“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de
feridas, ficava sentado no chão junto à porta do rico” (Lucas 16,20)
Lucas, mais uma vez, nos introduz no tema de
ricos e pobres, que, com esta parábola, alcança sua altura suprema. Trata-se de
uma parábola forte, clara e inquietante, que corta a respiração e nos situa, a
partir de Deus, na dinâmica das relações humanas. Deixar que a parábola se
explique, que nos fale, que nos questi-one e que ilumine nossa vida, essa é a
melhor atitude diante dela.
Este é o tema: um rico petrificado
e fechado em sua riqueza, se apodrece com ela, ou seja, perde sua humanidade e
se condena, não porque tenha feito coisas más, senão porque estava cego e não
viu o pobre à sua porta. É, sem dúvida, uma parábola de nossa sociedade. Aqui é
claro: há um “Mundo Epulón” que esbanja os bens reais da vida, enquanto à
porta da casa se amontoam pobres e mais pobres.
Nesta parábola Jesus desmascara e
denuncia, com olhar penetrante, a realidade cruel da Galileia e também a de
nosso mundo atual.
A primeira
parte da narração fala de um “rico” poderoso. Suas “vestes finas e elegantes”, indica luxo e
ostentação. Só pensa em banquetes suntuosos todos os dias.
O rico não tem nome, pois não tem identidade
humana. Não é ninguém. “Era tão pobre
que só tinha
riqueza”. Sua vida, vazia de amor
solidário, é um fracasso.
Muito
perto, junto à porta de sua mansão, está estendido um “mendigo”. Não está
coberto de linho e púrpura, mas de feridas repugnantes. Não sabe o que é um festim;
não lhe dão nem do que cai da mesa do rico para saciar sua fome. Só alguns
cachorros de rua se aproximam para lamber suas feridas. Não tem ninguém. Não
possui nada. Só um nome cheio de promessas: “Lázaro”, que significa “Deus é ajuda”.
O pobre está fora da porta, rodeado pelos cachorros da rua,
mas só a uns passos da mesa do rico, que desperdiça comida em sua casa. O rico
está dentro de casa, poucos metros os separam, mas há um abismo entre eles; não
há palavras, não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Estão muito
próximos, só os separa uma frágil porta, mas o rico não “vê” o pobre, não lhe
interessa sua pobreza, não o olha, não o escuta...
A cena é insuportável. O rico tem tudo, sente-se
seguro, não parece necessitar de ninguém. Vive fechado em si mesmo. Não vê o
pobre que morre de fome junto à sua porta.
Lázaro, por sua parte, vive em extrema
necessidade, faminto, enfermo, excluído, ignorado por aqueles que lhe podiam
ajudar. Sua única esperança é Deus.
Jesus não pronuncia diretamente
nenhuma palavra de condenação. Seu olhar penetrante está desmascarando a cruel
injustiça daquela sociedade. As classes mais poderosas e os estratos mais
oprimidos parecem pertencer à mesma sociedade, mas estão separados por uma
barreira invisível: essa porta que o
rico não atravessa nunca para aproximar-se de Lázaro. Deus, que é Pai de todos,
não pode aceitar essa cruel separação entre seus filhos.
A segunda
parte da narração nos situa diante de uma grande mudança de perspectiva. A
reviravolta é total. Ambos morrem, a morte os iguala, de maneira que o tema das
riquezas passa a um segundo plano. Só permanecem eles, suas vidas...,
perduráveis, de formas diferentes.
O pobre se salva porque foi simplesmente pobre.
Salva-se pela misericórdia de Deus, ou seja, por graça (porque Deus é Deus). Por
isso, a salvação é dom, pura graça.
O rico se condena por si mesmo, porque ele
escolheu, porque não foi capaz de ver/descobrir/ajudar os pobres que estavam ao
seu lado. Nessa linha, a condenação é a rejeição da graça da vida: não ter
descoberto o outro.
