor nem mais perfeito, senão mais filho(a) de Deus pelo compromisso e doação.
E, precisamente movido pelo amor filial, deseja ativar todos os
seus talentos e recursos, até o extremo de suas possibilidades, com o desejo de
só agradar a Deus que tanto lhe ama.
A gratuidade, portanto, é o fruto maduro, resultado espontâneo do
consolo do perdão e do amor, que habilita o ser humano a entrar no fluxo da
ação salvífica do próprio Deus.
E
esta conversão à gratuidade possui
uma dupla dimensão:
- é abandono da confiança em si mesmo e
esvaziamento do culto ao próprio eu.
A pessoa que confia em seu próprio
esforço para se projetar e brilhar, sem abrir espaço à graça de Deus, vê-se
condenada à esterilidade, experimenta a aridez interior, a insatisfação de quem
se empenha inutilmente, a angústia de quem se esforça sem conseguir a alegria
da comunhão, e o desamparo de quem se vê triste, só e desolado.
Eis o que significa “gratuidade”: cair na conta de que tudo é dom e graça de Deus,
que as boas obras, por mínimas que sejam, são um presente que Deus lhe concede
poder realizá-las, que todo trabalho que se faça (mais ou menos importante,
mais público ou mais escondido, com ou sem compensações...) é uma maneira
pessoal de co-laborar com Aquele que fez de sua vida uma entrega por pura
gratuidade.
Texto
bíblico: Lucas
17, 5-10
Na oração:
“Quantas dádivas! Sobrevivemos e crescemos graças a um
cem número de valiosos dons; e a
natureza é um canto permanente
ao Criador que nela se anuncia e espelha – ela é desdobramento de um amor sem
limites.
Ao ver-se beneficiado, há quem
exclame: “Não precisava tanto!”
Seja você assim. Você participa
dessa misteriosa gratuidade. Abra os olhos para essa diversidade a lembrar
que as portas para ser e amar estão sempre abertas.
Familiarizado com a dádiva, seja eco permanente da gratidão” (Frei Cláudio Van Balen).
- Seu “serviço apostólico” na
comunidade: pura gratuidade ou busca de compensações e elogios?
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