A conclusão que se deduz da
parábola não é que os pobres do mundo devem manter-se como estão, já que
esperam a glória futura depois da morte, mas que se abra a porta que separa o pobre do rico, de forma que possam comunicar-se.
Este relato não fala da condenação
e salvação futura, mas da nova forma de vida compartilhada que deve se
estabelecer neste mundo. O relato não quer que o pobre e o rico continuem
vivendo simplesmente em mundos que se encontram hermeticamente selados,
afastados um de outro, senão que se encontrem, que o rico abra a porta e
ofereça ao pobre um lugar em sua mesa.
Durante o tempo de sua vida, o
pobre mendigo e o rico fechado em seu “banquete” egoísta e em seu luxo não se
relacionavam entre si, mas poderiam tê-lo feito, pois Lázaro jazia diante da
porta da casa do rico: uma porta evoca a possibilidade de comunicação.
Depois da morte não tem como mudar
as coisas. O tempo de mudança é este, esta vida.
Aquela barreira invisível na terra
se converte agora em um abismo intransponível. O objetivo da parábola não é
descrever o céu nem o inferno, mas condenar a indiferença dos ricos e
poderosos.
Deus é o primeiro que deseja que vivamos bem, que
sentemos à mesa e tenhamos o que comer, que nos vistamos com dignidade. Deus se
alegra quando vê a mesa cheia de alimentos e todas as cadeiras ocupadas, todos
com bom apetite, vivendo a partilha com o coração pleno de alegria e
fraternidade.
Onde está então o problema? Está numa
porta. Cresce cada vez mais o número de portas que nos
impedem ver, portas que nos distanciam da fome, do sofrimento, da pobreza, da desnudez
que há do outro lado. A grande tragédia está no fato de levantar muros, cercas
de proteção, portões eletrônicos, que nos impedem ver os rostos dos outros, que
nos isolam dos outros, que nos fecham sobre nós mesmos como se ninguém mais
existisse.
Diz o ditado que “comer
demasiado mel nos faz perder o sabor”;
o demasiado bem-estar nos impede ver o mal-estar dos outros; o fato de não
carecer de nada, nos faz insensíveis diante daqueles que carecem de tudo; a
abundância pode ser um obstáculo para sensibilizar-nos frente à carência dos
demais.
Ao ler o Evangelho, nos damos conta
de que Jesus, que não tinha nada, era muito sensível àqueles que careciam de
tudo; em sua vida não havia nada que lhe impedisse ver a pobreza e o sofrimento
dos outros. Isso despertava n’Ele a compaixão, o “sentir-com” os outros. O que
os olhos não veem não chega aos nossos sentimentos. O que os olhos não veem não
chega ao nosso coração.
Claro que
não basta ver. É preciso que o coração seja impactado. É preciso que a
realidade nos doa no coração. É preciso que a realidade nos comova.
Não basta saber que existem os pobres; não bastam
as estatísticas sobre a pobreza no mundo. É preciso dar um rosto ao enfermo, ao
desnudo, ao faminto. A dor sem rosto não nos diz nada. A nudez sem rosto não
nos afeta; a fome sem rosto não nos impacta.
É preciso escancarar as portas dos
nossos preconceitos, da nossa insensibilidade, dos nossos pré-juízos..., portas
que nos fazem acostumar a ver famintos, necessitados, explorados...
Tudo isso pode nos tornar
insensíveis. O que Jesus lamenta é nossa insensibilidade e nossa indiferença
frente àqueles que passam penúria. Esta é sua condenação radical: uma
barreira de indiferença, cegueira e crueldade separa o mundo dos ricos do mundo
dos famintos. A riqueza pode ser um grande estorvo no coração; a púrpura e o
linho podem ser um escândalo em um mundo de pobreza; os grandes banquetes podem
ser um insulto em um mundo onde impera a fome.
Texto bíblico: Lucas
16,19-31
Na
oração:
- Quê impactos tem no seu coração o mundo
da exclusão e da violência?
-
Quê atitudes você assume para diminuir a insultante riqueza de uns poucos e a
escandalosa miséria de muitos?
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